Crise da água em São Paulo: Fenômenos climáticos, falta de planejamento, jogo de interesses e negligência
Nos últimos meses, estamos vivenciando uma das maiores estiagens no Sudeste do Brasil. A região abriga um dos maiores sistemas de abastecimento de água do mundo, o Sistema Cantareira. Diante dessa estiagem, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) corre sério risco de ficar inteiramente sem água. Fora da RMSP, outras cidades que dependem dos rios que abastecem o Cantareira já estão sofrendo com o desabastecimento.
Entretanto, o risco de desabastecimento abrange não somente a área de cobertura do Cantareira, pois o sistema adutor metropolitano de São Paulo é interligado e a água de um sistema pode abastecer parte do outro. Dessa forma, pode-se reduzir a área de influência do Cantareira e sobrecarregar os demais. Mas nenhum deles tem condições de suprir por muito tempo essa lacuna.
Se é verdade que, até o momento, não podemos controlar os eventos climáticos, como a estiagem, também é verdade que já é possível prevê-los e precaver de seus efeitos. Mas o problema não é causado somente por São Pedro. Há mais de uma década que os especialistas vêm alertando para o colapso no sistema de abastecimento de água de São Paulo. Há um crescimento substancial da demanda sem contrapartida na oferta.
Nos últimos vinte anos, não houve a construção de um único sistema de tratamento de água, veja: Cantareira (construído em 1973); Alto Tietê (1993); Guarapiranga (1958); Rio Grande (1957); Ribeirão da Estiva (1973); Baixo Cotia (1960); Alto Cotia (1914); Rio Claro (1937).
Não é de hoje que os sistemas de abastecimento de água da RMSP já vêm trabalhando no limite. Pouca coisa foi feita no sentido de aumentar a capacidade de reservação, a eficiência na distribuição, o desenvolvimento de novas opções de abastecimento e o uso diferenciado. Alckmin reclama da estiagem, mas veja os gráfico dos últimos 5 anos. As obras emergenciais custam muito caro à população e possibilitam para empresas ganhar dinheiro.
Nível das represas do sistema Cantareira desde janeiro de 2010.
Jogo de interesses
No mesmo período, o lucro da Sabesp foi bilionário e continua crescendo. Em 2009, foi de R$1,37 bilhões. Em 2012, pulou para R$1,9 bi e, em 2013, deve chegar próximo aos R$2 bilhões. Nos últimos cinco anos, a Sabesp acumulou um lucro líquido próximo a R$8 bilhões. Desse montante, os acionistas abocanharam pelo menos R$2 bilhões. Aqui está um dos problemas que impedem os investimentos em mais em obras de reservação de água, redução de perdas e reuso da água. Gastar em reservatório não garante lucros, pelo contrário.
Essa lógica privatista acompanha todos os governos nos últimos vinte anos. Inicialmente, a ideia era privatizar a Sabesp. Por isso a empresa foi fatiada em unidades de negócio e, se necessário, vendê-la por região. Não prosperou a privatização, porque havia confusão jurídica sobre a concessão do saneamento e também por causa da rejeição da população. Mas isso não impediu que a empresa fosse privatizada por dentro. Além disso, a aprovação das PPP no governo Lula/PT possibilitou que o governo do PSDB repassasse sistemas inteiros, como o Alto Tietê, ao setor privado, deixando a população à mercê da gula dos empresários.
O serviço é privatizado por dentro
Hoje, a maior parte dos serviços de saneamento é executada por empreiteiras. Aqui reside outro problema grave: Essas empreiteiras são grandes financiadoras de campanhas eleitorais do PSDB e seus aliados, muitas delas aparecem nas prestações de contas no TSE.
Há uma clara política de passar os serviços, que deveriam ser executados pela Sabesp, para empresas terceiras. Essas empresas, para reduzir custos, não executam as obras conforme as normas de qualidade. Assim, ocorrem os vazamentos e outra empreiteira vai lá consertar.
A terceirização exacerbada na Sabesp nada tem a ver com redução de custo ou melhoria na qualidade. Por exemplo, a pesquisa de vazamento não visível custa R$638,00 por quilômetro de rede. Se cada técnico da empreiteira pode fazer até 5 km por dia, ele pode fazer até 110 km/mês. Ou seja, o trabalho desse técnico pode custar para Sabesp R$70.180,00 por mês. A empreiteira paga para ele quanto? Se fosse feito com empregado da própria Sabesp, não sairia mais que R$7.000,00 com todos os custos.
