Não vamos permitir mais uma sentença às nossas vidas – Não à privatização da segurança pública!
Apesar da tendência mundial de reestatização de empresas por conta do fracasso dos contratos de privatização, principalmente nos países de capitalismo avançado, o Brasil vai no sentido contrário e aumenta as terceirizações e privatizações dos transportes, da educação, energia elétrica, água e saneamento, e agora, até mesmo da segurança pública. Desde 25 de abril de 2023, o setor de segurança pública e sistema prisional foi adicionado, junto com educação, saúde, habitação social, entre outros, ao Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI), originalmente criado por Temer em 2016.
Em 2019 já havia 32 unidades prisionais privatizadas, a maioria delas em regime de co-gestão, em que o poder público ainda é responsável 1) pelas obras, 2) na maioria das vezes pelos agentes de segurança e 3) faz parte da administração e da supervisão do cumprimento dos contratos com as empresas, mas em Ribeirão das Neves (MG) já havia o modelo de gestão de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Neste modelo, as empresas privadas são responsáveis 1) pela construção, 2) pelos serviços prestados e 3) o Estado tem apenas participação compartilhada na gestão. No entanto, em 2022, ainda no governo Bolsonaro, se deu um verdadeiro fiasco do leilão de um novo presídio em Erechim (RS) por falta de empresas aptas interessadas no negócio.
Agora, com a adição ao PPP assinada por Alckmin enquanto presidente interino e por Fernando Haddad, empresas privadas não só podem administrar presídios pelo modelo de parcerias público-privadas, como podem financiar a construção de presídios através de recursos obtidos em transações na bolsa de valores. Ou seja, mais uma oportunidade para que os super-ricos paguem proporcionalmente menos impostos, tornando assim a proposta muito mais interessante (para eles). O governo atual não só deu continuidade aos projetos dos governos Temer e Bolsonaro como os aprofundou.
Mas a redução de impostos não é o único benefício para as empresas nas PPPs, elas também recebem dinheiro público para funcionarem. Após o novo leilão realizado em outubro de 2023, o estado pagará 233 reais por dia para a empresa Soluções Serviços Terceirizados para cada vaga ocupada na unidade prisional de Erechim.
A realidade das prisões brasileiras hoje
O sistema prisional brasileiro é hoje o terceiro maior do mundo, ficando atrás apenas dos EUA e China e já enfrenta diversos problemas: superlotação, não-garantia dos direitos humanos, abuso de autoridade, crime organizado, dificuldade de ressocialização dos ex-detentos. E vale sempre enfatizar que, de ponta a ponta, esses problemas são marcados por questões de classe, raça e gênero.
Veja (dados do RELIPEN, Relatório de Informações Penais de 2023): 644.305 pessoas estão hoje no país presas em celas físicas (em regime fechado ou semiaberto), 33% a mais do que a real capacidade do sistema prisional, dos quais 180.167 ainda aguardam julgamento. 65,72% são pretos e pardos, sendo que na Bahia o grupo corresponde a 91,67% dos detentos. A maioria tem ensino fundamental incompleto. Dentre os crimes mais recorrentes estão roubo qualificado, por exemplo, quando há uso de uma arma (15,5%) e tráfico de drogas (24,6%). O número dos casos de tráfico cresceram muito desde a aprovação da Lei de Drogas de 2006, também durante o governo Lula, já que o texto aprovado tipifica como crime apenas o tráfico e não o uso de drogas, mas não estabelece quantidade mínima para tráfico e, portanto, deixa nas mãos da polícia (racista), com o aval do judiciário, determinar quem são os criminosos. Como mostram os dados acima, mas também a análise da APública, para eles, os criminosos são determinados pela cor da pele, se for escura, trata-se de tráfico. O racismo também se une ao imperialismo e entre o número de presos estrangeiros a maioria são da Venezuela, seguidos por Uruguaios e Sul Africanos.
Mulheres, principalmente pretas, pardas e indígenas, também são fortemente afetadas pela política de encarceramento em massa da suposta “guerra às drogas”. Muitas são condenadas por terem parceiros usuários ou envolvidos no tráfico e/ou por serem usadas como mulas. Mas existem elementos particularmente cruéis no caso das detentas: a pobreza menstrual, a falta do acesso à saúde reprodutiva e a reprodução das tarefas do cuidado sem as condições necessárias. Nós da LSR e das Feministas Antirracistas Socialistas, enfatizamos como o direito ao aborto legal, seguro e gratuito e toda uma série direitos reprodutivos é uma questão de vida para muitas de nós, meninas, mulheres e pessoas que menstruam, principalmente para negras e indígenas. Aqui, falando de privação de liberdade, o coro fica ainda mais forte e concreto.
