150 anos da Comuna de Paris – a primeira revolução proletária

Há 150 anos atrás o povo trabalhador de Paris tomou o poder pela primeira vez. Foi no dia 18 de março que “tomaram o céu de assalto”, nas palavras de Marx. Apesar de só conseguirem se manter no poder por 72 dias, essa primeira experiência socialista trouxe uma enorme contribuição para os revolucionários, que o massacre de milhares de parisienses, quando a reação conseguiu retomar o controle, não conseguiu apagar.
Marx declarou que a Comuna foi a “enfim encontrada” forma da revolução proletária e suas lições foram fundamentais para a preparação da Revolução Russa, especialmente para a teoria marxista do estado e a necessidade da construção de um partido revolucionário, que incorporasse essas lições históricas.
Apesar de seus equívocos, compreensíveis, eles não tinham modelos anteriores a recorrer, o que impressiona é o heroísmo e as medidas em prol do povo trabalhador que começaram a implementar, no meio de uma guerra civil e ocupação do exército alemão.
A França tinha passado por um processo rápido de industrialização durante o século XIX. Um terço da população eram trabalhadores. Em Paris, uma cidade com 2 milhões de habitantes, de um total de 38 milhões no país, a classe trabalhadora era cerca de 40% da população.
Guerra contra Prússia e queda do imperador
No dia 19 de julho de 1870, o imperador francês Napoleão III declarou guerra contra a Prússia, acreditando em uma vitória rápida contra o principal concorrente pela hegemonia no continente. A Prússia estava se fortalecendo e em processo de unir a Alemanha e criar uma grande potência. A guerra foi uma catástrofe. O exército alemão era superior e o francês estava corroído por corrupção, fortunas eram feitas vendendo armas e equipamentos inferiores ao exército.
A invasão da Prússia, sob o grito de guerra de Napoleão III, “A Berlim!”, se transformou em uma invasão da França. A exaltação nacional cedeu para uma indignação contra o imperador. Uma derrota humilhante na batalha de Sedan, onde um exército de 104 mil soldados liderados pelo marechal Mac-Mahon se renderam, junto com o próprio imperador, aos alemães, foi a gota d’água. No dia 4 de setembro o império foi derrubado e declarado a terceira república.
Com um partido e direção preparada para o momento, seria possível iniciar a tomada de poder já no 4 de setembro, diria Trotsky em 1921:
“A Comuna chegou tarde demais. Tinha todas as possibilidades de tomar o poder em 4 de setembro de 1870, e isso teria permitido ao proletariado de Paris colocar-se à frente dos trabalhadores do país na sua luta contra todas as forças do passado…” (Lições da Comuna).
Um “governo de defesa nacional” liderado pelo general Trochu foi declarado. Para defender Paris, a Guarda Nacional foi reorganizada e cresceu de 24 mil para 384 mil, a maioria trabalhadores. O desemprego era alto e o pagamento para quem participava da Guarda Nacional funcionava como um auxílio desemprego.
Cerco de Paris
A guerra continuou e no dia 18 de setembro os alemães cercaram Paris. Isso levou a falta de alimentos e os preços subiram rapidamente. O inverno no fim do ano foi severo e a fome estava em todo lugar. Das crianças que nasceram logo antes e durante o cerco, 90% morreram de frio, desnutrição e doenças.
A condução passiva da guerra pelo governo fez crescer a insatisfação. O governo temia avançar com suas tropas, com medo de perder o controle de Paris onde a oposição crescia. No clima de radicalização surgiam clubes políticos nos bairros.
A partir de janeiro o bombardeio dos canhões alemães atingiam as partes centrais de Paris. Trochu finalmente cedeu à pressão da Guarda Nacional de atacar, mas a tentativa acabou em um novo fiasco, aumentando ainda mais o descontentamento. Sob ameaça de uma guerra em dois fronts, Trochu iniciou negociações secretas com a Prússia e uma trégua foi acordada no dia 28 de janeiro.
Como parte do acordo convocou-se eleições para a Assembleia Nacional no dia 8 de fevereiro. As eleições foram uma vitória para os monarquistas, com base na zona rural, que conseguiu 400 dos 675 mandatos. Isso foi uma derrota para os parisienses, que elegeram 37 socialistas e republicanos entre seus 42 representantes.
O novo governo, liderado pelo velho político e historiador Adolphe Thiers, que tinha participado em vários governos, retomou as negociações de paz com a Prússia. Um acordo humilhante para França foi selado no dia 26 de fevereiro. Além de pagar uma indenização de 5 bilhões de francos, foram cedidos os territórios de Alsácia e parte de Lorena à Prússia. No dia 1° de março o exército prussiano fez uma marcha da vitória em Paris.
Ao mesmo tempo, Thiers tomava medidas de austeridade contra a população. No dia 10 de março, ele declarou que os alugueis, que foram suspensos durante o cerco, agora tinham que ser pagos em 48 horas, ou os moradores seriam despejados. Isso significaria a ruína para os trabalhadores e a pequena burguesia.
