Trump 2.0 faz avançar o autoritarismo e militarismo

Construir as lutas e uma alternativa socialista aos ataques da extrema direita e aos blocos imperialistas
A eleição de Trump é, sem dúvida, um ponto de inflexão na conjuntura mundial. É uma consequência dos processos que se desenvolveram nas últimas décadas, desde a crise econômica mundial de 2008, que marcou o início do fim da era da globalização neoliberal. Mas Trump 2.0 acelera o processo que mina as antigas estruturas e fortalece o autoritarismo, o militarismo e o nacionalismo reacionário.
Tudo isso segue a lógica da crescente disputa entre dois blocos imperialistas: um em torno dos EUA e outro da China. Esses processos refletem a profunda crise do sistema, e não há qualquer estabilidade à vista, mas sim a preparação para novos conflitos e guerras.
Mesmo que a polarização política hoje encontre sua principal expressão na direita, com o fortalecimento da extrema-direita, o trumpismo levará a uma reação também pela esquerda, por meio da luta da classe trabalhadora, e já vemos sinais disso.
Este artigo é baseado nas discussões feitas no Comitê Internacional da Alternativa Socialista Internacional em fevereiro. Na reunião, foi enfatizada a rapidez e a volatilidade dos processos, e cada dia parece trazer um novo elemento.
Mudança de regime
A posse de Trump não significa simplesmente uma alternância de governo, mas uma mudança de regime. Isso acontece em um momento de crescente conflito entre os principais poderes imperialistas, EUA e China, um elemento que se torna cada vez mais dominante.
Trump 2.0 é um divisor de águas que define um período, assim como o 11 de setembro, o colapso financeiro de 2008, a pandemia ou a guerra na Ucrânia. Não é possível analisar a economia mundial, as guerras, a crise climática, etc., sem partir desse elemento.
Tudo isso confirma um dos pontos centrais levantados no congresso mundial da ASI: o capitalismo e o imperialismo, em resposta às crises que enfrentam, estão se tornando mais reacionários.
Trump é uma expressão disso, evidentemente, assim como o poder dos bilionários que apoiam seu regime, muitos deles presentes em sua inauguração. Vemos também o homem mais rico do mundo participando ativamente como carrasco a serviço de Trump, fazendo uma saudação nazista em um comício.
Trump está passando por cima do Congresso, fechando agências federais e congelando trilhões em gastos federais. O Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Musk, tem obtido acesso e controle sobre as transações do Tesouro, por onde passam US$ 6 trilhões anualmente para a Previdência, salários do funcionalismo, gastos militares, etc. Nas palavras do Financial Times, esse tipo de controle é “algo que só monarcas e autocratas tiveram historicamente”.
Bonapartismo
O regime de Trump se baseia no autoritarismo e no poder pessoal do presidente, que nos remete ao tipo de regime baseado no “homem forte” que Marx analisou e caracterizou como bonapartismo. Isso expressa o impasse em que se encontra o sistema, onde grande parte da classe dominante, neste momento, está disposta a ceder o controle para implementar uma política de ataques mais profundos.
Durante seu primeiro mandato, Trump enfrentou muitas barreiras que limitavam seu poder. Agora, ele tenta expurgar e moldar o aparato estatal para que se torne uma ferramenta para seus interesses. Isso inclui colocar figuras leais a ele à frente da CIA e do FBI, além de enfrentar sindicatos de funcionários públicos com ameaças de demissão em massa.
Neste momento, não se trata de instalar um regime ditatorial, mas sim de manter as eleições e o sistema político, caracterizando um tipo de “bonapartismo parlamentar”.
A política de Trump não oferece saída nem para os próprios capitalistas e irá gerar novas crises. Por isso, é possível que, em algum momento, parte do establishment tente retomar o controle. Mas a força que realmente pode enfrentar as raízes do problema é a classe trabalhadora, armada com uma alternativa socialista para superar o sistema capitalista que gerou as crises e esse monstro.
Crise do centro
A “oposição” oficial dos liberais ao trumpismo, nos EUA e internacionalmente, não está travando uma luta séria. De fato, estão se acomodando politicamente, indo ainda mais à direita, e o centro político se aprofunda em sua crise.
Do governo de Keir Starmer na Grã-Bretanha a Lula no Brasil e Justin Trudeau no Canadá, o centro político está em crise ou perdendo popularidade.
Na Grã-Bretanha, o Reform UK, partido de extrema-direita de Nigel Farage, está em primeiro lugar nas pesquisas. Na Alemanha, a CDU (Democracia Cristã), liderado por Friedrich Merz, venceu as eleições, mas a extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AfD) ficou em segundo lugar, com 20% dos votos. A social-democracia (SPD) chegou em terceiro, registrando sua pior votação desde o século XIX!