Os profissionais da Sabesp tem alto nível técnico e são conhecedores da realidade do saneamento, mas são substituídos por mão de obra rotativa e nem sempre especializada. São contratadas empresas que apresentam uma pequena equipe de profissionais que são especializados, mas que não vão executar os serviços. Há muito tempo que a Sabesp deixou de ter equipes especializadas em fiscalização. Hoje, tem empreiteira fiscalizando empreiteira! Pode isso?
Nos últimos anos, a Sabesp tornou-se refém das empreiteiras. Se acaba o contrato, não tem quem faça os serviços. Se existem tecnologias novas, de melhor qualidade e mais baratas, mas que não constam no contrato, não podem ser utilizadas. Isso ocorre, por exemplo, com a utilização de ferro fundido e PVC nas tubulações de água. Como as empresas que assentam as redes não tem pessoal treinado e nem equipamentos, não assentam rede em PEAD (material que tem menor incidência de vazamentos).
O resultado é visto nas ruas: muitas valas com péssima pavimentação, esgoto transbordando e muito, mas muito vazamento. Cerca de 30% da água tratada é perdida nos vazamentos. Os serviços mal feitos trazem consequências financeiras, ambientais e de saúde pública.
A Sabesp, além de tudo, ainda arca com a falta de compromisso das empresas terceirizadas com seus empregados. Há milhares de processos desses trabalhadores contra a empresa pois, quando as empreiteiras não os pagam, eles entram na justiça do trabalho e arrolam a Sabesp como corresponsável. Em março, um porteiro terceirizado acorrentou-se no portão da ETE Parque Novo Mundo, impedindo o acesso às dependências da empresa enquanto não fosse pago seu salário atrasado.
Aquilo que é essencial para o governo e seus financiadores de campanha é contrário aos interesses da população.
O governador vem insistindo, desde dezembro de 2013, que não vai ter rodízio de água. Essa orientação é, no mínimo, irresponsável. Mas, ela atende a dois interesses: dos acionistas (para não reduzir a lucratividade com a redução da venda do produto) e à reeleição do governador.
Acionistas só reconhechem o lucro
Se depender do acionistas, vende-se até a última gota de água. E quanto mais raro for o produto, mais caro fica. Isso ganha maior importância quando se trata do produto essencial à sobrevivência. Quando acabar a água das represas, eles migrarão para água engarrafada. Veem oportunidade em tudo, principalmente na miséria do povo.
Quanto à reeleição de Alckmin, a chance de haver um suicídio político aumenta a cada dia e o governador está apostando numa ajuda do céu. Assim como houve um verão atípico, pouco chuvoso, poderá haver um inverno chuvoso e os menos avisados continuariam votando nele. Entretanto, se não chover, a água acaba em agosto, ou seja, antes das eleições. Mas, nada garante que o outro grupo que entrar no governo não continue com a mesma política de atender aos interesses dos empresários.
Do ponto de vista ambiental, os danos podem ser irreversíveis. A fauna e flora da região da bacia do Cantareira estão sob séria ameaça. A redução dos peixes já vem ocorrendo ano a ano, mas, com a redução dos níveis de água, a concentração da poluição piora muito a sobrevivência de animais aquáticos. Espécies inteiras podem desaparecer para sempre dessa região, provocando efeito cascata em outras espécies e, consequentemente, no ecossistema.
Risco de colapso total
O risco de colapso é muito grande e as consequências são maiores ainda. Se o ritmo de queda dos níveis de água continuar como está, teremos colapso total no sistema de saneamento em São Paulo. Mesmo se chover acima da média dos últimos anos nos próximos meses, estará comprometido o abastecimento de água a curto e médio prazo.
Uma cena impensável seria ver alguém assaltando um mercado para pegar água para sobreviver. Pois é, isso não está descartado se o sistema entrar em colapso. Será praticamente impossível para as pessoas comprarem água engarrafada para suprir todas as necessidades por muito tempo.
Além disso, a incidência de doenças transmitas por água contaminada ou por falta d’água pode ser alarmante e a quantidade de mortes pode chegar a níveis nunca vistos. Pesquisa do Ministério da Saúde aponta que 80% das internações hospitalares no Brasil poderiam ser evitadas se tivéssemos saneamento adequado e que, para cada R$1,00 investido em saneamento, economiza-se R$5,00 em saúde curativa. Mas o que temos nesse caso de São Paulo é um processo inverso, o que pode gerar um impacto imprevisível.
Isso nos leva a conclusão de que o governador Geraldo Alckmin está cometendo crime contra a saúde pública, colocando milhões de pessoas em risco, além de crime contra o meio ambiente.
O afastamento do governador deveria ocorrer o mais breve possível, independente das eleições, pois não se trata de uma situação normal, onde podemos gostar ou não da gestão de um governo. Mas, sim, de colocar em risco a vida de milhões de pessoas e seres vivos.