Existem hoje ao menos 185 mulheres gestantes em celas – as celas próprias para gestantes são bem menos que a metade desse número (69). 102 mães presas criam seus filhos dentro das celas (sendo que 85% das crianças têm menos de 6 meses) e das 27 UF, apenas 5 têm unidades penitenciárias com creche. A moral burguesa e cristã vai dizer que as mulheres nessas condições fizeram escolhas, mas quais escolhas de fato estavam disponíveis para essas presas e presos? O grau de escolaridade, a classe social, a raça, os papéis de gênero, a falta de acesso à educação sexual, a métodos contraceptivos e ao aborto? Mesmo do lado de fora dos muros das penitenciárias, as mulheres (em sua maioria mães) são a imensa maioria nas filas de visitas e a elas também são negados tantos outros direitos.
Enquanto isso, mesmo que mulheres brancas e ricas como Adriana Ancelmom, esposa do ex-governador carioca Sérgio Cabral (ambos condenados por corrupção), ainda sejam designadas a serem cuidadoras pelo simples fato de serem mulheres, o tratamento é diferente, dentre outras coisas, por receberem o direito de cumprirem a pena em casa.
A verdade é que nosso sistema judiciário e penitenciário é extremamente punitivista, especificamente com os mais explorados e oprimidos, e inconsequente: joga as pessoas nas cadeias como se apenas estarem afastadas da sociedade fosse resolver os problemas de criminalidade, não tem papel socioeducativo para a reintegração das pessoas na sociedade e assim instigam ainda mais a violência e o ódio contra o Estado.
Não há nada que não possa piorar – principalmente do lado de cá
Em contrapartida, há quem veja nas privatizações uma saída para crise penitenciária. Bom, a experiência concreta no país com maior população carcerária do mundo, os EUA, nos mostra que essas são esperanças falidas. Dos 1,2 milhões de presos, ⅔ trabalham durante o cumprimento das penas. Para entender melhor a relação de trabalho escravo pela qual detentos nos EUA são subjugados, recomendo assistir ao documentário A 13ª Emenda (2016). Basicamente a lei da abolição estadunidense explicitamente estabelecia que presos não tinham direito a não serem escravizados. Hoje há relatos de encarcerados obrigados a trabalhar a custo de enfrentar punições adicionais, como confinamento na solitária, negação de oportunidades para reduzir sua pena e perda de visita familiar.
A lista de corporações que montaram operações dentro das prisões estaduais para lucrar com o trabalho forçado é enorme e inclui nomes como IBM, Boeing, Microsoft. Os lucros chegam a 11 bilhões de dólares da receita estadunidense. Mesmo no Brasil, a lei estabelece que trabalho é direito e dever dos presos, mas não segue as regras da CLT, e apesar de ser remunerado, o valor é muito abaixo do que eles está sendo produzido – e menor do que o recebido por trabalhadores “em liberdade” – além disso, muitas vezes essa remuneração é destinada à reparação do dano do crime, assistência à família, da sociedade, e quem está trabalhando não chega a ver a cor desse dinheiro. No texto das leis, o trabalho no regime penitenciário serve para educar, incentivar, socializar, tirar da ociosidade, mostrar ao detento como ele pode contribuir para a sociedade. Na prática, mesmo fora das penitenciárias, o trabalho é uma pena que se paga pela nossa sobrevivência para manter o sistema que gera lucro para poucos.
Imagine se uma empresa que vai receber um repasse diário por número de presos (que é em média o dobro do repasse para o setor público) não vai fazer o que estiver ao seu alcance para manter o máximo de pessoas possível pelo máximo de tempo possível em suas celas. A lógica ainda abre espaço para o crescimento de milícias, como afirmou o Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida: “Eu acho que privatização, seja de presídios, seja do sistema socioeducativo, abre espaço para a infiltração do crime organizado […] para que o crime organizado tenha mais um pedacinho do Estado brasileiro. […] Ah! Mas é só [a privatização] da estrutura [da unidade], é só para construir o prédio. Sabemos que, no fim das contas, isso vira privatização da execução da pena, algo que não pode acontecer. E não pode acontecer não só por vontade política, mas porque é inconstitucional, ilegal”.
