Racismo no futebol brasileiro: avançar em medidas efetivas contra o racismo estrutural
2020 foi um ano de muitas manifestações populares em torno do “Black lives matter”. Além das lutas populares contra a violência policial e em favor de políticas públicas de valorização das vidas negras, o “Black lives matter” trouxe uma bagagem de ensinamentos em diversas áreas da vida social, inclusive no ambiente futebolístico. Sim, no futebol, que traz uma aparência de ser um ambiente mágico, com maior possibilidade para a ascensão social de negros dotados do devido talento. Entretanto, historicamente é, também, um ambiente muito marcado pelas desigualdades e opressões existentes e colocar o dedo nessa ferida é condição fundamental para superá-la.
A partida Paris Saint-Germain x Istanbul Basaksehir, jogada nessa atual edição da Liga dos Campeões da UEFA, trouxe uma situação inédita. O romeno Sebastien Coltescu, quarto-árbitro do jogo,ao se referir ao camaronês Pierre Webó, da comissão técnica do time turco, usou o termo “aquele cara negro”. Essa expressão provocou a revolta dos reservas do time turco, principalmente do atleta Demba Ba, que questionava a forma discriminatória contida nela, uma vez que não se usaria “aquele cara branco” ao se referir a outrem. Importante destacar essa questão, pois é pioneira essa reação, dentro do ambiente futebolístico, diante desse tipo de discriminação racial. Até então, as reações ocorriam quando havia falas e atitudes comparando negros a macacos, mas essa nova reação traz um novo enfoque para a luta antirracista no esporte e uma necessidade de educação nos clubes e federações acerca desse tema.
Digna de nota, também, em termos de reação ao racismo desse campo, foi a iniciativa dos jogadores do time francês, liderados por Mbappé. O time decidiu pela retirada de campo até que o quarto-árbitro fosse excluído da partida. Como isso não se concretizou, a partida somente se reiniciou no dia seguinte. Também foi um importante ato de pioneirismo na luta antirracista e que pode ser seguido em outras situações. A verdade é que a reação contra o racismo no futebol foi levantada e pode gerar novos caminhos. A recente punição da Confederação Inglesa ao atacante uruguaio Cavani, do Manchester United, por usar a expressão “negrito”, também traz a necessidade desse debate.
Aqui no Brasil, situações similares também ocorreram nesse mesmo sentido. O jovem atleta Luiz Eduardo, de 11 anos, jogando um torneio amistoso em Caldas Novas (GO), ficou revoltado com os gritos do treinador adversário aos seus comandados “fecha o preto aí, ó!”. Saiu chorando de campo, mesmo após a vitória do seu time nessa partida. Seu lamento foi amplamente noticiado na imprensa esportiva nacional. Leones Santiago, pai do menino, expressou a importância de seu filho, apesar de ser tão jovem, não ter se calado diante dessa violência: “Achei muito bom que ele não tenha sofrido calado. Ele aguentou o jogo inteiro o treinador do outro time falando palavras e ofensas racistas, para no final ele compartilhar isso com o treinador dele”.
No futebol profissional, pela atual edição da série A do Brasileiro, o jogador Gérson, do Flamengo, acusa o colombiano Ramirez, do Bahia, de ter se referido a ele com um “cala a boca, negro!”, no momento de reação da equipe baiana no jogo. Essa situação envolveu outras personagens e variáveis, como a discussão com Mano Menezes (ex-treinador do Bahia, demitido após o jogo, após vários resultados ruins), a acusação de xenofobia do jogador Bruno Henrique e o imbróglio de leituras labiais feitos pelos dois clubes. É um caso ainda a ser analisado e julgado, mas que foi importante por colocar a resistência ao racismo na ordem do dia.
