Como manter a saúde mental em uma sociedade doente?
O tema da saúde mental tem sido amplamente veiculado, sobretudo relacionado aos impactos que a pandemia do COVID-19 pode gerar em termos de sofrimento psíquico. Profissionais têm sido convocadas/os a abordar o tema em diferentes meios de comunicação e a divulgar estratégias de cuidado em saúde mental. Assim como youtubers, blogueiras/os e digital influencers dispararam conteúdos de “promoção de saúde mental” que, por vezes, soam como receitas pré-moldadas que desconsideram a diversidade de contextos sociais, históricos e culturais que vivem milhões de pessoas em solo brasileiro.
A expansão do coronavírus mundialmente, a velocidade do contágio, o alto número de mortes, a necessidade de aumentar e criar hábitos de higiene que não eram comuns, o alto número de informações a todo o momento sobre o tema, a imposição do isolamento físico, são vetores que modificaram drasticamente o nosso cotidiano e incidem em nossa saúde mental. Assim como a brusca redução da comunicação e contato presencial, das partilhas e trocas com outras pessoas, nos impactam diretamente já que somos seres que nos constituímos nas relações sociais e nos afetos que nos provocam.
A rotina de vida imposta pela quarentena colocou como impedimento a possibilidade de escolher o que fazer, para onde ir, com quem encontrar, o que consumir, algo nunca antes sentido e/ou pensado por diversos setores da população. Por outro lado, uma grande parcela da população é impossibilitada de aderir a quarentena, pela necessidade de trabalhar para ter o que comer e/ou por fazer desempenhar funções nos serviços essenciais, o que também gera instabilidade e sofrimento.
Cada pessoa sente a combinação de tais elementos de forma diferente, pois somos pessoas com histórias de vida em locais distintos, o que implica que necessariamente sentimos e compreendemos o mundo, as relações, as atividades cotidianas, as artes e, inclusive, a pandemia, de maneira singular, cada uma a sua maneira. Para além disso, diante de um contexto de extrema desigualdade social, que combina a exploração do humano pelo humano com diversas opressões, gerando diversas camadas e condições de vida para a população, é praticamente óbvio que sejamos atingidas/os de maneiras diferentes pelo contexto da pandemia, mas ainda assim, muitos insistem em dizer que estamos no mesmo barco.
Um mesmo mar revolto, mas não no mesmo barco.
A título de ilustração, uma mulher negra que vive na periferia de um grande centro urbano, mãe solo de três crianças, que sustenta a casa com dinheiro do trabalho informal como doméstica e depende diretamente das políticas sociais (escola, saúde, assistência social públicas), que precisa se deslocar em transporte público por 2 a 3 horas por dia, experimenta um cotidiano radicalmente desigual e diferente de um homem branco, empresário, que vive no centro da cidade, que se desloca de carro próprio e que pode acessar qualquer bem de consumo e serviço que desejar.
Essa desigualdade brutal está posta previamente, ou seja, o que a pandemia de fato evidencia e aprofunda são as desigualdades impostas pelo sistema capitalista, especificamente, pelos mais ricos sobre todo o conjunto de trabalhadoras/es. Enquanto algumas pessoas estão protegidas, a maioria não está.
O acesso aos serviços de saúde, aos testes do COVID-19, aos leitos de UTI é completamente desigual. Em São Paulo, por exemplo, enquanto as 03 subprefeituras de áreas mais ricas e centrais concentram 60% de leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS), 07 subprefeituras de regiões periféricas, onde vivem aproximadamente 2.375.000 pessoas não tem acesso a nenhum leito. Não por acaso, a maioria das pessoas viventes nas periferias são negras. As diferenças entre casos confirmados e mortes também são assustadoras. Na segunda semana de abril, enquanto na região nobre do Morumbi haviam 279 casos confirmados e apenas 07 óbitos, no bairro periférico da Brasilândia foram 89 casos confirmados e 54 mortes!
A diferença de gênero também se impõe: na segunda quinzena de abril também em São Paulo, dentre os casos confirmados para COVID-19, 4.227 eram homens e 9.356 eram mulheres! Uma diferença que se deve à uma combinação de fatores: as mulheres ainda são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico não remunerado que também envolve o cuidado com as pessoas da família (ir às compras, levar ao médico, realizar atividades básicas do cotidiano), além de serem a maioria das profissionais de serviços essenciais (saúde e assistência social), bem como de serem as principais trabalhadoras de serviços de limpeza. Ou seja, estão na linha de frente do combate ao coronavírus e, ao mesmo tempo, mais expostas à contaminação.
Como poderíamos dizer que estamos todas no mesmo barco, sofrendo os mesmos impactos na saúde mental com diferenças tão evidentes?
Soma-se a esse cenário a postura irresponsável, criminosa e genocida do presidente da República que governa instaurando crises, gerando confusão de informações, negando a gravidade do problema de saúde pública, minimizando as situações de risco enquanto os números de mortos só aumentam. Além de gerar insegurança, o recado está evidente: é a economia acima das vidas, custem quantas custarem.
