Do hegelianismo de esquerda à ação comunista efetiva

De 1843 a 1844, o fio vermelho da teoria revolucionária de Marx deslocou-se de uma posição basicamente feuerbachiana para um novo patamar, no qual as influências conflitantes de Feuerbach e Hegel coexistem ao lado da nova problemática aberta pelo contato com a Economia Política […]. O materialismo de Feuerbach e a dialética de Hegel passam por uma simbiose crítica, por um processo de síntese original, para servir de fundamento orientador às pesquisas marxianas.

Celso Frederico1

A teoria marxista é, desde os preâmbulos de sua formação básica, de extrema importância para a compreensão de determinadas relações sociais, de estruturas econômicas e sociais e dos meios de transformação da estrutura capitalista vigente. No entanto, para sermos capazes de analisá-las adequadamente, é importante apreendermos e entendermos a trajetória e desenvolvimento políticos de tal teoria e de seu “fundador”, Karl Marx.

Na presente análise expositiva, serão pautados os caminhos percorridos por Marx, desde principalmente sua atuação na Universidade de Berlim até seu rompimento com os grupos políticos ligados a teorias hegelianas, além de suas posteriores críticas a tais hegelianos e o surgimento de novas teorias acerca das análises filosóficas da sociedade e de propostas concretas de transformação. Para isso, será tratada inicialmente a trajetória de Marx.

No final do ano de 1836, Karl Marx, deixando para trás a Universidade de Bonn, parte para Berlim, onde tem os primeiros contatos aprofundados com as teorias propagadas de Georg Wilhelm Friedrich Hegel – importante filósofo que foi professor e reitor na Universidade de Berlim, onde Marx passou a estudar centralmente a Filosofia. Em Berlim, o estudante então se inseriu no Clube de Doutores, o qual tinha como figura central o filósofo Bruno Bauer.

Foi no Clube de Doutores que Marx teve os primeiros contatos com grupos organizados acerca das teorias hegelianas e passou a compor os “jovens hegelianos”, também chamados de hegelianos de esquerda, os quais construíam ferrenha oposição aos hegelianos de direita. Consegue, dentro da Universidade de Berlim, seu título de doutor em Filosofia com a tese Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro.

Marx, após o ano de 1841 quando se tornou doutor, foi impedido de seguir na carreira acadêmica, visto que por questões políticas as universidades não aceitavam usualmente os que seguiam as ideias de Hegel. Com isso, Karl Marx passa para a carreira jornalística, mas sem deixar de lado seus estudos e questionamentos teóricos. A partir disso, começa já a publicar suas importantes obras, como “A questão judaica” e “Manuscritos econômico-filosóficos”, também chamados de “Manuscritos de Paris”.

Esta última obra citada já demonstrava muito claramente, então, um aprofundamento das críticas de Marx a Hegel, as quais se baseavam centralmente nas análises das cosmovisões idealista e materialista, podendo ser expressas de forma sucinta em uma frase de Marx componente do livro A Ideologia Alemã: “não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência”2.  Ainda dentro dessa linha crítica há muito a analisar.

O grupo jovens hegelianos, também identificados pela alcunha de hegelianos de esquerda era formado por estudantes e também por docentes da Universidade de Berlim e se constituiu após a morte de Hegel em 1831. A oposição a esse grupo, constituída pelos hegelianos de direita, gozava de maior prestígio acadêmico e político, contemplando inclusive um setor mais conservador da universidade e da sociedade de forma geral.

Karl Marx compunha o grupo dos jovens hegelianos, o qual tinha como outras figuras centrais David Strauss, responsável pela construção de teorias que invalidavam a religião cristã frente ao Estado; Ludwig Feuerbach, teórico que desenvolveu um importante estudo que apontava para a alienação religiosa como ferramenta de dominação; Bruno Bauer, que colocava a história toda de Jesus como um projeto arquitetado, uma invenção. Nesse contexto Marx também defendia o ataque à religião como central no bojo da opressão e exploração, o que viria a mudar radicalmente.

Não demorou muito até Karl Marx romper com os jovens hegelianos e passar a defender o contrário do que defendia antes, ou seja, que não era a religião o foco de poder de dominação opressor e explorador, e sim a propriedade, o capital – este se colocando centralmente como sendo os meios de produção.

