O que está em jogo no 8º congresso do PSOL?

O 8º Congresso do PSOL está em curso, processo que encerra com a etapa nacional no dia 29 de setembro. Nacionalmente, são seis teses nacionais. Há, também, teses estaduais e contribuições das setoriais. Estamos na etapa das plenárias municipais, que ocorrem por todo o Brasil. São centenas de plenárias em diversas cidades, reunindo filiados e filiadas para discutir e votar nas teses estaduais e contribuições.

Esse é o momento mais democrático da estrutura do PSOL para que a militância discuta sobre os rumos do Partido, mas a cada congresso são menos tempo para discutir, com falas curtas que nivelam o debate por baixo, muitas pessoas indo apenas para votar, e um ambiente similar a uma “briga de torcidas”, e não um espaço de fato para acumular e avançar politicamente, mesmo com as divergências. De todo modo, nesse momento, através da elaboração das teses por diferentes tendências internas, é possível localizar diferentes leituras, táticas e estratégia para o período.

Nós, da LSR, assinamos a tese nacional “Agora é tempo de ocupar as ruas!” junto com as tendências APS/PSOL que Ousa Lutar, Alicerce, Centelhas, Rebelião Ecossocialista e Revolução Ecossocialista. Lançamos, também, um manifesto “Por um PSOL de luta, classista e socialista”. Nesse artigo, comentamos algumas diferenças de análise e de perspectivas.

Perspectiva internacional: guerra na Ucrânia, crise internacional e perspectivas para a América Latina

Todas as teses, de alguma forma abordam elementos internacionais, principalmente o tema da Guerra na Ucrânia e exemplos de governos na América Latina. A perspectiva internacional, no entanto, deve ser base fundamental para análise em qualquer país, e há um risco em abordar eventos internacionais como um tópico, ou utilizar exemplos de um ou outro governo para reforçar uma análise sobre o contexto brasileiro.

Construir uma perspectiva internacional global é um método importante para produzir uma análise correta da realidade e tentar prever tendências e cenários possíveis para o próximo período.

Assim, a tese que assinamos, “Agora é tempo de ocupar as ruas”, inicia discutindo o cenário internacional de “era da desordem”, marcado por crises múltiplas e profunda instabilidade. A tendência geral no capitalismo mundial é de precarização do trabalho e superexploração e opressão étnico-raciais, das mulheres, e pessoas LGBTQIA+. A instabilidade é uma marca do período, que produz um medo do futuro diante das crises econômicas, sociais, ambientais e gera um terreno fértil para a extrema direita se construir em diversos países.

É preciso contextualizar a Guerra da Ucrânia em meio a um conflito interimperialista, uma nova Guerra Fria entre China e EUA. Esse é um evento que merece atenção da classe trabalhadora mundial, construindo uma solidariedade com a classe trabalhadora ucraniana assim como solidariedade com ativistas russos que foram perseguidos e presos por se posicionarem contra a guerra. Nesse sentido, é fundamental que o PSOL se posicione, e merece atenção o fato da tese do setor majoritário (Por um PSOL Popular) não se posicione. Também é preocupante posições como a da tese “Por um PSOL Socialista e Independente” que trata como a guerra como “caso ucraniano” e se posiciona contra a OTAN e os interesses dos EUA (o que é correto), mas se omite sobre Putin e a Rússia.  

Para além da guerra, também é importante analisar uma tendência na América Latina que vive um cenário de enfrentamento da extrema-direita e uma retomada de governos progressistas. Esses governos rapidamente entraram em crise, por não conseguirem responder às necessidades urgentes do povo, ao mesmo tempo que adotam medidas antipopulares em busca a uma “governabilidade”, em aliança com setores do centro e da direita.

A vitória de Milei nas primárias na Argentina é mais um alerta sobre os riscos da política de conciliação de classes. Ao não ir além dos limites impostos pelo sistema, o governo de Alberto e Cristina não conseguiu evitar a profunda crise no país, o que gerou um desgaste e abriu espaço para a extrema-direita.

A crise ambiental deve ser encarada em uma perspectiva internacional, pois hoje ataca a todos os continentes. Esse problema tem sido abraçado pela juventude e por movimentos indígenas que veem seu futuro ameaçado. As lutas que ocorrem no mundo todo devem servir de inspiração para o Brasil e construir a solidariedade internacional fortalece a nossa luta aqui e no mundo todo, seja contra as mudanças climáticas, contra a extrema direita, os ataques às mulheres e povos oprimidos, às medidas de austeridade que atacam a educação, a saúde e outros direitos sociais.