A combinação de tais elementos tem gerado sérios impactos na saúde mental da população: ansiedade, medo, insônia, tristeza, irritabilidade, agitação excessiva. Isso é inegável e não há pretensão de minimizar esse sofrimento, tampouco de falar dele de forma generalizante. Por outro lado, vale questionar: será que estes impactos só estão acontecendo agora? Seria só no contexto da pandemia, do isolamento físico, que estamos padecendo? Como pensar os impactos na saúde mental desconsiderando os determinantes sociais da saúde citado acima?
Ampliando o olhar: muito além da pandemia
Algumas informações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no relatório “O Peso dos Transtornos Mentais na Região das Américas” (2018) indicam que 86% da população brasileira convive com algum tipo de sofrimento mental, como ansiedade e depressão. A ansiedade atinge mais de 260 milhões de pessoas no mundo, sendo o Brasil o país “mais ansioso”: cerca de 18,9 milhões de pessoas sofrem com a ansiedade. Já a depressão atinge mais de 300 milhões de pessoas no mundo, de todas as idades, sendo as mulheres mais afetadas que os homens. No contexto brasileiro, cerca de 12 milhões de pessoas sofrem de depressão. É a maior taxa da América Latina e a segunda maior das Américas, atrás apenas dos Estados Unidos. A maior parte das pessoas não tem assistência adequada, sendo o investimento em políticas públicas direcionadas à saúde mental baixíssimos.
Se mirarmos o contexto social, econômico e político em que vivemos, teremos algumas possíveis respostas para sermos tão ansiosas/os, depressivas/os. A crise econômica, social e política que o mundo inteiro atravessa, apresenta particularidades neste solo construído historicamente sobre a colonização genocida dos povos originários e da escravização de pessoas negras, que segue a rigor uma agenda neoliberal que afeta diretamente as pessoas mais pobres em benefício de alguns super ricos.
Nos últimos anos, foram inúmeros ataques nos direitos trabalhistas para sustentar os lucros dos super ricos. Conquistas históricas foram completamente eliminadas ou deturpadas, como é o caso de ter seus direitos básicos sujeitos a negociação individual com os patrões, ao invés da força coletiva através de um sindicato, bem como a aprovação da reforma da previdência, que implica na maioria das pessoas brasileiras terem que trabalhar até a morte, sem nunca alcançar o “benefício” da aposentadoria. Tais reformas fragilizam o conjunto da classe trabalhadora de formas que talvez ainda nem possamos imaginar.
Acrescente a esse conjunto trágico, o ideal profundamente difundido pela racionalidade neoliberal de que a solução é o empreendedorismo de si mesmo, responsabilizando direta e individualmente as pessoas por inventarem formas de gerar trabalho e renda. Vemos então um crescimento de microempreendedores individuais que não têm nenhum tipo de garantia em termos de direitos trabalhistas e proteção social. Isso só aumenta e estimula a competividade entre as pessoas, o que é extremamente funcional para o sistema capitalista e o benefício dos bilionários, que seguem com o crescimento de suas fortunas a todo o vapor.
Estas informações permitem vermos que a vida no Brasil das incertezas já provocava graves impactos em nossa saúde mental. A questão é que a saúde é determinada socialmente, entretanto, é abordada como se fosse uma questão individual e, para isso, também há consequências, como a patologização individualizada dos males sociais.
Os efeitos psicossociais das experiências cotidianas de violência oriundas do racismo, do cis-hetero-sexismo, da LGBTfobia, do capacitismo, da xenofobia, da gordofobia, tão presentes no contexto brasileiro, também são elementos causadores de adoecimentos e, muitas vezes, abordadas como questões individuais quando, na verdade, são reveladoras de estruturas de opressão que se combinam com a exploração.
Essas pessoas são frequentemente patologizadas como ansiosas, estressadas e/ou depressivas, por exemplo. Assim, torna-se “desajustada/o” quem não responde bem a um contexto altamente precário ou hostil à sua existência, sendo responsabilizadas individualmente pelas mazelas do sistema capitalista neoliberal.
Associada à essa patologização está a medicalização da vida que, não coincidentemente, também impulsiona as grandes indústrias farmacêuticas a obterem lucros. Somos incentivadas, a todo o momento, a resolver problemas sociais com medicamentos, como se fossem pílulas milagrosas que, em realidade, não resolvem nossos problemas de cunho social, econômico, político. E, ainda mais, desconsideram a complexidade da existência humana.
O resultado disso é o aumento constante, ano a ano, do consumo de medicamentos. O Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade realizou um levantamento do consumo de psicofármacos no Brasil, a partir dos dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos controlados pela ANVISA, entre 2007 e 2014, e identificou que o Brasil é o terceiro maior consumidor mundial de medicamentos ansiolíticos benzodiazepínicos, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia. Importante destacar que a indústria farmacêutica direciona mais investimentos em marketing do que em pesquisa e desenvolvimento.
