Revolução no mundo árabe – como avançar?

altO levante no mundo árabe já derrubou dois ditadores desde o início do ano. Depois da queda de Ben Ali na Tunísia, Mubarak no Egito foi forçado a renunciar após 18 dias de protestos de massas. Protestos estão ocorrendo em vários outros países do mundo árabe, e também no Irã.

Esses acontecimentos merecem todo o apoio e servem como uma fonte de inspiração para a luta de jovens e trabalhadores pelo mundo inteiro.

Socialistas ao redor do globo estão acompanhando os acontecimentos e discutindo formas de apoiar o movimento, mas também qual deve ser a postura dos socialistas nessa luta. Nesse sentido é positivo o artigo de Israel Dutra e Pedro Fuente do MES (corrente do PSOL), “Tunísia e Egito: uma revolução democrática percorre os países árabes”, que discute esse assunto.

Contudo, embora o artigo traga vários elementos atuais e históricos importantes para a discussão, o artigo falha em tirar as lições para o movimento hoje. Mais do que isso, a conclusão do artigo chega a reafirmar uma visão “etapista”, que pode ter consequências graves para o movimento. Quero aqui fazer uma contribuição para esse debate.

Etapa democrática da revolução?

 O artigo constata que o que ocorre no Egito e na Tunísia são “revoluções democráticas insurrecionais espontâneas”. Não há desacordo sobre isso. Os movimentos foram desencadeados pela situação social, como a alta nos preços dos alimentos, desemprego, etc, mas acabaram assumindo a forma de protestos contra os regimes ditatoriais.

O problema começa quando o artigo constata: “Sendo revoluções democráticas, aqueles que levantam a bandeira do socialismo estão absolutamente descontextualizados. Hoje não há a possibilidade de criar uma alternativa de massas sob esta bandeira. Há sim possibilidade de destruição de velhos regimes e conquista de independência frente ao imperialismo. Se isso ocorrer, o processo de avanço programático das mobilizações pode entrar numa dinâmica socializante ou não. O momento ainda não aponta para nosso objetivo estratégico.”

O caminho apontado pelo artigo é a defesa de uma “Assembleia Constituinte”, e o caráter do movimento que é colocado é “nacionalista” e “pan-árabe”.

Mesmo se o artigo menciona mais tarde a teoria da “Revolução Permanente” de Trotsky, as conclusões tiradas são radicalmente diferentes das de Trotsky.

Na verdade o Egito dá um exemplo clássico da situação em que Trotsky pensava a “Revolução Permanente”: um país atrasado, com burguesia e indústria frágeis, falta de reforma agrária e de democracia. A burguesia fraca, submissa ao imperialismo, é incapaz de conquistar uma verdadeira independência nacional. No campo, a burguesia é incapaz de fazer reforma agrária, já que ela tem mil e um vínculos com o latifúndio. A burguesia teme desencadear protestos, com medo de que a classe trabalhadora se inspire e lute não só contra um ditador corrupto, o imperialismo e o latifúndio, mas também contra a própria burguesia.

Qual era a conclusão de Trotsky? Que cabe à classe trabalhadora encabeçar a luta pela modernização do país, para completar as tarefas “nacional-democráticas”, já que a burguesia é incapaz a fazer isso. Mas a classe trabalhadora ao fazer isso, também vai querer resolver seus próprios problemas de salários, preços, emprego, etc e assim acaba desafiando também o próprio capitalismo. Desse modo, o processo da revolução, começando pelas tarefas “democráticas”, tem que passar a assumir um caráter socialista, de forma “permanente”. O caráter permanente também se dá na necessidade de expandir o processo para outros países, o que está ocorrendo nesse momento (esse elemento é mencionado corretamente pelo artigo, mas sem mencionar uma saída socialista, como uma Federação Socialista).

Tudo isso quer dizer que a “possibilidade de destruição de velhos regimes e conquista de independência frente ao imperialismo” não será concretizada, de forma duradoura, se a classe trabalhadora não jogar um papel protagonista. Essa é a conclusão de Trotsky, que vale também para hoje. Mas o artigo não coloca a necessidade da classe trabalhadora jogar esse papel, na verdade fala do movimento “nacionalista” e “pan-árabe” sem diferenciação de classe. Isso se reforça com os exemplos históricos fornecidos pelos próprios autores do artigo. Esses exemplos mostram de forma clara como Trotsky estava correto, e como a versão etapista pode levar o movimento a um fracasso.

