A quebra da GM, a opção de Obama e o fim de uma era

Não fechar nenhuma fábrica, manter os empregos e reconverter a produção

O que pareceria inacreditável há dois anos aconteceu: a GM, um ícone do que se chamou “Século Americano”, quebrou. Antes da crise global iniciada em 2008, sua solidez era profissão de fé entre pseudo-analistas de mercado. No entanto, depois de três processos de reestruturação sem grande sucesso desde 2000 e de perdas estimadas em US$ 88 bilhões no período, no último dia 1º de junho de 2009, a GM pediu concordata.

A montadora chegou a ser a maior e mais lucrativa companhia do mundo, é a maior empresa industrial dos EUA, com 243.000 funcionários, símbolo de seu poderio econômico. Junto com a Ford e a Chrysler, a GM sempre foi uma das gigantes na fabricação de automóveis, as máquinas que mudaram a face do século XX. Por isso, sua quebra tem um impacto profundo em termos econômicos e sociais e um grande simbolismo, suscitando inúmeras questões políticas, ideológicas, estratégicas e até ambientais.

 Em primeiro lugar, demonstra que, ao contrário do que diziam muitos economistas e analistas apressados, a crise global que estalou em 2008 é muito mais que um simples desequilíbrio financeiro; é sim uma crise estrutural de época do capitalismo moderno.

É verdade que a GM fez escolhas erradas. Desconsiderando os alertas, apostou nos grandes utilitários esportivos, como os jipes Hummers. Quando o preço do petróleo disparou, chegando a 150 dólares o barril, e pela primeira vez os consumidores norte-americanos foram obrigados a optar por carros menores, a empresa foi pega no contrapé.


Parte da crise global

Com a crise global, as vendas desabaram quase verticalmente para todas as montadoras. Até maio, as vendas nos EUA estavam ainda em média 37% abaixo do patamar de maio de 2008. Para a GM, que já vinha avariada, o impacto foi, no entanto, muito maior. A quebra da GM, contudo, revela mais que falta de visão de longo prazo, ganância de retornos rápidos, irresponsabilidade ambiental e estratégias erradas. Ela é parte da profunda recessão mundial.

 A crise global é também uma crise de superprodução, como aquelas descritas por Marx. A capacidade produtiva de carros mundo é de 71 milhões de veículos, mas a demanda está casa dos 50 milhões de unidades.

Não é possível vender o excesso de produção existente nos EUA, no Japão e na Alemanha em países emergentes, como a China, por um problema muito simples que é a falta de mercados internos consumidores mais amplos nestes países. Afinal, o segredo, a “vantagem comparativa” dos emergentes e do novo e selvagem capitalismo chinês é exatamente seus baixíssimos salários.

A bancarrota da GM revela também outra importante tendência, que é o flagrante processo de desindustrialização relativa que vivem os EUA nas últimas décadas. Com a globalização e a desregulamentação liberal, o capitalismo ianque descobriu o segredo para voltar a elevar suas margens de lucro: transferiu milhares de plantas e milhões de empregos para regiões e países de salários e custos mais baixos, como México e China. Aumentam assim enormemente seus lucros, mas deixam para trás nos EUA o fechamento de fábricas e desemprego.

Por outro lado, a introdução incessante de novas tecnologias e dos novos métodos de gerenciamento da produção enxuta oriundos do Japão, aos quais a indústria dos EUA foi obrigada a se converter para elevar sua produtividade, também causou desemprego estrutural. Ainda em 1995, a GM tinha 721.000 empregados no mundo, mais da metade deles nos EUA. Hoje, emprega apenas 240.000 no país e vai encolher mais.


Desindustrialização dos EUA

Dessa forma, o país dos velhos capitães de indústria vem lentamente dando lugar a um país de comércio e serviços, setor que paga salários bem mais baixos, e de administradores de dinheiro, de capital a juros. Os símbolos dos EUA já não serão a Ford, a GM, a GE, mas o Wall Mart, o Mcdonalds, o Citigroup salvo pelo Estado, a Intel produzindo na Ásia.

Uma grande contradição para o capitalismo, entretanto, é que robô é bem comportado e o trabalhador chinês, mexicano ou norte-americano não sindicalizado ou desempregado não fazem greve, mas também não compram. Tudo isso, junto com a financeirização da economia, eleva os lucros, mas também potencializa a instabilidade do sistema, gerando desemprego e miséria, concentrando renda, reduzindo a demanda, criando excesso de oferta e violentas e recorrentes crises de ajuste. Essa é a lei fundamental da acumulação capitalista, segundo Marx, que nos ajuda a entender a crise global e a quebra da General Motors.     

A crise global e o emblemático colapso da GM também sinalizam a continuidade do declínio da hegemonia do capitalismo norte-americano no mundo. Além disso, elas indicam a estupidez do argumento neoliberal no longo prazo, cuja força era exatamente a associação com a potência do capitalismo dos EUA e a globalização por ele impulsionada.

Os EUA não deixarão de ser uma potência de primeira linha no curto prazo. Sua lenta decadência, no entanto, pode ser apenas disfarçada pela “estratégia da diplomacia” de Barack Obama. Em abril, mais carros foram vendidos na China que nos EUA e hoje grande parte dos déficits fiscal e do balanço de pagamentos do país é coberta pelos capitais acumulados na Ásia, investidos em papéis americanos. O balanço de poder no mundo parece começar a se mover em outra direção.