As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as idéias dominantes; ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as idéias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual. As idéias dominantes, são, pois, nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são essas as relações materiais dominantes compreendidas sob a forma de idéias; são, portanto, a manifestação das relações que transformam uma classe em classe dominante; são dessa forma, as idéias de sua dominação.3

Nesse sentido da análise crítica proporcionada por Marx, o integrante mais estudado e discutido pelo mesmo foi Ludwig Feuerbach, o qual aparece em mais de uma obra de Karl Marx. No geral, não é pouca a admiração por Feuerbach advinda de Marx e de seu companheiro de teorização revolucionária, Friedrich Engels. Tais autores levantam que Feuerbach foi o único a ter uma atitude crítica profunda à dialética hegeliana, criando um expressivo contraste com as posturas dos outros hegelianos de esquerda. Tal fator se clarifica muito quando Marx e Engels expõem que

A grande façanha de Feuerbach é: 1. ter demonstrado que a filosofia nada é senão a religião em forma de idéias e desenvolvida pelo pensamento; que nada é senão uma outra forma e um outro modo de existência da alienação do homem; ou seja, que é tão condenável quanto; 2. ter fundado o verdadeiro materialismo e a ciência real, fazendo igualmente da relação social ‘do homem ao homem’ o princípio básico da teoria; 3. haver oposto à negação da negação, que se pretendia o absolutamente positivo, outro positivo baseado em si mesmo e fundamentado positivamente por si mesmo.4

Ainda no sentido das análises de Feuerbach sobre as questões envolventes à religião, a qual se explica no fato da alienação religiosa advir do entendimento de Deus como algo muito superior ao ser humano – inclusive com as características de onipresença, onipotência e onisciência – e que, assim, seria algo que apesar de criado pela raça humana, teria se tornado inalcançável para a mesma. Esse fator final seria então o que se direcionaria para o caráter específico conceitual de alienação. Não à toa, Marx passa então, dentro de sua defesa, a traçar um paralelo desse ponto teórico de Feuerbach com a teoria marxista:

Como resultado da divisão do trabalho, por um lado, e da acumulação do capital, por outro, o trabalhador torna-se mesmo mais inteiramente dependente do trabalho e de um tipo de trabalho particular, demasiadamente unilateral, automático. Por esse motivo, assim como ele se vê diminuído espiritualmente e fisicamente a condição de uma máquina e se transforma em ser humano, em simples atividade abstrata e em abdômen, também se torna progressão mais dependente de todas as oscilações no preço corrente, no emprego do capital e nos caprichos do rico.5

Quando, no entanto, Marx se volta de forma mais direta a Hegel, as contradições ficam evidentes e os paradoxos tangentes ao debate. Quando Karl Marx se propõe a inverter a dialética hegeliana, que estaria de cabaça para baixo segundo o autor, se inverte primeiramente a ideia de que a transformação ideológica vem antes das questões materiais, como defendia Hegel.

[…] todos os homens devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material.6

No contexto, então, dessa produção da vida material, se estabelecem relações sociais que diretamente se ligam ao desenvolvimento dos meios de produção e à relação entre os próprios homens. Nesse sentido, cabe ressaltar novamente a idéia de Marx de que a vida determina a consciência, tendo como orientação o fator da consciência como produto social necessariamente dependente da materialidade sensível e da interdependência humana/objetiva para sua formulação, fator discrepante em relação a Hegel, e então, de maneira menos brusca e mais sensível, a Feuerbach. As críticas e elaborações de Marx, tomando forma, passaram a constituir um plano que ficou conhecido teoricamente como “ação comunista efetiva”.

A partir do desenvolvimento de teorias que se embasaram em profundas análises críticas de diversas obras e autores lidos e pensados por Marx durante sua vida, as quais vão desde a filosofia alemã de Kant, Hegel e dos “neo-hegelianos” até os escritos dos socialistas utópicos e de figuras centrais da economia política inglesa, o autor central do assim conhecido “socialismo científico” alcançou um importante patamar propositivo em relação a transformação estrutural social – incluindo-se as transformações política e econômica – da sociedade capitalista num sentido socialista.

Levando-se em conta então o que já foi levantado anteriormente em relação aos hegelianos e o embasamento crítico marxista sobre suas teorias dialética e ideológica, cabe levantar como um dos pontos centrais na teoria marxista formulada a partir de então a existência de uma classe essencialmente revolucionária, sendo que “a existência de idéias revolucionárias em um determinado tempo já supõe a existência de uma classe revolucionária”7. Para além disso, Marx construiu inclusive muitas de suas teorias embasadas nas próprias críticas a outros teóricos, como Hegel.

Marx concordou plenamente com a observação de Hegel de que o trabalho era a mola que impulsionava o desenvolvimento humano, porém criticou a uniteralidade da concepção hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importância demais ao trabalho intelectual e não enxergava o significado do trabalho físico, material.8

Nesse sentido, uma outra obra essencial produzida por Marx em conjunto com Friedrich Engels foi o Manifesto Comunista – um pequeno livro que valeu por muitos tomos, segundo Lênin –, o qual cumpriu um papel fundamental tanto de uma análise conjuntural quase que “atemporal”, no que diz respeito ao desenvolvimento das forças econômicas capitalistas, quanto de proposição política direta no caminho de transformação das bases estruturais da sociedade. Cabe levantar, então, o contexto em que Marx expõe a necessidade de reinvenção adaptada pela burguesia para se manter no poder.

Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.9

Mas qual a necessidade da dinamicidade de reinvenção pontual do sistema capitalista? O que ocorre é o fato de que as forças produtivas não mantém o sistema capitalista, e sim são também responsáveis pelas próprias crises em que entra o capitalismo. O que “salva” o sistema de uma crise, será novamente um dos fatores geradores da crise seguinte, independente do caráter da crise ou nível de desenvolvimento do capitalismo.

Dentro disso, vem então a análise de que o capitalismo não criou apenas as condições para a sua própria destruição no campo objetivo, e sim também no campo subjetivo no contexto de que o proletariado, o trabalhador, a classe revolucionária, também é produto indispensável da estrutura capitalista, ou seja, “a burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros”10. E assim aos poucos Marx e Engels deixam clara a necessidade de unidade desta classe colocada como essencialmente revolucionária desde o nascimento, ao fecharem a obra com a emblemática frase: “Proletários de todos os países, uni-vos!”.11

Assim, pode-se expor que a ação comunista efetiva que passou a defender Marx pode ser resumida e colocada diretamente como contraposição ao que estava colocado até então no seguinte dizer:

“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”12

A transformação teórica em Marx durante o curto período de tempo entre seus estudos na Universidade de Berlim e os questionamentos da teoria hegeliana foi profunda e essencial para a formulação de uma teoria propositiva de transformação. Colocando uma nova perspectiva dialética e de compreensão do materialismo e da ideologia, Marx expandiu os horizontes do pensamento socialista como antes não fora feito. Diretamente, Karl Marx foi capaz de demonstrar o que de fato o sensível, o material para o trabalhador, é essencial para que a condição deste de revolucionário se concretize. No bojo da questão de que “a valorização do mundo das coisas aumenta a desvalorização do mundo dos homens”13, Marx trouxe à tona o debate sobre a interdependência humana/objetiva, básico para a compreensão da dialética e do materialismo marxistas e da necessidade da organização da classe trabalhadora no rumo de uma revolução que esfacele completamente o sistema capitalista vigente, ao mesmo tempo em que constrói uma nova sociedade mais justa, mais igualitária, mais humana.

Bibliografia

– FREDERICO, Celso. O jovem Marx – 1843-1844: As Origens da Ontologia do Ser Social.

– MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005.

– _____. A ideologia alemã. Tradução de Frank Müller. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2005.

– _____. Manifesto do partido comunista. Tradução de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2002.

– _____. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003.

– KONDER, Leandro. O que é dialética? In: Primeiros Passos, Volume 6. São Paulo: Círculo do Livro, 1981.

1. Trecho retirado do livro de Celso Frederico sobre as transformações teórico-metodológicas em Marx, FREDERICO, Celso. O jovem Marx – 1843-1844: As Origens da Ontologia do Ser Social.  216 p. Pág. 08.

2. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Frank Müller. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pág. 52.

3. Ibidem, pág. 78.

4. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003. Pág. 173.

5. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pág. 68. 

6. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Frank Müller. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pág. 53.

7. Ibidem, pág. 79.

8. KONDER, Leandro. O que é dialética? In: Primeiros Passos, Volume 6. São Paulo: Círculo do Livro, 1981. Pág. 155.

9. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2002. Pág. 29.

10. Ibidem, pág. 54.

11. Ibidem, pág. 84.

12. Retirado da décima primeira tese sobre Feuerbach, anexa ao livro A Ideologia Alemã. 

13. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pág. 111.