Diante desses ataques, e temendo a volta da monarquia, a Guarda Nacional se radicalizou e começou a se organizar de forma independente. Um Comitê Central foi eleito, e sua primeira decisão no dia 15 de março foi declarar que iriam eleger o próprio comandante da Guarda, ao invés do indicado pelo governo.
O levante de 18 de março
Thiers decidiu que era necessário enfrentar essa oposição cada vez mais aberta contra seu governo. A Guarda Nacional tinha mantido suas armas, como as centenas de canhões que foram comprados pela população de Paris.
Na madrugada do dia 18 de março foram enviadas tropas para a colina de Montmartre, onde grande parte dos canhões estavam. A população que estava acordando viu o que estava acontecendo e soaram o alarme. Uma multidão foi impedir a retirada dos canhões. A ordem de atirar no povo foi recusada pelos soldados e dois oficiais que tinham dado a ordem foram executados.
O levante espontâneo se espalhou rapidamente pela cidade. Thiers e seu governo abandonaram rapidamente a cidade e se retiraram para Versailles, cerca de 20 km de Paris, e o Comitê Central da Guarda Nacional assumiu o poder da cidade.
Nesse momento, o Comitê Central cometeu o primeiro grave erro. Para consolidar a vitória era necessário ir atrás do inimigo, que estava perto e enfraquecido. Thiers não tinha mais de 20 mil soldados sob seu comando. Era fundamental esmagar o velho regime e espalhar o levante pelo país. Ao invés disso, foi convocado eleições para o dia 26 de março, com a preocupação de legitimar o novo governo da cidade, em uma perspectiva de tornar Paris um modelo para as outras cidades.
Houve levantes também em outras cidades onde a esquerda era mais forte, como Marseille, Narbonne, Toulouse e Saint-Étienne, mas esses não conseguiram se consolidar.
Após as eleições, a Comuna de Paris foi proclamada no dia 28 de março. Diferentemente do Comitê Central da Guarda Nacional, composto por figuras anônimas, os eleitos à Comuna eram figuras conhecidas, já que não havia partidos organizados e a campanha foi curta. As pessoas votaram em quem conheciam. Entre os eleitos havia imigrantes e estrangeiros também podiam votar. Como dizia a Comuna, “a nossa bandeira é a da república mundial”, a bandeira vermelha dos socialistas.
Reformas sociais e bases para um estado de trabalhadores
A Comuna começou imediatamente a discutir e implementar reformas sociais. As dívidas de alugueis foram perdoadas e os despejos proibidos. Foi proibido o trabalho infantil e o trabalho noturno nas padarias. A igreja foi separada do Estado e seus bens foram confiscados. Foi instituído o ensino gratuito e laico, sem controle da igreja ou do Estado. Foi decidido que fábricas abandonadas pelos donos poderiam ser tomadas e geridas como cooperativas. Foi instituída a pensão para viúvas e órfãos de membros da Guarda falecidos. O nível das reformas sociais propostas só seriam alcançados novamente depois da segunda guerra mundial.
Ao mesmo tempo foram tomadas decisões que apontavam o caminho para um outro tipo de Estado, um estado de trabalhadores. A primeira decisão da Comuna foi de abolir o exército profissional e substituí-lo pelo povo armado. Todos funcionários do Estado deveriam ser eleitos e receberiam um salário de trabalhador. Todos eleitos poderiam ser revogados imediatamente por aqueles que os elegeram. A rotatividade nas funções garantiria que não surgisse uma burocracia permanente. Além disso, ao invés da separação parlamentar entre o “executivo” e o “legislativo” foi substituída por uma “assembleia trabalhadora”, onde quem legislava também era responsável pela execução.
Marx escreveu que a Comuna mostrou que “a classe trabalhadora não pode simplesmente tomar posse da máquina do Estado e pô-la em movimento para os seus objetivos próprios” e que a Comuna era a “enfim encontrada” forma para substituir o Estado burguês. Lenin resgatou esses princípios para o estado trabalhador em sua obra “Estado e revolução”, escrito na véspera da revolução de Outubro de 1917.
Mulheres e a Comuna
Apesar das mulheres não poderem votar ou ser eleitas para a Comuna, elas tiveram um papel central desde o primeiro levante em 18 de março, participando ativamente nos confrontos, mas também dos comitês que implementavam as reformas. A professora Louise Michel participou nos eventos de Montmartre e foi eleita para dirigir o Comitê de Vigilância das Mulheres de Montmartre.
Nathalie Lemel, uma encadernadora socialista, e Élisabeth Dmitrieff, uma jovem imigrante russa e filiada a Associação Internacional de Trabalhadores (AIT, a “Primeira Internacional), criaram a União de Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidado dos Feridos”, que chegou a ter três mil filiadas. A associação defendia que a superação do patriarcado só era possível com uma luta global contra o capitalismo e exigiam igualdade de gênero e salarial, direito ao divórcio, educação laica e educação profissional para meninas. Outras fundaram “La Marmite”, um restaurante cooperativo que servia comida de graça para quem precisava.
