Combater a violência policial com antirracismo e anticapitalismo

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, as mortes ocorridas em decorrência de intervenções policiais, sejam fora ou em serviço, continuam alarmantes. Apesar das condenações ao Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), poucos avanços foram implementados para conter a letalidade policial. As balas disparadas encontram um perfil comum: homens pretos e jovens. Do total de 6393 mortes notificadas, 99,3% das vítimas eram do sexo masculino, com adolescentes e jovens representando 71,7%, sendo 82,7% delas negras.
Aproximando o olhar da conjuntura no estado de São Paulo, pode-se observar o avanço da política da morte de Tarcísio, governador do Estado, acompanhado de Derrite, secretário de segurança pública, que alegou anteriormente ter sido expulso da Rota por ter “matado muito”. Os casos de homicídio, apesar de, vez ou outra, serem retratados pela mídia e reforçado pelos meios de comunicação das instituições armadas como casos isolados, têm sido cada vez mais frequentes. Na direção contrária do restante do país, em que houve uma pequena queda, São Paulo é o estado onde mais cresceu, 48,6%.
Um exemplo é o assassinato de uma jovem negra de Guaianases, Zona Leste da cidade de São Paulo. Uma batida policial, que por si só já acontece, por muitas vezes, violentamente, mesmo sem nenhuma presunção de crime, resultou no disparo da arma do sargento Thiago Guerra. O policial que, transtornado, deu uma coronhada na cabeça de Kauê, irmão de Victoria Manuely dos Santos, acertou o tórax da adolescente de 16 anos.
Para aprofundar a crueldade, importante característica da militarização da polícia, que se constitui na desumanização dos “alvos” do Estado, Vanessa, mãe dos dois jovens, afirmou que os policiais não socorreram a vítima, pois estavam mais preocupados em colocar Kauê na viatura para direcioná-lo à delegacia.
Outro caso foi a morte de Gabriel Renan da Silva Soares, jovem negro executado em frente a um mercado da rede Oxxo na Zona Sul da cidade. O PM alegou que Gabriel estava armado, portanto reagiu em legítima defesa. As câmeras mostram uma situação diferente: numa situação de furto de produtos de limpeza, o policial Vinícius de Lima Britto disparou diversas vezes (onze, no total) contra as costas de um homem completamente desarmado e indefeso.
Com essas e outras histórias, a fala da Secretaria de Segurança Pública, de que a Polícia Militar não compactua com desvios de conduta, precisa ser repudiada. O que vivenciamos é, na prática, a criminalização da pobreza e do povo pobre. A política da Secretaria da Segurança Pública vai na direção contrária de qualquer iniciativa de melhores condições para combater a exclusão social e a militarização. Portanto, não devemos alimentar ilusões que essas instâncias estarão do nosso lado na luta pelo fim dessa guerra.
A guerra não vai acabar
Recentemente, vereadores, em sua maioria bolsonaristas do PL e União Brasil, apresentaram um projeto de lei que visa a censura de artistas de rap e funk. Tais gêneros nacionais e periféricos serviram e servem como denúncia da brutalidade policial, da violência vivida e para a promoção de cultura e lazer à comunidade. A tentativa de opressão dessa realidade não é novidade. Nos anos 1990, o grupo Facção Central passou por algo parecido ao lançar o videoclipe da música “Isso Aqui É Uma Guerra”, acusado de incentivar o crime e violência. A resposta surgiu em 2001, denunciando que calar a população periférica que protesta contra as injustiças e brutalidades sofridas está longe de ser uma medida que resolva o problema:
“Aí promotor, o pesadelo voltou
Censurou o clipe, mas a guerra não acabou
Ainda tem defunto a cada 13 minutos
Da cidade entre as 15 mais violentas do mundo
A classe rica ainda dita a moda do inferno
[…]
Pode censurar, me prender, me matar
Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar”
A Guerra Não Vai Acabar, Facção Central
A tentativa de criminalizar a arte da periferia data, ainda, de muito tempo atrás. É possível acreditar que o país do samba já tentou criminalizar o ritmo musical? No Código Criminal de 1830, ainda sob o Império, “vadiagem” era considerada crime e continuou a ser no Código Penal de 1890, o primeiro após a proclamação da República.
O que isso significa na prática? Que andar pela rua sem a comprovação de trabalho podia levar um sujeito à delegacia. Andar com um pandeiro na mão, também, e o mesmo aconteceu com a prática da capoeira, como conta Lira Neto em ‘Uma História do Samba’. Mesmo com a abolição da escravidão, tudo o que remetia ao negro poderia ser considerado crime, e assim parece seguir até os dias atuais.