Como jurista por formação, o Ministro traz o aspecto da inconstitucionalidade. É verdade. No caso de Erechim, os funcionários podem realizar atividades de transferência e movimentação de presos e apuração de faltas disciplinares, ou seja, têm o poder de um policial e obedecem a ordens e interesses privados. O defensor público Bruno Shimizu afirma que: “[os] contratos preveem, inclusive, a privatização da assistência jurídica. Ou seja, a defensoria pública, que tem a prerrogativa de ingresso em todas as áreas de confinamento, autonomia administrativa orçamentária, que não está submetida ao diretor do presídio, é substituída por advogados contratados pela empresa. Se houver sinais de tortura, a defensoria vai denunciar e instaurar procedimento de apuração. Um advogado contratado privado não vai processar a empresa por maus tratos, então é um jeito de você impedir uma responsabilização jurídica, de desmontar a defensoria.” E o mesmo tipo de controle acontece com outros funcionários como médicos e assistentes sociais.
E o que os governos têm feito?
Silvio Almeida, na entrevista com jornalistas da citação acima, também disse que vai continuar fazendo essa discussão dentro do governo junto ao novo Ministro da Segurança, e que nunca escondeu ser contrário a essas medidas. O fato de a assinatura ter sido feita por Alckmin levanta suspeitas sobre quão alinhado o governo estava sobre a edição do decreto. Lula não se pronuncia a respeito, mas fato é que um governo de conciliação de classe tem esses riscos sejam os ataques à direita acordados entre as partes ou não.
Em São Paulo, a figura de Bolsonaro no governo, Tarcísio, não esconde seus planos de privatização tanto da Sabesp, quanto da CPTM e do metrô e até da Fundação CASA. Tarcísio está desde já promovendo desmonte com menos oferta de cursos e atividades socioeducativas e com o fechamento de unidades que eram referências na capital, interior e Baixada Santista para depois justificar a privatização. Além dos problemas já abordados aqui sobre adultos respondendo criminalmente, no caso dos jovens adolescentes em medida sócioeducativa o caráter socioeducativo se faz ainda mais importante, visto que estão no início de suas vidas enquanto cidadãos. E na lógica do lucro essa definitivamente não é a prioridade.
Então qual a saída?
Infelizmente a criminalidade gerada pelo sistema capitalista é composta por uma estrutura complexa, injusta e muito desigual que delimita quais vidas importam, como elas vão ser vividas, quem trabalhará, quem lucrará, quem ficará desempregado, quem vai ser preso por crimes, quem não vai, quem tem direito a vida e quem não tem. É impossível pensar uma verdadeira saída para a questão da criminalidade, da socialização em uma sociedade adoecida, dependente e em situações de desigualdade extrema.
O começo para desfazer esses ciclos é questionar o punitivismo, enxergar a necessidade de real ressocialização, e construir com nossas próprias mãos uma sociedade que não crie condições para o crime e sim para o convívio coletivo, uma sociedade menos pautada em moralismos e referências fundamentalistas cristãs e mais em ciência. É óbvio que em qualquer sociedade existirão infrações, mas é nossa responsabilidade não incentivá-las e definirmos nós, a classe trabalhadora, o povo, o que são de fato infrações, como seriam as leis de uma sociedade comandada por nós para os nossos interesses coletivos.
- Pela desmilitarização da polícia militar e da segurança pública;
- Fim da política de privatização da segurança pública, estatizando e incorporando as empresas privadas ao serviço público com controle dos/as trabalhadores/as;
- Por um programa de formação das forças de segurança que seja antirracista, anti-sexista, pró-classe trabalhadora e de defesa dos direitos humanos;
- Policiamento sob o controle de conselhos civis eleitos democraticamente. Eles devem ter poderes reais, incluindo revisão das prioridades orçamentárias. Tudo isso deve ser feito de forma aberta e pública;
- Demissão e processo imediato a todos os policiais que cometeram ataques violentos machistas ou racistas;
- Pelo fim da “guerra às drogas”. Usuários precisam de acesso a cuidados em liberdade e saúde pública, além de empregos, educação e moradia – não de prisão;
- Pela revogação da Lei Anti terror;
- Pela regulamentação dos meios de comunicação e fim da transmissão de conteúdos que reforçam a violência de classe e raça;
- Por um Estado verdadeiramente laico;
- Pelo fim da opressão racial, de gênero e da exploração capitalista. Por uma alternativa socialista!