Irã e Leste Europeu – “grande conquistas populares”

A revolução iraniana é um claro exemplo disso. Além do fato de não ser possível incluir o Irã no “pan-arabismo” (o povo iraniano é de origem persa e não árabe), a revolução de 1979 mostra o grande perigo que existe se a classe trabalhadora não se organizar independentemente e assumir e direção da revolução.

A principal força do movimento revolucionário que estourou em 1978 foi a onda de greves da classe trabalhadora. Existia um partido comunista influente, o Tudeh. A linha do partido era infelizmente a mesma defendido pelo artigo dos companheiros do MES: “não é possível socialismo agora, o que podemos defender é um governo dos nacionalistas progressistas e anti-imperialistas”.

O poderoso movimento dos trabalhadores, que conseguiu derrubar o Xá (rei) Reza Pahlavi, que era apoiado pelos EUA e tinha o quarto maior exército do mundo, acabou assim sendo subordinado ao governo dos mulás (clero) islâmicos. “Afinal de contas tratava-se de um governo anti-imperialista com uma retórica radical”, argumentavam os comunistas. Porém, a vitória que significou a derrubada do Xá foi sequestrada e transformada em um pesadelo que ainda não acabou. O regime do aiatolá Khomeini, depois de consolidar seu poder, massacrou os líderes sindicais e de esquerda, e muitos tiveram que se exilar. É incrível como se pode descrever esse processo da forma como faz o artigo do MES: “Todas elas [as revoluções democráticas] são insuficientes do ponto de vista socialista, mas são grandes conquistas populares”! A mesma descrição é usada em referência ao Leste Europeu, onde o que começou como uma revolução contra os regimes stalinistas acabou com a restauração do capitalismo, com as repercussões negativas históricas que vivemos ainda hoje.

Não se trata de um capricho, mas o preço pago pelo fato de que os trabalhadores não construíram uma ferramenta política independente e assumiram o poder, algo que não era impossível.

O fracasso do “pan-arabismo” e do “nacionalismo”

O artigo fala do “fracasso da onda pan-arabista”. Mas, fracassou por quê? O artigo não responde a isso. Esse fracasso na verdade confirmou a teoria da Revolução Permanente. Por serem movimentos burgueses, não tinham como atingir uma verdadeira independência do imperialismo, menos ainda romper com o latifúndio e o capitalismo. A tentativa de construção de uma “República Árabe Unida” (que só durou três anos, e não foi além de incorporar Egito e Síria, ao contrário do que diz o artigo) estava destinada ao fracasso, já que se baseava em elites nacionais com seus próprios interesses e se baseava em um sistema de exploração.

A conclusão do artigo não vai além de chamar a um apoio ao “pan-arabismo”. Essa linha adotada pelos partidos comunistas significou na prática a dissolução do partido comunista no Egito, em apoio ao “nasserismo”. No Iraque chegaram a fazer uma aliança com o partido Baath, até que Saddam Hussein, que também vinha do Baath, assumiu o poder e massacrou os comunistas. Aliás, o que restou do “pan-arabismo” acabou sendo isso: Saddam Hussein, Mubarak…

Isso não quer dizer que não seja extremamente positivo o caráter internacional dos levantes na África do Norte e do Oriente Médio que se expressa numa identidade nacional pan-árabe e num forte anti-imperialismo, etc. Mas, mostra os riscos se a classe trabalhadora não assumir um papel protagonista deixando assim o campo aberto para forças reacionárias.

Por último, é importante ressaltar, que não foi só o “fracasso pan-arabista” que “levou ao crescimento de correntes fundamentalistas e religiosas”. Como já indiquei, existiam nesses países partidos comunistas que, em alguns casos, possuíam uma forte base entre os trabalhadores. Mas foi exatamente essa divisão da revolução em uma “revolução democráticas” separada da “revolução socialista”, que, justamente quando os trabalhadores estavam se movendo, acabou levando a subordinação dos trabalhadores a movimentos “nacionalistas”.