Esses são os principais casos recentes de racismo no futebol brasileiro. Mas esses casos se somam a inúmeros outros, ocorridos nos últimos anos, seja por jogadores, dirigentes, torcedores, jornalistas e outros, nos estádios ou nas redes sociais. O Observatório da Discriminação Racial no Futebol é uma organização que contabiliza esses dados e faz uma análise sobre os mesmos e por seus números, os casos de injúria racial no futebol brasileiro tiveram aumento de 235% entre 2014 e 2019. E com aumento contínuo, ano após ano. A existência de governos de direita, como o de Bolsonaro, em que políticas públicas de combate aos preconceitos são negligenciadas, é uma importante razão para esse contínuo aumento. A geração de um clima de impunidade sobre esses delitos é fator de crescimento de casos de racismo no país. Entretanto, a maior consciência da importância da denúncia desse crime também é outro fator que explica esse crescimento nas estatísticas sobre racismo no futebol brasileiro.
O ano de 2020 não apresenta números maiores no futebol, por ter sido um ano atípico, sem torcedores nos estádios e com temporada menor. O encolhimento do calendário e a inexistência de público pagante provocaram uma diminuição nos números absolutos desse ano, mas não em termos relativos, segundo o mesmo Observatório. Não é incomum, por exemplo, quando um jogador negro falha em algum lance capital da partida, sofrer injúrias raciais por parte de torcedores na internet. Fazer esse trabalho de mapeamento das diversas discriminações (raciais principalmente, mas também de misoginia, de lgbtfobia e xenofobia) possibilita ajudar na apuração dos casos e deveria servir de apoio para as federações de futebol e para os clubes punirem elementos racistas em seus espaços e eventos. Cobrar dessas instituições um papel cada vez mais ativo na punição a quaisquer formas de discriminação seria um importante elemento para evitar o silenciamento desses casos e espantar a impunidade nos delitos raciais.
Exigir a punição aos casos de injúria racial é importante, mas fundamental é questionar o racismo estrutural
A rigorosa apuração de todos os casos de injúria racial no futebol brasileiro seria um passo importante para combater a prática e serviria como medida punitiva e educativa para a diminuição de casos. A apuração e o julgamento devem, inclusive, chegar até à responsabilização dos clubes, a fim de envolverem os mesmos no processo de educação de atletas, dirigentes e torcedores. Isso é fundamental, mas não basta para diminuir substancialmente o racismo no país. Para isso, é necessário relacionar o recente caso de profunda elitização dos estádios de futebol (transformando-as em “falsas arenas”) com o racismo estrutural e também, expor, às escancaras, as raízes do racismo na história do futebol brasileiro.
O Brasil, principalmente a partir da adoção de uma suposta política desportiva baseada em megaeventos esportivos no país, transformou os objetivos, a arquitetura e o público-alvo das principais instalações esportivas no país. Antes, eram espaços voltados para receber parcelas enormes de torcedores (muitas vezes, ultrapassando a casa dos 100 mil pagantes). Os espaços populares no Maracanã eram a arquibancada e a geral, espaços bem populares, que podiam ser acessadas através da compra de ingressos relativamente baratos e sem grande burocracia.
A mudança estrutural no futebol brasileiro, marcada por uma profunda elitização desse espaço, começou com a privatização dos estádios. A privatização trouxe uma nova arquitetura dos mesmos, com diminuição do número de pagantes e também, aumento considerável do preço dos ingressos. Nesse aspecto, a prioridade de aquisição em favor de “sócios-torcedores”, com uso de cartões de crédito e de sistema de vendas online, foi outro importante aspecto de elitização dos estádios. A concepção desse processo é a transformação do torcedor em um “cliente”, um consumidor da marca do clube e das empresas patrocinadoras do mesmo. Isso foge completamente à outra concepção, que marcou o futebol brasileiro, de um torcedor-raiz e não é à toa que surgiram inúmeros movimentos de recuperação da tradição de torcidas.