A tendência geral tem sido o fortalecimento da direita e a migração da maioria dos partidos do establishment para posições mais à direita. No entanto, os governos de direita também não oferecem solução quando estão no poder, como vemos na Turquia e na Argentina. Milei, por exemplo, enfrenta uma crise agora por promover um esquema fraudulento de criptomoedas. A redução da inflação é elogiada por economistas, mas ocorre à custa do aumento da pobreza e não irá tirar o país do buraco.
Imperialismo nu e cru
É importante constatar que Trump não está recuando do conflito com a China, mas sim adotando uma abordagem diferente. Suas primeiras ações poderiam causar confusão, já que foram direcionadas a países aliados. No entanto, essas ações seguem uma lógica subjacente do conflito interimperialista. A questão da Groenlândia não é voltada contra a Dinamarca, mas sim sobre o controle do Ártico, visando Rússia e China, e a disputa por minerais. A fala de assumir o controle do Canal do Panamá também tem como alvo a China.
Na questão da Ucrânia, a estratégia é diminuir os recursos destinados a esse conflito e fazer com que a Europa assuma os custos, para que os EUA possam se concentrar no Pacífico.
Quando Biden chegou ao poder, ele afirmou que “os EUA voltaram” e que iria restaurar e fortalecer as alianças. Agora, Trump está despedaçando tudo isso. Sua política é reafirmar o poder nu e cru dos EUA, seja com aliados ou oponentes. Vimos isso quando ele pressionou Israel por um cessar-fogo frágil em Gaza. Também houve o confronto com Gustavo Petro sobre as deportações e o embate com o Canadá e o México sobre as tarifas.
Trump também está minando a aliança ocidental da OTAN, que tem sido fundamental para as relações geopolíticas há quase 80 anos. JD Vance, vice-presidente dos EUA, participou em fevereiro da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha. Sua fala foi um ataque aos governos da OTAN e um apoio aos partidos de extrema-direita que estão excluídos do poder. Elon Musk interveio diretamente nas eleições da Alemanha, discursando em comício da extrema-direita AfD.
OTAN em crise
A mudança mais significativa até o momento tem sido na Ucrânia, onde os EUA votaram junto com a Rússia e a Coreia do Norte, e contra a Europa, em uma resolução na ONU sobre o tema. Essas mudanças, que abalam a aliança do Ocidente, têm suas raízes em um processo que vem de décadas. Trata-se da mudança do eixo mundial do Atlântico, com o declínio da Europa, para o Pacífico. A OTAN nunca foi uma aliança de iguais; os EUA sempre tiveram poder de veto.
Nesse sentido, a guerra na Ucrânia teve um impacto contraditório. Por um tempo, o conflito com a Rússia fortaleceu a aliança dos EUA com a Europa. Por outro lado, deixou evidente sua natureza desequilibrada. Tem sido uma grande guerra em solo europeu, onde os poderes europeus se mostraram totalmente dependentes dos EUA.
Estamos em um período de crescente militarização e guerra, mas esse processo está apenas começando. O principal poder econômico da Europa, a Alemanha, só recentemente começou a romper com sua política de décadas de desarmamento relativo. Outros países grandes, como Itália e Espanha, nem alcançaram a meta antiga da OTAN de 2% do PIB para gastos militares.
Divórcio entre EUA e Europa?
Ainda não se pode falar em um divórcio entre os EUA e a Europa, mas isso pode ocorrer no futuro. A resposta de Keir Starmer, da Grã-Bretanha, e de Emmanuel Macron, da França, tem sido de se curvar diante de Trump. Porém, haverá uma pressão forte dos poderes europeus para se afirmarem, especialmente no campo militar. O aumento dos gastos militares na Europa terá como consequência cortes nos gastos sociais e um enorme impacto político. “Menos saúde, mais gasto militar”, disse recentemente o novo Secretário-Geral da OTAN, Mark Rutte.
Trump agora exige uma meta de 5% para os gastos militares, algo que não será alcançado no curto prazo, mas ele consegue mudar o patamar das metas. Tudo isso preparará o terreno para grandes confrontos de classe, nos quais o tema do militarismo será central. Existe uma pressão pela agenda neoliberal, que limita os gastos e o endividamento na Europa, em um contexto em que a pandemia deixou um legado de dívidas e o continente enfrenta baixo crescimento devido à austeridade.