Quero deixar claro que o artigo em nenhum lugar coloca que os trabalhadores devem apoiar movimentos burgueses, mas o próprio fato de ser vago nesse ponto, e não enfatizar a independência de classe dos trabalhadores, junto com os exemplos históricos (que fala de vitória popular em movimentos liderados por burgueses), abre espaço para isso. Não deixar as coisas claras nesses momentos pode ter um preço altíssimo.

O que defender? Programa de transição

Tudo isso não significa que a tarefa dos socialistas é levantar a bandeira do socialismo e esperar as massas se juntarem a ela. Nem a Revolução Russa de outubro foi realizada sobre a bandeira do “socialismo” simplesmente. Trotsky levantava a necessidade de elaborar um “programa de transição”, que leva em conta a consciência atual da classe trabalhadora e levanta pontos programáticos que correspondam às tarefas do movimento, mas também apontam para a necessidade de superar o sistema atual.

É possível levantar bandeiras que apontam a necessidade de construir o poder dos trabalhadores e que levantem os temas sociais. O “programa” levantado no artigo é extremamente limitado e não se difere do que a oposição burguesa pode defender: “abaixo Mubarak” e “Assembleia Constituinte”.

A própria dinâmica da luta abre para palavras de ordem mais avançadas. Primeiro, qualquer luta de massas mais prolongada acaba colocando a necessidade de organização. Na Tunísia e no Egito surgiram espontaneamente comitês de trabalhadores para organizar a luta, distribuição de comida, defesa, etc. Os socialistas devem fazer um chamado para a construção desses comitês e defender que sejam vinculados em nível municipal, regional e nacional.

As demandas democráticas são, sem dúvida, centrais. Mas mesmo aqui dá para levantar temas de classe e poder dos trabalhadores. Na questão da “Assembleia Constituinte”, o tema de quem deve convocá-la e organizá-la tem quer ser respondido. O antigo regime egípcio é campeão de eleições fraudadas. E agora quem está assumindo é o Exército, com seus altos oficiais que controlam boa parte da economia. São eles que devem controlar as eleições? Devemos defender que qualquer eleição aconteça sob o controle de comitês dos trabalhadores.

É correto dizer que a classe trabalhadora organizada não jogou um papel central nos primeiros momentos dos protestos no Egito. Mas na última semana havia uma crescente onda de greves e ocupações, um fator que contribuiu para os EUA entrar em jogo e pedir a remoção imediata do Mubarak no dia 11 de fevereiro.

E o papel dos socialistas é de ajudar a impulsionar a luta e organização independente dos trabalhadores. Para isso é necessário também levantar os temas da inflação, desemprego, do poder econômico.

Mas também da necessidade de um partido de massas dos trabalhadores, que defenda uma saída socialista. Mesmo se essa bandeira hoje seja mera propaganda, ela pode ganhar uma minoria importante hoje e a situação também pode mudar rapidamente.

Um exemplo importante de como a consciência pode avançar, vem da resolução dos trabalhadores da siderúrgica Helwan, que numa assembleia de greve fizeram um chamado à participação dos protestos 11 de fevereiro com o seguinte programa:

“1. Pela imediata renúncia do presidente, seus homens e símbolos do regime.

2. Pelo confisco dos fundos e bens de todos representantes do regime anterior e todos corruptos.

3. Trabalhadores siderúrgicos, que já forneceram mártires e militantes, chamam a todos os trabalhadores do Egito a se rebelar contra a central do regime e do partido governante, desmantelando-o, e convocar assembleias para fundar livremente seus sindicatos independentes, sem permissão prévia ou consentimento do regime, que caiu e perdeu qualquer legitimidade.

4. O confisco das empresas públicas que foram vendidas ou fechadas, e sua nacionalização em nome do povo e a formação de uma nova gestão dos trabalhadores e técnicos.

5. A formação de comitês de controle dos trabalhadores em todos os locais de trabalho, para monitorar a produção, os preços, a distribuição e os salários.