Antirracismo e anticapitalismo andam juntos
Hajj Malik El-Shabazz, também conhecido como Malcolm X, disse inúmeras vezes: não há capitalismo sem racismo. Líderes do ‘Partido dos Panteras Negras para a autodefesa’, também enfatizaram que uma luta contra o capitalismo precisaria ser travada para a conquista de vida com dignidade para pessoas pretas. Fred Hampton e Bobby Seale, figuras importantes do partido, chegaram à conclusão de que, para uma vida com melhores condições não somente para a comunidade preta, mas para toda a classe trabalhadora, seria necessária a superação do capitalismo e do modo de vida produtivista, subjugador e opressor sobre o qual esse sistema se alicerça.
O livro “What Is Antiracism?: And Why It Means Anticapitalism” [em tradução livre, “O que é racismo e por que significa anticapitalismo?”] de Arun Kundnani aborda que os liberais optam, convenientemente, por não enxergar isso.
O autor trata o racismo como uma estrutura, uma relação de poder que existe como instrumento de opressão capaz de fortalecer os interesses da classe dominante, mantendo o caráter subjugador de uma classe em relação a outra, preservando os interesses econômicos e sociais da elite. Ele faz isso em oposição ao pensamento dos defensores da democracia burguesa, que atribuem ao racismo um sentido pessoal, e não coletivo, de preconceito que pode ser superado individualmente sob o mesmo sistema político no qual vivemos.
Analisando historicamente, se por um lado a classe trabalhadora branca era explorada pelos capitalistas, a classe trabalhadora negra enfrentou períodos severos de ainda maior exploração. Após 300 anos de escravidão, essa desigualdade não foi solucionada até hoje pela burguesia. Pelo contrário, as mazelas da população negra e povos originários sustentam o sistema econômico vigente, seja pela superexploração com baixos salários, seja pela divisão da classe trabalhadora que se coloca como obstáculo para desafiar os interesses do capital.
É preciso unir forças e derrotar o capitalismo
O processo de organização da população negra deve se dar em conjunto com o processo de organização da classe trabalhadora. Isso passa, necessariamente, por inserir na agenda das lutas o enfrentamento ao racismo e a denúncia de séculos de brutalidade.
Lutar pela desmilitarização das forças de segurança é um passo na luta pela sobrevivência, com controle democrático das polícias por parte da sociedade e movimentos. Mesmo assim, não será possível restaurar o tecido podre do sistema capitalista e garantir, na democracia burguesa, uma sociedade justa e livre das desigualdades sociais, quando sequer a população que move o país não tem a sua voz escutada.
Se o capitalismo se sustenta das desigualdades, é preciso se voltar contra ele, abolir o Estado burguês e instaurar uma outra sociedade, socialista e igualitária.
O que defendemos
Segurança pública desmilitarizada e sob controle popular
- Desmilitarizar a polícia e implementar um controle democrático por parte da sociedade e movimentos. Formação de policiais que discuta opressões e Direitos Humanos.
- Conselhos de segurança populares nas comunidades, com representantes de moradores e de movimentos negros/negras, LGBT, mulheres, direitos humanos, sindicais, estudantis etc., com direito de fiscalizar a atuação da polícia.
- Direito pleno de sindicalização de policiais e agentes de segurança. Fim da política de privatização da segurança pública, estatizando e incorporando as empresas privadas ao serviço público com controle dos/as trabalhadores/as.
- Reforma estrutural de todo o sistema judicial e penal, sob o controle dos/as trabalhadores/as, visando a diminuição da população carcerária, com penas alternativas e políticas de educação e reincorporação na sociedade.
Pelo fim da guerra aos pobres
- Pelo fim da “guerra às drogas”. Usuários precisam de acesso a tratamento e saúde pública, além de empregos, educação e moradia – não de prisão. Hoje o tráfico não é combatido por cima, só por baixo.
- O desmantelamento das organizações criminosas que operam no sistema financeiro é condição fundamental para sufocar a violência relacionada ao tráfico de drogas, roubo de cargas, tráfico de armas, sequestros, etc.
Melhores condições de vida para combater a violência e exclusão social
- Por salário, emprego, direitos trabalhistas e sociais, serviços públicos gratuitos e de qualidade, moradia, cultura e lazer.
- Por uma sociedade sem desigualdade social em que a classe trabalhadora e todos os oprimidos de hoje exerçam o poder político e o controle democrático sobre a economia, uma sociedade socialista.