Haverá uma pressão para aumentar a colaboração europeia. O continente ainda é um bloco rico, mas com muitos confrontos internos. Alguns governos estão se aproximando mais da Rússia, como Hungria e Eslováquia, e outros podem seguir esse caminho. Pode haver uma tentativa de reabrir relações com a China, mas isso será limitado pela forte corrente econômica subjacente, que aprofunda a divisão bipolar do mundo.
Ucrânia sem solução
A guerra na Ucrânia ainda não tem solução. As condições que Trump tentou impor a Zelensky eram extremamente severas. A tentativa de fechar um acordo entre Trump e Zelensky em Washington, no dia 28 de fevereiro, acabou em bate-boca, mesmo com Zelensky estando disposto a ir longe ao dar controle dos minérios do país aos EUA, sem nenhuma garantia de segurança. Para Trump, quem deve garantir a segurança é a Europa; ele simplesmente quer os minérios.
Tudo isso mostra como a guerra teve um caráter de conflito interimperialista, onde Trump e Putin negociaram por conta própria a divisão dos espólios, mas ainda estão longe de um real acordo. Esse fiasco transmitido ao vivo nas negociações entre Trump, JD Vance e Zelensky reforça o sentimento de pânico nos governos da Europa, que não podem mais contar com os EUA e veem a necessidade de reforçar os gastos militares. Friedrich Merz, que deve encabeçar o próximo governo alemão, afirmou que a Europa precisa se tornar independente dos EUA.
No Canadá, temos visto uma forte reação à fala de Trump, de que o país deve se tornar o 51º estado dos EUA, e à ameaça de implementar tarifas. Há uma forte reação nacionalista, incluindo boicote de mercadorias e cancelamento de viagens espontâneas por parte da população. Os liberais, que pareciam caminhar para uma derrota acachapante nas próximas eleições, têm recuperado apoio nas pesquisas ao embarcar em uma campanha nacionalista, defendendo o “Time Canadá”.
Espaço para a China
Trump também tenta fazer um acordo com a Rússia para dividir o bloco com a China. No entanto, a Rússia depende muito mais da China do que Trump estaria disposto a oferecer, considerando o tratamento que ele tem dado aos seus parceiros comerciais mais próximos, como Canadá e México.
A ofensiva de Trump contra tudo e todos oferece uma oportunidade para a China, que, nos últimos tempos, estava acuada por sua crise econômica profunda. A proposta horripilante de limpeza étnica em Gaza, expulsando a população palestina, os ataques ao governo da África do Sul em defesa de latifundiários brancos e o desmonte dos projetos da USAID, como o tratamento de AIDS na África, abrem espaço para iniciativas da China. A escalada autoritária de Trump enfraquece a falsa propaganda de que o imperialismo dos EUA representaria a “democracia” contra o “autoritarismo”.
Trump tem sido mais agressivo sobre Taiwan, como parte da priorização do Pacífico, retirando a exigência de que o país não avance na tentativa de formalizar sua independência. Porém, é possível que Trump condicione seu apoio em troca de aumentar a exploração econômica de Taiwan.
Oriente Médio
A turbulência ao redor da Ucrânia tirou um pouco o foco dos eventos no Oriente Médio, mas esse continua sendo um tema crítico e explosivo. A primeira fase do cessar-fogo em Gaza está terminando, sem perspectiva de uma segunda fase, que incluiria três etapas. Pelo contrário, os sinais indicam que Israel em breve retome o ataque genocida. Ao mesmo tempo, o governo sanguinário de Netanyahu intensificou sua ofensiva na Cisjordânia, com novas mortes e expulsão de palestinos.
Netanyahu, com apoio dos EUA, saiu fortalecido com a queda do regime de Assad na Síria e o enfraquecimento do Hezbollah no Líbano. Agora, ele tenta obter apoio para atacar as instalações nucleares do Irã, o que pode levar o país a acelerar o desenvolvimento de uma arma nuclear.
Economia mundial
No dia 4 de março, passaram a valer as tarifas de 25% contra México e Canadá, ao mesmo tempo que as tarifas contra China foram elevadas a 20%. Trump tem usado a ameaça de implementar tarifas como arma política para obter concessões, mas elas agora terão grandes efeitos econômicos. Além de impulsionar o aumento de preços, elas podem levar a uma guerra comercial que pode sair do controle. Esse foi um elemento central para a profunda crise econômica mundial da década de 1930.
Trump também está desmontando mecanismos de controle dos mercados, o que pode gerar novas bolhas financeiras e mais quebras. No final das contas, Trump só conseguirá uma melhora temporária na economia enquanto conseguir exportar sua crise para o resto do mundo.