30 mil podem perder seus empregos

O novo plano de reestruturação, anunciado depois da concordata, prevê a demissão de 21.000 trabalhadores horistas entre os sindicalizados, o fechamento de 11 fábricas e a paralisação de mais 3. A imprensa, no entanto, tem falado de mais 8.000 mensalistas e de outros tantos cortes indiretos nas concessionárias, no setor de marketing e nas fornecedoras de autopeças. O plano prevê ainda a eliminação de bonificações, fim dos reajustes automáticos dos salários de acordo com a inflação e suspensão “voluntária” do direito de greve enquanto durar o pagamento de algumas parcelas de empréstimos do governo. Impõe, ademais, a dessindicalização em todo um ramo da companhia.

Este conjunto de medidas foi a contrapartida exigida pelo governo Obama para a injeção de mais de 51 bilhões de dólares por parte do governo até agora, o que poderá levar o Estado a controlar algo em torno de 70% das ações da empresa.

A aceitação de tal plano pelo sindicato nacional dos trabalhadores do setor automotivo (UAW) indica a que ponto chegou o apodrecimento do sindicalismo do país, negando a grande tradição de luta, observada nas décadas de 1930 e 1940. Além do sindicato aceitar a redução das conquistas e dos empregos sem chamar à reação, agora os fundos de pensão comprarão 18% das ações desvalorizadas da empresa, comprometendo assim sua capacidade futura de manter o seguro-saúde e aposentadoria dos trabalhadores, das quais depende mais de um milhão de norte-americanos.

Há toda uma campanha na mídia do país tentando apresentar a crise como resultado da “rigidez sindical e dos salários” e dos “privilégios” dos trabalhadores. Ou seja, a culpa da crise da GM é agora apresentada como sendo dos trabalhadores, que chegam a trabalhar até 12 horas por dia. O discurso de que a compra das ações pelos fundos de pensão dá aos sindicatos o estatuto de “sócios-proprietários” é ilusório e serve apenas para confundir. Para defender seus empregos, os trabalhadores precisarão ultrapassar os dirigentes corrompidos do UAW e encontrar novas formas de luta.


Obama representa a oligarquia empresarial

Este plano também revela as opções de Barack Obama pela oligarquia financeira, frustrando as ilusões de grande parte da população norte-americana e mundial. Afinal, Obama não é nenhum líder de movimentos sociais, mas sim um dirigente do Partido Democrata, completamente associado ao establishment financeiro e empresarial do país. Se seu governo estivesse realmente preocupado com a manutenção dos empregos não haveria porque então fechar fábricas e demitir, contrariando as expectativas do próprio UAW, que investiu milhões de dólares dos trabalhadores para elegê-lo contra John McCain.

Ao contrário, Obama propõe uma nacionalização pela metade, vai entregar a direção da empresa a uma “equipe de especialistas” de mercado. Está prevista a volta dos investidores privados em 18 meses. Apostando numa direção oposta à criação de empregos, aplica a receita tradicional do capital nas crises, ou seja, o fechamento de fábricas, a redução dos postos de trabalho, dos salários e das conquistas dos trabalhadores. Enquanto isso, o governo já entregou centenas de bilhões de dinheiro público para os mesmos banqueiros e especuladores que criaram a crise, aumentando o déficit público e preparando uma bomba relógio que poderá explodir futuramente sob a forma de inflação.


Modelo de transporte irracional

A crise da GM ainda levanta uma importante questão que é a patente irracionalidade de um modelo de transporte baseado no automóvel. Nos EUA, existem mais de 250 milhões de automóveis para uma população de 310 milhões de habitantes, um quarto da frota mundial. E a frota mundial de carros pode chegar a 2 bilhões até 2030, o que pode se transformar em uma catástrofe ambiental.

É completamente irracional, irresponsável e anti-econômico utilizar milhões de automóveis para transportar apenas um passageiro na ida e volta ao trabalho, como se observa em cidades como São Paulo, apenas porque as montadoras precisam vender mais carros e a indústria mundial do petróleo precisa remunerar seus acionistas.

Por isso, uma das saídas para a GM, sem fechar fábricas e cortar empregos, seria exatamente reconverter grande parte da sua produção para fabricar meios de transporte coletivo não poluidores e equipamentos de geração de energia limpa. Essa é e proposta levantada pelo cineasta Michael Moore, em artigo recente. Segundo ele, uma reconversão desse tipo foi possível durante a Segunda Guerra Mundial e a própria GM suspendeu a produção de automóveis, começando a produzir tanques e carros de combate em poucos meses.

Por fim, tanto a crise global como a quebra da GM só comprovam mais uma vez a completa irracionalidade do próprio sistema capitalista em sua busca de lucros a qualquer custo. A nova crise global do capital está desatando mais uma onda de ataques contra os trabalhadores. Isso deve redobrar os esforços dos socialistas e de toda humanidade pela superação desse sistema e pela construção do socialismo como alternativa, dessa vez com liberdade e humanismo. 

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