PSOL e a relação com o PT e governo Lula

Esse é, sem dúvidas, o tema “quente” do congresso. O PSOL nasce como uma alternativa à esquerda ao PT e, desde então, vinha construindo como oposição em governos petistas, posicionando corretamente contra as medidas de austeridade do PT, sem deixar de denunciar a direita e a extrema-direita. Em 2015, o PSOL corretamente denunciava o ascenso da direita, mas o partido não deixou de também criticar os ataques, presentes na agenda do PT, como a terceirização e os cortes na saúde e na educação.

Isso foi importante para construir o PSOL como uma oposição de esquerda, uma alternativa consequente com um perfil próprio, que atraiu uma vanguarda importante e combativa de diferentes Estados, que organizavam lutas também em seus locais de estudo, trabalho e moradia, que estavam na linha de frente das lutas contra a opressão.

O PSOL também assumiu um papel importante na luta contra o golpe que a Dilma/PT sofreram em 2016, contra a prisão de Lula em 2018. A campanha de Boulos e Guajajara, em 2018, trouxe um simbolismo importante de que a saída é pela luta, ao colocar na chapa para presidência uma referência da luta por moradia nas cidades e uma referência da luta indígena.

É evidente que havia disputas, diferentes ênfases, como no caso de alianças com o PT em alguns estados e municípios, uma linha mais governista e menos crítica e até mesmo setores com uma linha equivocada e sectária em relação ao PT, como aqueles que surfaram no antipetismo da direita. Mas, em geral, o partido como um todo se postulava como uma alternativa à política de conciliação de classes do PT, como um partido orientado para as lutas.

Mas, isso trouxe outra configuração nos últimos anos diante da tragédia nefasta do governo Bolsonaro e as derrotas importantes, como a devastação do meio ambiente, o desgoverno diante de uma crise sanitária que resultou em milhares de mortes evitáveis, a reforma trabalhista, a reforma da previdência, o marco temporal, a continuidade de uma política de extermínio de povos originários e do povo negro nas periferias.

A possibilidade de Lula se candidatar impactou desde o último congresso, fazendo com que evoluísse no PSOL uma posição cada vez mais acrítica em relação ao PT e ao lulismo, anteriormente presente de alguma forma em todas as teses. Com a eleição de Lula, algumas tendências, como a Revolução Solidária e Primavera Socialista, chegaram a defender entrar no governo e chegou a ser defendido no Diretório Nacional votar a favor do arcabouço fiscal – na linha de “ajudar o governo Lula a dar certo” – um novo teto de gastos que mantém sua lógica de impedir gastos com direitos sociais em momentos agudos de crise, mas não o pagamento da dívida com banqueiros e rentistas. 

O voto a favor não se concretizou, felizmente, mas em relação à entrar no governo, foi aprovada uma resolução vaga que permitiu a presença do PSOL no governo, como é o caso de Sônia Guajajara como Ministra e Guilherme Simões, indicado por Boulos para a Secretaria de Periferias, dentre outros. Além disso, Henrique Vieira hoje é vice-líder do governo na Câmara dos Deputados. 

O PSOL já provou em toda sua trajetória a defesa da democracia e dos interesses da classe trabalhadora, da juventude, do povo e dos oprimidos, da maioria. É evidente que é desse lado que estará se posicionando com seus cargos institucionais e as lutas em que estará inserido e construindo na rua serão nessa direção. Para isso, é fundamental manter a sua independência em relação a esse governo de conciliação de classes.  

A “governabilidade” é assimilada no vocabulário do PSOL

A fragilidade das lutas e o aumento da institucionalidade são elementos que se retroalimentam nessa conjuntura de profundos ataques. Na medida em que se aposta em medidas institucionais – acionar o STF, judicializar, reduzir a ação do PSOL a ações dos parlamentares – deixa-se de apostar nas lutas. O contrário também é válido: na medida em que se esvazia o terreno das lutas, a institucionalidade passa a ter um papel cada vez mais fundamental.

É ainda mais preocupante que, ambas teses do setor majoritário (PSOL Popular e Semente) apontam como uma luta principal para o próximo período, “fazer o governo dar certo”. Nessa direção, a palavra “governabilidade”, que até então era utilizada no vocabulário do PSOL, na maioria das vezes, para críticas às posições do PT, é assimilada nesse congresso como algo que o partido deve ajudar a garantir.