A contrarrevolução se organiza e avança
Durante esse tempo, Thiers trabalhava para reconstruir seu exército. Com ajuda do Banco da França (o banco central), que garantia fundos, e de Birmarck, o chanceler da Prússia, que liberou prisioneiros de guerra para auxiliar na contrarrevolução, o exército chegou a ter 170 mil soldados em duas semanas.
Nos dia 1 de abril, Thiers declarou guerra contra Paris e no dia seguinte começou o segundo cerco de Paris. Uma tentativa mal organizada da Comuna de lançar uma ofensiva contra as tropas de Thiers acabou em derrota e logo Paris novamente ficou isolada dentro de sua muralha, sofrendo um bombardeio constante. No papel a Guarda Nacional ainda tinha 200 mil homens no dia 6 de maio, mas as pessoas armadas, em serviço e aptas a lutar eram entre 25 e 50 mil.
No dia 21 de maio as tropas contrarrevolucionárias começam a entrar em Paris e se inicia a batalha final, a “Semana Sangrenta”. Milhares morreram nas barricadas defendendo seus bairros e suas conquistas. No dia 28, reinava em Paris a paz dos cemitérios e acabava a heroica Comuna de Paris.
As estimativas variam sobre quantas pessoas foram mortas. Pesquisas conseguiram identificar cerca de 7 mil mortos e enterrados, mas milhares mais podem ter perecido. As estimativas vão de 10 a 20 mil. 43,5 mil foram presos e 13,5 mil condenados. Entre os presos havia 651 crianças com menos de 16 anos, desses 4 tinham 10 anos, um tinha 8 e um 7 anos.
Legado e lições
Marx e Engels apontavam para os pontos fracos e equívocos cometidos durante a revolução. Como já mencionado, houve o vacilo de não iniciar uma ofensiva imediata contra o governo de Thiers e o que sobrava de seu exército, dando-lhe tempo para reorganizar suas forças.
Não havia uma compreensão da necessidade, especialmente nos primeiros momentos antes de consolidar a vitória, de centralizar o poder e as iniciativas. O Comitê Central da Guarda Nacional queria o mais rápido possível se livrar do poder e ter eleições.
Um outro erro, como constatou Marx, foi o de não tomar o controle sobre o Banco Central. Ao invés disso, foram feitas inúmeras negociações por empréstimos que no final totalizaram 20 milhões de francos. Jourde, responsável pelas finanças, acreditava que se a Comuna tomasse o controle sobre as reservas, haveria uma crise financeira e a moeda perderia todo valor. Ao mesmo tempo o banco transferiu clandestinamente cerca de 260 milhões para a construção do exército de Thiers, que não tinha essa preocupação.
Apesar de implementar muitas reformas importantes e corretas, havia também muitas ações simbólicas e debates sem fim, diante de uma situação delicada e extremamente perigosa. A notícia de que as tropas da reação tinham entrado em Paris interromperam uma discussão sobre a implementação de um sistema de previdência!
A composição e medidas da Comuna mostram que era dominada por revolucionários, uma parte deles faziam estavam filiados da Associação Internacional de Trabalhadores. A AIT tinha uma composição bastante heterogênea: eram marxistas, anarquistas, sindicalistas moderados e outros. Filiados à AIT desempenharam um papel importante na luta de trabalhadores, por exemplo em derrotar a tentativa dos patrões de esmagar o sindicato de trabalhadores de bronze em 1867.
No começo de 1870, a AIT tinha 300 mil filiados na França, 70 mil desses em Paris. Se discutia a formação de um partido socialista, mas foram levados pela exaltação nacional durante a guerra e depois muitos se envolveram na Guarda Nacional, mas não como uma força política coesa.
Os apoiadores de Marx tinham pouca influência em Paris. O tema do papel do Estado era uma polêmica central com os anarquistas, que por acaso não estavam interessados em centralização do poder ou tomada do banco central. Essas polêmicas se agravaram com a derrota da Comuna e levaram a divisão e posteriormente a dissolução da AIT.
Marx tinha alertado do perigo de um levante sem preparo e organização meses antes da Comuna. Mas assim que a revolta começou ele deu pleno apoio, reconhecendo que nem sempre é possível escolher as condições de luta. Mas no final, a falta de um partido revolucionário, capaz de agir como fio condutor para a revolta, foi fundamental e uma lição que Lenin resgatou.
O legado da Comuna sobreviveu, inspirando novas gerações de lutadores e suas lições foram fundamentais para garantir a vitória da Revolução Russa. Quando Lenin morreu foi coberto por uma bandeira vermelha que tinha sido erguida sobre uma das barricadas no bairro de trabalhadores de Belleville durante a Semana Sangrenta de Paris.
Ainda hoje a Comuna é uma fonte de lições e inspiração para o movimento internacional dos trabalhadores. Um dos integrantes da Comuna, Eugène Pottier, se manteve escondido por semanas em Paris após a derrota. Em junho ele escreveu um poema, “A Internacional”, que ainda hoje é cantado por trabalhadores e trabalhadoras ao redor do mundo:
“De pé, ó vitimas da fome
De pé, famélicos da terra
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra
Cortai o mal bem pelo fundo
De pé, de pé, não mais senhores
Se nada somos em tal mundo
Sejamos tudo, ó produtores
Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional”