Comissão Nacional da Verdade: limites e contradições
No fim do primeiro ano do governo Dilma foi criada a Comissão Nacional da Verdade. Esse órgão, sem autonomia financeira e submetido ao gabinete da presidência, é composto por membros escolhidos diretamente pela presidente e tem a função de investigar os crimes cometidos pelo Estado no período compreendido entre 1964 e 1988, período em que perdurou a ditadura civil-militar brasileira. Entendida por muitos como um compromisso da presidenta com o seu passado militante e, mais além, com a pauta dos direitos humanos no Brasil, a Comissão tem inúmeras problemáticas e deve ser analisada dentro de um complexo jogo de interesses.
Há mais de 20 anos depois do que chamamos de ‘abertura democrática’, a história da ditadura civil-militar ainda está diluída no discurso de diversos setores da sociedade que têm leituras divergentes sobre o período e o impacto do regime no Estado democrático de direito. Ainda sem discurso oficial, o Estado brasileiro precisaria revirar os esquecidos arquivos do período da ditadura e, por exigência das Cortes, apresentar uma versão consolidada sobre o período perante a sociedade. A criação da Comissão veio, então, no sentido de adequar o Estado brasileiro à concepção de Estado imposta pelas Cortes, que possuem políticas rígidas contra modelos totalitários de governo.
De caráter estatal e não popular, a Comissão tem graves limitações. Sua composição é alheia à militância histórica dos movimentos sociais em torno das causas dos presos e torturados pelo regime: não aglutina, para além da formalidade, as intervenções da população em torno desse assunto polêmico. Para além disso, tem caráter explícito e declarado de “reconciliação nacional”. O projeto de lei de sua criação foi formatado em comum acordo com os chefes das Forças Armadas e, não só não pretende revisar a Lei da Anistia e punir os torturadores, como não tange o caráter civil da ditadura militar, deixando imaculadas tantas empresas e indústrias – relegando suas contribuições ativas ao regime militar ao esquecimento.
“Pela memória, verdade e justiça” – A Comissão abrange a memória de alguns, relativiza a verdade e simplesmente se abstém da justiça. Tamanha diplomacia com os setores militares abre margem para o fortalecimento e ameaça de insubordinação, tal como já ocorrido no governo Lula. A articulação de um movimento de criação de uma “comissão paralela” no Clube Naval sem medidas punitivas por parte do Ministério da Defesa comprova uma docilidade perigosa do governo com as Forças Armadas. E vai na contramão das reivindicações sociais em torno do assunto.
Esses limites todos não são inerentes à condição institucional da Comissão. Órgãos à imagem e semelhança da CNV foram criados em outros países sul-americanos e, como ocorrido na Argentina e no Uruguai, chegaram a condenar à prisão perpétua torturadores já bem idosos. A superficialidade das iniciativas governistas nessas questões expõe até onde se dá o comprometimento do governo Dilma com a causa histórica dos direitos humanos e os direitos democráticos no Brasil.
Se, por um lado, os governistas e os iludidos comemoram o ato de restituição simbólica dos mandatos dos deputados cassados à época da ditadura (1965, instituição do bipartidarismo no Brasil através do AI-2) por outro, a não intervenção nos conflitos no campo, a ação violenta da Marinha no Quilombo Rio dos Macacos, as repressões aos trabalhadores em greve nas obras do PAC e aos estudantes em mobilização nacional por melhores condições universitárias, e a promulgação da Lei Geral da Copa mostram que o estado de exceção não foi superado e não é exclusivo do passado. O modus operandi da polícia brasileira é herdeiro da ditadura bem como as repressões ao direito democrático de livre manifestação.
Enquanto todas essas práticas se perpetuarem livremente e os torturadores continuarem impunes, todo e qualquer órgão memorial será infrutífero para a sociedade de conjunto. Contra a criminalização dos que lutam hoje e os que resistiram no passado, em memória dos que tombaram por uma sociedade mais justa e igualitária, reivindiquemos uma história militante e construída na base dos movimentos sociais.