Essa ideia aparecer no congresso, por parte da majoritária, de forma tão explícita, é uma virada importante desse congresso em relação aos últimos e sinaliza uma encruzilhada para o futuro do PSOL.  

Como nossa tese aponta, “as condições de governabilidade de Lula estão mais complicadas do que no período anterior, com um congresso mais conservador, fragmentado e com maior capacidade de chantagem sobre o governo, herança do Orçamento Secreto parcialmente mantido”. Além disso, analisando o contexto internacional mencionado, apostar na institucionalidade em meio a essas múltiplas crises é adiar uma tarefa histórica e necessária, de construir uma alternativa a esse sistema que está ruindo e destruindo a humanidade.   

Essa governabilidade é sustentada como algo positivo dentro da lógica de que é preciso derrotar a extrema-direita, que seria nossa principal inimiga. Para sustentar esse argumento, cria-se a ideia de que existe uma direita “aceitável”, ou “menos pior” e uma extrema-direita realmente perigosa. Essa é uma formulação perigosa, primeiro porque a linha entre “direita” e “extrema-direita” não é tão facilmente demarcada. Há uma ampla camada que facilmente se adapta às mudanças na conjuntura para se manter no poder. Assim, há deputados que estavam no congresso anteriormente defendendo a política de Bolsonaro, hoje se dispõe a negociar com Lula sem qualquer problema, e assim poderão se virar contra amanhã. É por isso que dizemos que a política de conciliação de classes é incapaz de derrotar a extrema direita, pois manter o Centrão no poder de chantagem, comprando apoio, rebaixando as demandas, é parte da tática de “governabilidade”. Por isso, é parte de uma mesma tarefa para nós, socialistas, derrotar a direita e a extrema-direita, que só será possível de forma definitiva acabando com esse sistema nefasto.

Independência de classe é um princípio fundamental

Uma crítica comum vinda da majoritária contra a nossa tese e outras teses da oposição é de que somos sectários ou contra a unidade “para derrotar o fascismo”. Primeiro, sempre defendemos a máxima unidade na luta, e isso envolve construir com setores governistas, que inclusive estão na direção de importantes sindicatos e movimentos. Denunciamos e trabalhamos contra a divisão em inúmeros atos do 8 de março, fazemos greve lado a lado com trabalhadores que reivindicam diferentes centrais sindicais e construímos atos contra Bolsonaro e suas medidas nefastas junto com o PT e outros partidos. Atualmente, em São Paulo, construímos a campanha contra privatização do metrô, CPTM e SABESP e nacionalmente estamos na iniciativa conjunta dos movimentos negros que terá como ação um ato nacional dia 24 de agosto. Essa aliança nas ruas é fundamental para alcançar vitórias e impedir retrocessos. 

No entanto, a unidade de ação não precisa e não pode estar relacionada, ou condicionada, a apoio de governo, bancada ou chapa com burocracia sindical. Essa unidade de ação deve servir para ganhar mais pessoas, que mesmo ligadas ao governo ou que apoiam esse governo, entendem a necessidade de construir lutas. 

No entanto, a unidade tem sido usada para encobrir o freio do PT às lutas em nome de estratégia institucional. O fato de setores do PSOL terem convocado manifestações que não foram convocadas pelo PT, como ocorreu durante o governo Bolsonaro com a iniciativa Povo na Rua, foi tratada como “sectária”, por exemplo, sendo que essas manifestações não “concorriam” com as outras construídas com unidade ao PT, mas partiram do entendimento de que era preciso ter mais manifestações, com maior frequência, e não de forma espaçada como a Campanha Fora Bolsonaro estava convocando. 

O princípio da independência de classe é algo fundamental também para que essas vitórias sejam alcançadas e generalizadas, tanto nas lutas como no campo institucional. Em uma plenária na Zona Norte de São Paulo, uma dirigente da Revolução Solidária declarou que eles são contra a independência do partido porque isso seria ser “independente do povo”, como se a vontade de derrotar o Bolsonaro nas urnas seria o mesmo que uma suposta vontade do povo por uma frente amplíssima incluindo figuras como Geraldo Alckmin. Além disso, distorcem o significado da independência de classe. A luta de classes não se reduz à “esquerda” e “direita” ou “ala progressista” e “reacionária”. Ainda que, do ponto de vista democrático, possamos ter ações pontuais com setores da burguesia, nossa atuação deve ser livre de qualquer compromisso com partidos que defendem atacar os interesses da população para servir aos super-ricos.  