6. Uma assembleia de todos os setores e tendências políticas para elaborar uma nova constituição e eleger verdadeiros comitês populares sem esperar o consentimento ou negociação com o regime.

Uma grande manifestação dos trabalhadores vai se juntar à Praça Tahir na sexta-feira, 11 de fevereiro 2011, para se juntar à revolução e anunciar as demandas dos trabalhadores no Egito.

Viva a revolução!
Viva os trabalhadores egípcios!

Viva a intifada [levante] da juventude egípcia – a revolução do povo para o povo!”

 
O que deve ser levantado agora?

O momento no Egito é bastante delicado. O Exército assumiu o controle e quer controlar a “transição”. Limpou a Praça Tahir, e querem pôr um fim às greves dos trabalhadores. Para os elementos burgueses, o movimento acaba aqui, talvez com alguma pressão para garantir uma nova constituição. Para os trabalhadores, a luta só passa para uma nova fase.

A revolução sempre se desenvolve paralelamente com a contrarrevolução. O golpe militar, mesmo que tenha se dado de forma “suave” até agora, é um alerta. Mesmo se a intenção do Exército no momento não parece ser uma ditadura de longo prazo, só uma “transição controlada” (os militares não querem perder o apoio bilionário anual dos EUA), não está dado que consiga construir uma alternativa burguesa suficientemente estável para que eles se sintam seguros o suficiente para ceder o poder. A possibilidade de uma ditadura mais brutal, se os trabalhadores não conseguem avançar, não está descartada. Nem um avanço dos fundamentalistas, que no Egito tem uma postura mais moderada.

É fundamental que os trabalhadores não apoiem qualquer governo “nacional”, de “salvação nacional”, etc, junto com a oposição burguesa, o que significa desarmar a luta dos trabalhadores. Os correspondentes do CIT, presentes no Egito, levantam os seguintes pontos em discussões com os trabalhadores:

  • Nenhuma confiança nos dirigentes militares e nenhuma participação em qualquer governo com os dirigentes e os oficiais da ditadura de Mubarak.
  • A imediata suspensão do estado de emergência. Pela liberdade imediata de todos os prisioneiros políticos. Nenhuma perseguição ou criminalização de ativistas da revolução.
  • Por plena liberdade política. Liberdade de expressão e organização. Controle democrático sobre a mídia estatal e a abertura da mídia estatal para que todos os pontos de vista e tendências políticas possam ser difundidos.
  • Nenhuma restrição ao direito de greve e outras lutas sindicais. Pela plena liberdade de formar sindicatos e conduzir atividades sindicais. Por sindicatos democráticos e combativos.
  • Prisão e julgamento em tribunais populares de todos envolvidos na repressão e corrupção do regime policial de Mubarak. Confisco dos bens dos saqueadores e corruptos.
  • Pela formação urgente de comitês democráticos de ação nos locais de trabalho e bairros – especialmente nos bairros de trabalhadores e pobres – para coordenar a remoção de todos os vestígios do antigo regime, manter a ordem e organizar a distribuição de suprimentos, e principalmente, para formar a base de um governo de representantes dos trabalhadores e dos pobres.
  • Formação de comitês democráticos de soldados rasos nas forças armadas e na polícia para garantir que os oficiais não usem essas forças contra a revolução.
  • Não a um governo dos altos militares ou da elite. Por um governo dos representantes dos trabalhadores, pequenos camponeses e pobres!
  • Não a uma constituição aprovada ou elaborada pelos militares. Pela eleição rápida de um parlamento realmente democrático, um assembleia constituinte revolucionária, que não só estabeleça regras para as eleições, mas também um programa para a mudança das condições das massas egípcias. Tal parlamento só pode ser convocado – se for representar a maioria da população – sob o controle de comitês democráticos nos locais de trabalho e nos bairros. Os representantes dos trabalhadores e camponeses pobres devem constituir a maioria desse parlamento ou constituinte.
  • Por um Egito genuinamente socialista e democrático. Pela nacionalização dos principais empresas que dominam a economia sob o controle e gestão democráticos dos trabalhadores para possibilitar um plano socialista de produção que possa elevar o nível de vida da grande maioria dos egípcios nas cidades e no campo.

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