O capitalismo da década de 2020 está conduzindo um rolo compressor que só pode ser revertido pela luta da classe trabalhadora e, em última instância, com a chegada ao poder dessa classe.
Por isso, é importante entender que esse cenário é temporário. Esta será a era do trumpismo, mas também da oposição e resistência ao trumpismo. Essa tendência de luta e oposição se expressará nas ruas, mas também politicamente. As sementes disso já estão visíveis.
O governo Trump é marcado pela soberba extrema, e suas ações vão gerar uma reação. Já há um descontentamento nos EUA com o aumento dos preços, especialmente dos alimentos. Trump prometeu reduzir os preços “no primeiro dia” de seu governo, mas, na realidade, o problema só se agravou, com a disparada dos preços dos ovos. Uma pesquisa mostrou que 62% dos estadunidenses acreditam que Trump não está fazendo o suficiente para reduzir os preços, incluindo 47% dos republicanos.
A classe trabalhadora, especialmente nos EUA, que está começando a se mover contra o trumpismo, ainda está limitada por suas lideranças. Isso inclui alguns líderes sindicais, que repetem os argumentos do trumpismo.
Os principais sindicatos de servidores federais não estão travando uma luta séria. Eles se contentam em entrar na justiça, com pouco sucesso. A luta que tem se desenvolvido tem sido organizada por coletivos de base, mas ainda com ilusões no Congresso e na oposição dos democratas.
Retomada das lutas
Os protestos durante a posse de Trump foram muito menores do que no primeiro mandato. No entanto, as mobilizações vêm crescendo, especialmente contra a deportação de imigrantes, e contra os ataques às pessoas trans e aos servidores federais. Em Houston, Texas, dezenas de milhares protestaram em uma manifestação organizada de baixo para cima, dominada por imigrantes latinos.
Entre 2017 a 2022, o pêndulo político apontava para a esquerda, com movimentos de massas levando a vitórias de alternativas de esquerda e progressistas em vários países. Porém, a incapacidade dessas alternativas de ir além dos limites do sistema gerou insatisfação e abriu espaço para a direita, fazendo com que, em muitos lugares, as lutas recuassem. Agora, vemos sinais importantes de retomada da luta.
Na Bélgica, 60 mil pessoas participaram de um protesto em Bruxelas contra os cortes e ataques aos direitos trabalhistas do novo governo. Em Madri, houve duas rodadas de protestos gigantes em fevereiro. O primeiro levou dezenas de milhares às ruas contra a crise de moradia. No dia 24 de fevereiro, 150 mil marcharam contra a privatização da educação proposta pelo governo regional de direita.
Na Grécia, ocorreram as maiores manifestações em mais de 10 anos em resposta a um acidente ferroviário trágico. Algo semelhante aconteceu na Sérvia. No ano passado, um movimento de massas derrubou o regime em Bangladesh e houve grandes protestos em vários países africanos contra os aumentos dos preços, a violência contra mulheres e outros ataques. Vimos também duas greves gerais e vários dias de mobilização na Argentina contra Milei.
Onde há uma alternativa de esquerda audaz, podemos ver o processo de polarização subjacente ganhando expressão também nas eleições. Na França, a esquerda em torno da França Insubmissa conseguiu barrar uma vitória da extrema-direita.
Eleições alemãs
Vimos isso também nas eleições alemãs, que até pouco tempo atrás eram dominadas pela visão unilateral sobre o crescimento da direita e da extrema-direita. O resultado do Die Linke (A Esquerda) foi muito significativo. O partido, que estava com apenas 3% nas pesquisas no fim do ano, conseguiu quase 9% dos votos, sendo o maior partido entre os jovens e na capital, Berlim.
A oposição firme contra a extrema-direita, enquanto os outros partidos competiam para ver quem era mais anti-imigrantes, e os ataques à desigualdade social e ao poder dos bilionários, inspirou um influxo de jovens no partido. Desde o começo do ano, o partido cresceu de 60 mil para 103 mil membros, com muitos dos novos membros participando ativamente da campanha eleitoral.
Somente a luta da classe trabalhadora e, em última instância, a chegada ao poder da classe trabalhadora, pode barrar esse processo de crescente autoritarismo, retirada de direitos, destruição ambiental e o risco de novas guerras.
A tarefa para os socialistas é construir as lutas e uma alternativa socialista, contra guerras, militarismo, opressões, destruição ambiental e crescente desigualdade. Uma alternativa que possa mostrar um caminho para romper com esse sistema capitalista nefasto, que gera monstros como Trump.