Essa unidade “ampla” – ou “amplíssima” – em torno do PT, em nome de um enfrentamento da extrema-direita, tem permitido uma reorganização da direita também por dentro – inclusive de setores que abertamente flertam com o bolsonarismo. Lula trabalha para incorporar PP e Republicanos – partido de Tarcísio, governador de SP – em sua base. Nesse grande arco de alianças, a prioridade do PSOL será fazer “o governo dar certo” ou construir as lutas pra valer?

Congresso, funcionamento do partido e democracia interna

Em geral, as teses ligadas ao setor majoritário, PSOL Popular e Semente, fazem um balanço extremamente positivo do último período. Os parâmetros, no entanto, precisam ser debatidos. Embora seja verdade que o PSOL cresceu institucionalmente no parlamento, e tenha hoje mais filiados, outros critérios devem ser levados em consideração.

Na última eleição, o PSOL aumentou sua bancada basicamente nas regiões sudeste e sul do país, sem eleger parlamentares na região nordeste. A falta de um perfil próprio independente tirou protagonismo do partido em uma conjuntura decisiva, algo que se refletiu nos estados. No movimento sindical, o PSOL também tem tomado decisões que rebaixam a política e, alegando unidade “contra a extrema direita” ou “para enfrentar o fascismo”, se aliam com a burocracia sindical, como ocorreu na APEOESP em São Paulo.

Além disso, o PSOL segue com cada vez mais filiados, mas não possui uma estrutura interna que estimule, ou ao menos permita, que a base esteja cada vez mais participativa. Ao contrário, as reuniões de núcleos e setoriais, quando ocorrem, são para atender uma demanda de uma base mais ativa, mas que tem pouca influência nos rumos do partido (salvo algumas exceções como contribuições do Setorial de Saúde ou de Mulheres para apoiar a atuação parlamentar) e há, até mesmo, uma tendência a ter menos reuniões de diretório. Resumindo, o partido amplia, mas há uma cúpula cada vez menor decidindo os seus rumos.

Em muitas plenárias ao redor do país agita-se que o partido agora está mais uma “cara do povo” com a entrada de movimentos sociais – algo positivo – , mas isso é feito para alimentar uma suposta polarização entre uma ala mais “pé no barro” e outra “classe média”, “estudantil”. Nessa ideia, a ala “pé no barro” ligada à majoritária teria mais autoridade agora de defender suas posições porque são apoiadas pelo povo de luta. Abordar dessa forma é problemático, primeiro por menosprezar militantes que lutam a anos em sindicatos, na educação e no movimento estudantil, passando a ideia de que são “menos lutadores”. Mas, além disso, tal agitação visa reforçar não uma atuação cotidiana do partido mais enraizada nas periferias, mas sim uma atuação mais institucional, com mais cargos e maior aproximação do governo. Isso demonstra uma falta de confiança na luta e uma subestimação dos perigos que enfrentamos, inclusive da extrema direita.

Novas vitórias virão através da luta

Após anos de ataques contra nossos direitos e derrotas importantes, incluindo um governo nefasto como o de Bolsonaro, existe um certo receio de organizar lutas que possam incomodar e gerar reação. Mas, é ilusão acreditar que o governo Lula será capaz de melhorar a situação e a correlação de forças, assim como achar que se não fizermos luta, os ataques irão cessar.

Não há dúvida que o cenário é extremamente desafiador, mas não podemos adiar a necessidade de construir uma alternativa com perfil independente, socialista e de luta. O PSOL nasceu com ousadia de seguir aglutinando pessoas e grupos que entendem os limites da conciliação de classes assimilado pelo PT e querem fortalecer uma alternativa. Essa ainda é uma necessidade urgente, e não podemos delegar ao governo Lula, ao STF, ou às negociatas no Congresso o nosso futuro. 

Na luta pela descriminalização e legalização do aborto, no enfrentamento às privatizações, contra o Marco Temporal, na jornada de luta contra o racismo, na defesa de direitos, o PSOL precisa ser uma força que estará lado ao lado daqueles que lutam, e não parte daqueles sentados do outro lado da mesa, tentando fazer malabares com os interesses da maioria, os interesses de uma minoria de ricos e poderosos, e a manutenção dessa ordem desigual e injusta.