A elitização da clientela nos estádios provocou um embranquecimento brutal no público pagante nos espetáculos esportivos no país. Todo esse processo ocorre em um momento de avanço do neoliberalismo no Brasil, com muitas empreiteiras assumindo a gestão de obras públicas (em estádios e também em outros espaços da cidade). E o governo do país, na época, era do PT, com ministério dos esportes entregue a partidos do centrão, com o objetivo de buscar “governabilidade”. A substituição de uma política desportiva baseada no desporto educacional, conforme reza a constituição federal, por uma política de cidades em que o esporte é usado como instrumento de implementação da lógica da comercialização das cidades, inclusive com amplo espaço para a gentrificação, foi característico desse período.
A reversão desse processo elitista é condição fundamental para que o país possa recuperar a essência popular do futebol e combater o racismo estrutural que sempre imperou no futebol brasileiro.
Eliminar barreiras para a inserção de negros nas instâncias de poder do desporto nacional
Outro ponto que caracteriza o racismo estrutural no futebol brasileiro é a quase inexistência de negros nas instâncias de poder do desporto nacional. Mesmo no futebol (e em outras modalidades, em que atletas negros e negras tenham tido sucessos competitivos), é incomum encontrar negros nos espaços de poder do clube, do departamento de futebol e até mesmo do elenco. Isso é muito perceptível em termos estatísticos e também analisando o processo histórico do futebol no país.
Dos 40 clubes das séries A e B do Brasileirão 2020, atualmente apenas 4 treinadores são negros, a saber Marcão (Fluminense), Jair Ventura (Sport Recife), Hélio dos Anjos (Náutico) e Rodrigo Chagas (Vitória); alguns desses são considerados, pelo próprio clube, como interinos nesse cargo. Na área da gestão, é pior ainda a porcentagem: dos 40 clubes, apenas a Ponte Preta tem um presidente negro, Sebastião Arcanjo. Importante destacar que esses 40 clubes promovem campanhas isoladas contra o racismo e também, tiveram ídolos negros no futebol; mesmo assim, é pouco comum que coloquem seus ex-ídolos em posições como treinador, como gerente de futebol e até mesmo, como capitão nas diversas partidas (embora nesse caso, devido à inconstância maior, isso ocorra com um pouco mais de frequência).
Em termos de direção de clube ou de departamento de futebol, entretanto, essas posições ainda são bastante inacessíveis aos negros. Há uma evidente segregação desses espaços de poder dentro das estruturas de um clube desportivo, mesmo com o apelo popular que esses clubes carregam através de seus aficionados. A baixa representatividade negra nos espaços de poder do futebol brasileiro é um traço marcante do racismo estrutural que há em nossa sociedade e que é preciso buscar meios necessários para combater.
Podemos tentar entender esse fenômeno analisando historicamente o surgimento e o progresso do futebol brasileiro. A inserção dos negros no futebol brasileiro se deu de maneira complicada e lenta. Inicialmente, no final do século XIX e início do século XX, o futebol foi trazido para o país por uma elite econômica e intelectual, deixando de fora trabalhadores e negros. Alguns clubes, desde essa época, furaram essa barreira, casos do Bangu e Ponte Preta, mas a tendência geral era de um jogo entre camadas ricas e brancas. A partir da década de 1920 e 1930, ocorre uma mudança no futebol brasileiro, com uma crescente, mas turbulenta, inserção de negros e pardos nas equipes. Em meio a muitas situações excludentes, inclusive com uso de pó-de-arroz para esconder a cor de pele escura de alguns atletas, tez inaceitável na mentalidade eugênica da época, o talento de muitos jogadores negros e pardos foi, paulatinamente, sendo reconhecido. A Copa do Mundo de 1938 foi um marco nesse aspecto, tendo o atacante negro Leônidas da Silva como o grande craque brasileiro na época.
Segundo a lógica do pensamento de intelectuais como Mário Filho e Gilberto Freyre, a mistura de raças no Brasil permitiu aspectos positivos à sociedade brasileira; no futebol, isso se travestia na formulação de um jogo mais espontâneo, mais aberto ao improviso, mais talentoso e menos esquemático. E essa linha de raciocínio permeou, durante muito tempo, no pensamento étnico dominante no futebol brasileiro. De certa forma, favoreceu a penetração de muitos negros nos elencos de futebol em todo o país. Era apresentada como uma amostra da “democracia racial” existente em nossa sociedade e esse mito ainda passa por muitos que não conseguem perceber os espaços de segregação existentes historicamente na sociedade brasileira.
