Por um 13 de maio com menos Isabeis e mais Marias, Mahins, Marielles e malês

Se hoje questionamos o discurso que coloca a Princesa Isabel como uma alma bondosa, salvadora e abolicionista dos negros nesse país, se hoje entendemos que essa é uma grande mentira que faz parte da história racista dessa terra é porque houve e há uma contínua luta do povo negro por recuperação histórica e pela nossa libertação. No entanto, não é difícil encontrar adultos que tenham sido ensinados desde cedo nas escolas que a assinatura da lei áurea, feita pela apelidada “Redentora”, foi um ato heroico, como embalava o samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense de 1989 “Pra Isabel, a heroína / Que assinou a lei divina / Negro dançou, comemorou o fim da sina […] Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós / E que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz”. Veja que ironia, numa cerimônia de celebração da cultura preta, ao som de um ritmo tão nosso como o samba, proclamamos a plenos pulmões a gratidão a uma figura que, na verdade, se apropriou da nossa conquista vinda, como sempre vem, da base. 

Na década de 1870, o movimento abolicionista já era muito forte. Estima-se que entre 1878 e 1885 surgiram 227 sociedades abolicionistas[1], grupos que dialogavam com a sociedade de maneira geral aumentando a consciência contra a escravidão, fortaleciam e apoiavam a resistência de escravizados, seja judicialmente ou pela desobediência civil. No caso dos que agiam no âmbito jurídico, advogados como Luís Gama (1830-1832) faziam a defesa de negros escravizados lutando por melhorias nas condições de trabalho, pelos devidos registros a que tinham direito, e pela libertação daqueles que já deveriam ser libertos se outras leis como a do ventre livre, do sexagenário e Feijó fossem de fato cumpridas. Gama, em cartas, relatou que, em sua vida, havia libertado mais de 500 escravizados, dos quais 217 em um ato considerado como a “maior ação [judicial] coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas”, de acordo com a BBC News Brasil. 

Aqueles que lutavam via desobediência civil planejavam e apoiavam rotas de fuga, greves e aquilombamentos. Um grande exemplo foi o jangadeiro Francisco José do Nascimento (1839-1914), mais conhecido como Dragão do Mar. Em 1881, ele liderou a greve dos companheiros de trabalho que se recusaram a levar os escravizados de Fortaleza – CE ao sul do país. O movimento dos jangadeiros paralisou o mercado escravista do porto da cidade que, a partir de então, foi considerado fechado para o tráfico. A força de tal movimento da classe trabalhadora negra resultou no Ceará se tornando a primeira província em que a escravidão foi abolida, quatro anos antes da tal redenção áurea ser assinada.  

Mesmo antes do período abolicionista, tantas outras ações de resistência aconteceram por todo o país, como a Revolta dos Malês, a formação de quilombos como o de Zumbi dos Palmares, do Jabaquara e do Leblon e, segundo o historiador João José Reis, trinta revoltas de escravos que aconteceram só na Bahia na primeira metade do século XIX. Hoje, parte importante do trabalho de recuperação histórica que temos a fazer é entender o desafio e o impacto que tais lutas geraram e que elas não se trataram de casos isolados. Desde que o povo africano foi traficado para as Américas e escravizado, não houve paz, não houve conciliação e falta de resistência. 

Quando os discursos que se perpetuam ao os que contam a nossa história a centralizando na ótica branca colonizadora da classe dominante, fatores essenciais para o contexto de tais mudanças são ignorados ou estrategicamente evitados. Além das ações que levaram ao avanço da emancipação da população negra no Brasil terem sido tocadas pelos próprios negros, a assinatura da lei por Isabel não foi só concessiva, mas também tardia se compararmos aos outros países da América, que passaram por processos parecidos. Para ser mais exata, fomos os últimos a abolir a escravidão no nosso continente, depois de sofrer forte pressão internacional para tal. Mas, se te contaram que quem fez essa pressão foram os europeus que avançaram em suas morais humanistas, sinto em lhe dizer que, mais uma vez ao ouvir a versão colonizadora, você foi enganado. Afinal, como maior potência marítima do século, a Inglaterra tinha a capacidade de expandir seu mercado consumidor que, para tal, precisaria ser formado por trabalhadores livres e com poder de compra, que escravizados não tinham (“livres”, mas que seguissem sendo explorados). E foi para garantir tal objetivo que o país se tornou uma referência no enfrentamento do tráfico negreiro e da escravidão e pressionando o resto do mundo.

O resultado de todo desse cenário caoticamente orquestrado foi a população recém-liberta e toda a população africana e afrodescendente do país saindo de um período de aproximadamente 350 anos de escravidão, sem nenhum tipo de reparo social. Estamos falando de 12 milhões de pessoas arrancadas de um continente a outro forçadamente. 4,8 milhões delas apenas para o nosso país. Aqui, construíram as bases econômicas e culturais não só localmente, mas financiando a própria Revolução Industrial da Europa. Vidas sequestradas, vendidas, subordinadas e exploradas por séculos, produtoras de lucros exorbitantes, que não receberam nenhum tipo de reparação. Foram deixadas a Deus dará, em uma sociedade extremamente racista a procura de emprego, com as altas taxas de analfabetismo, sem moradia, sem alimentação e sem nenhum tipo de programa de ressarcimento. 

Quando olhamos hoje a sociedade brasileira, é exatamente a continuidade de tamanha injustiça que vemos. Neste 13 de maio de 2022, completamos 134 anos de “pretos livres” contra 350 de regime (assumidamente) escravocrata. O que nós conhecemos nesse país é a injustiça racial negada. Somos a maioria: 56,10% de cidadãos pretos e pardos, representando 71% da população assassinada; 64,2% dos desempregados; 47,4% dos trabalhadores informais e 66,7% da população carcerária. É nomeando tal massacre que podemos admitir que não tivemos a nossa história colonizadora e escravocrata finalizada. Seguimos em exploração. Seguimos em resistência. 

E essa resistência continua nos exemplos de lutas travadas pelo movimento negro quando saem nas ruas contra o genocídio nas periferias, contra mais operações policiais no Jacarezinho, contra o racismo e violência de seguranças de redes de supermercados e quando uma multidão se une para expulsar uma racista de uma estação de metrô. É preciso expandir e unir essas lutas com todas as lutas da classe trabalhadora e povos oprimidos. Só assim podemos realmente acabar com o capitalismo, que depende da opressão e racismo para existir, e construir uma sociedade sem opressão e exploração, uma sociedade socialista. Precisamos nos inspirar nas lutas do passado para construir um grande movimento antirracista hoje.    

Como disse a historiadora Emília Viotti da Costa, “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.” Nos debruçando sobre nossa história, percebemos a potência que temos sido, somos e seremos até o fim da exploração de raça. É através de reparação histórica que escreveremos hinos verdadeiramente encorajadores como o da Mangueira em 2019 “Brasil, o teu nome é Dandara / E a tua cara é de cariri / Não veio do céu / Nem das mãos de Isabel / A liberdade é um Dragão do Mar de Aracati […] Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.

  • Por políticas de cotas atualizadas para negros e indígenas
  • Pelo fim da polícia militar e da guerra às drogas que têm como objetivo o extermínio da população preta e periférica
  • Pela garantia de emprego e renda como reparação histórica 
  • Unidade da classe trabalhadora para combater todas as formas de opressão e a exploração capitalista – por uma sociedade socialista.

[1] ALONSO, Angela. Processos políticos da abolição. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 360.

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