O consumo do Clonazepan, um benzodiazepínico altamente consumido no Brasil indicado para transtornos de ansiedade e de humor, aumentou 200% entre os anos de 2009 (755.567 caixas) e 2010 (1,5 milhão de caixas). Em setembro de 2014, as vendas já se aproximavam a 4 milhões e 800 mil caixas! Foi constatado, inclusive, que esse medicamento é bastante utilizado por profissionais da educação.
Uma vez mais, é nas costas das pessoas trabalhadoras que recai o peso da irresponsabilidade do Estado Brasileiro, que serve diretamente aos interesses dos super ricos. A aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela o teto dos gastos públicos com saúde e educação no orçamento de 2016, já vem apresentando seus impactos e especialmente agora na pandemia. A drástica redução orçamentária para políticas públicas de assistência social, de enfrentamento à violência contra a mulher, dentre outras, vem delineando o desmonte dos serviços que são utilizados pela maior parte da população. Nesse sentido, o próprio Estado com uma agenda neoliberal em curso ditada pelos interesses da classe burguesa, reforça as desigualdades e injustiças que nos adoecem cotidianamente e naturaliza opressões históricas, que restringem e violam nossos direitos mais básicos: direito à saúde, à educação, à moradia, à cultura, à previdência, ao lazer, ao acesso ao emprego.
Diante de todos os elementos apresentados, fica o questionamento: como produzir cuidado em saúde no contexto de crise e ataques aos nossos direitos, somada à situação da pandemia?
A saída é necessariamente coletiva
É importante compreender, em princípio, que a saúde mental é mediada pelo coletivo. É a partir dos encontros com outras pessoas, com a natureza, com as artes e as culturas, com os alimentos, com diferentes espaços, que produzimos formas de cuidado em saúde, entendida numa perspectiva ampliada. É um processo que se dá nas relações sociais e que possibilita elaborar o vivido, o que sentimos, e o que e como podemos fazer com situações que nos adoecem. Em outras palavras, por meio dos encontros há possibilidade de acolhimento, do exercício do cuidar, do reconhecimento de si e dos outros, da produção de afetos que nos potencializem como seres no mundo.
É necessário, portanto, olhar para o sofrimento desde uma perspectiva coletiva para, consequentemente, construir processos de cuidados que passam por essa via. Isso não significa inferiorizar a experiência individual, mas entender como esse entrelaçamento dos vários fatores citados anteriormente incide na história de cada pessoa.
Considerar que o processo saúde-doença-cuidado passa por uma determinação social também não negligencia o caráter singular de como cada um/a de nós sofremos e desenvolvemos nossas estratégias de produção de saúde/cuidado. As redes comunitárias e afetivas são extremamente importantes para o desenvolvimento de tais estratégias, inclusive por estarem ancoradas nos territórios, nos quais desenvolvemos formas particulares de se viver, de cuidados e de solidariedade.
No contexto da pandemia, por exemplo, ações de solidariedade têm sido criadas pela auto-organização nos bairros, locais de trabalho e estudo. Diversos coletivos situados em territórios periféricos têm produzido ações como: distribuição de cestas básicas com livros; produção e distribuição de máscaras; organização de vaquinhas para fornecer renda para pessoas mais pobres e, também, para financiar trabalhadores da cultura que tiveram praticamente todos os trabalhos cancelados; organização de redes de cuidado para crianças e mulheres; redes para enfrentar a violência doméstica contra mulheres, dentre outras.
Tais ações foram produzidas em meio ao confinamento, que é necessário para conter a disseminação do coronavírus, no entanto, não podemos ficar completamente sozinhas/os, sem nos articular de alguma forma. Se pararmos e refletirmos, a única forma de uma pessoa estar totalmente segura no contexto da pandemia, seria se todas as pessoas estivessem seguras. Ou seja, haver de fato uma igual forma de se prevenir e de evitar a disseminação do vírus. A igualdade, no entanto, só poderá acontecer se a maioria se juntar e se organizar para isso, enfrentando os interesses de quem hoje detém o poder – empresários, banqueiros, patrões.Por isso, a resposta é necessariamente coletiva. É preciso manter discussões e compreender coletivamente a situação que vivemos a partir de elementos reais e de informações de fontes confiáveis e buscar saídas não só para o agora, mas para o porvir. Nesse sentido, produzir saúde mental é também enfrentar as desigualdades sociais, a discriminação, o preconceito, é combater as opressões e a exploração. É promover saúde mental para cada pessoa e para todas elas simultaneamente, reconhecendo suas particularidades e as distintas e inúmeras formas de se expressar e existir. É exercer a solidariedade e se organizar para as lutas, nos bairros, nos locais de trabalho, nos espaços de estudo, nos movimentos de cultura, para podermos arrancar conquistas, transformar a situação ao redor e criar outro mundo possível, livre de toda e qualquer forma de exploração e opressão.