Esse pensamento, que valorizava o improviso como uma herança da miscigenação no futebol brasileiro, ao mesmo tempo que possibilitava aumentar o número de jogadores negros, estabeleceu a ideia de que o negro é muito bom para as atividades braçais ou atividades que exigem um improviso ou jogo de cintura, mas que intelectualmente não seria adequado. A histórica exclusão de negros e negras nos ambientes escolares no Brasil, trouxe a ideia de que o atleta negro seria um “operário da bola”. Seria um sócio-atleta, alguém que participaria do clube como um empregado, que jogaria pelo clube, geralmente em uma sede diferente da sede frequentada pelos sócios-contribuinte do clube. Ou seja, a exclusão social existente na sociedade era reproduzida no futebol brasileiro, especificando espaços adequados a cada um, de acordo com suas condições financeiras e de etnia.
O capitalismo é um sistema de exploração e exclusões sociais. Sua lógica não passa pela socialização de riquezas produzidas, mas a produção e reprodução de status hierarquizados entre setores sociais. O futebol dentro desse sistema não é um mundo que se livra dessa lógica; embora abra espaços para alguns poucos que conseguem, através de um talento muito especial e em situações muito específicas e extraordinárias, ter acesso a salários altos, a grande maioria dos profissionais da área vive nas condições de insegurança, comuns a imensa maioria da população brasileira. E isso também tem razões classistas e étnicas na produção e reprodução dessas desigualdades. O combate a esse sistema, explorador e excludente, é o caminho para a verdadeira superação das desigualdades existentes no país, seja no futebol ou em outras áreas.
Importância e limites de torcidas antifascistas
O surgimento de torcidas organizadas de diversos clubes com conteúdo político de esquerda traz um elemento muito importante. Como aspecto educacional, por não reproduzirem os discursos racistas, misógino e homofóbicos, tão comuns nas arquibancadas, essas torcidas são muito importantes para o avanço da consciência social da população brasileira. Exemplo maior dessa importância ocorreu, justamente, logo após o brutal homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL-Rio de Janeiro): a organização que puxa as manifestações populares contra esse homicídio foi a torcida Botafogo Antifascista.
Mas é preciso ser vigilante e seguir, de forma especialmente precisa, ao lema “Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”, da Resistência Coral, do Ferroviário (CE). Importante destacar isso para que o clubismo não embace as análises, colocando as preferências de clube acima dos interesses de classe e de luta contra todas as opressões. Passar pano para uma discriminação, alegando que outra seria ainda mais grave, como forma de defender jogador de seu próprio clube não é tarefa para os que tem compromissos com a luta antifascista e antirracista.
Aplicar esse princípio no dia-a-dia, na análise de cada caso, é função primordial. Rejeitar o clubismo e combater todos os tipos de discriminação é o posicionamento correto para crescer o movimento antirracista no futebol brasileiro. E com certeza, com grande repercussão na sociedade brasileira como um todo.
As torcidas antifascistas devem continuar assumindo um papel protagonista na luta contra a direita, contra grupos supremacistas e fascistas, como feito nas movimentações em meados desse ano. Devem continuar exercendo um papel educacional, nas arquibancadas e fora dela, contra toda forma de preconceito. São um passo em frente para a organização popular, com um fim específico. Nesses momentos, não é muito complicado unir forças em termos de unificação da luta, sem clubismo. Esse é o caminho, inclusive, para um maior peso quantitativo delas.Mas o grande desafio é posicionar-se com o mesmo espírito de luta e de união, mesmo quando envolver polêmicas entre os clubes. Isso é fundamental para que as torcidas antifascistas consigam chegar ao patamar do “nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes”.