Nova fase da crise mundial: explosão das dívidas e ataques aos trabalhadores

A crise econômica mundial, que eclodiu em 2008, entrou numa nova fase. A primeira fase começou como uma crise financeira. Diante da crise mais grave desde a segunda guerra mundial, os governos interviram principalmente com pacotes de resgate gigantescos aos bancos e ao setor financeiro.

O resultado dessa política foi que os governos conseguiram evitar uma depressão mundial. Mas a consequência disso foi criar as condições para a próxima fase da crise. As montanhas de crédito “podre”, especialmente do setor imobiliário, foram transformadas em montanhas de déficits e dívidas públicas.

Alguns países da Europa, chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, formando a palavra “porcos” em inglês), já estão com dificuldade de pagar suas dívidas ao mercado que exige juros mais altos. A Grécia teve que ser socorrida em maio com um pacote de resgate de 110 bilhões de euros. Nesses dias chegou a vez da Irlanda, que deve receber um pacote de 90 bilhões de euros.

Para diminuir os gigantescos déficits públicos, os governos desses países e outros estão implementando enormes ataques aos trabalhadores, demitindo funcionários públicos e cortando salários, aumentando a idade de aposentadoria e cortando gastos com serviços públicos. Chegou a hora de cobrar dos trabalhadores o custo pelo socorro aos bancos. Isso vai além dos “PIGS”. O novo governo conservador britânico anunciou recentemente que vai demitir 500 mil funcionários públicos, entre outros ataques.

Porém, esses cortes nos gastos públicos não representam somente um enorme ataque contra os trabalhadores, mas também uma ameaça à fraca recuperação econômica. A situação de alguns países está beirando uma depressão.

Profunda crise na Irlanda

Na Irlanda, o PIB caiu 3% em 2008, 7,1% em 2009 e o FMI estima que haverá uma nova queda de 0,5% esse ano. O desemprego chegou a 13%. O cenário lembra o da Argentina em 2001. O déficit público da Irlanda no ano passado chegou ao equivalente a 14,4% do PIB. Esse ano, principalmente por causa do resgate dos bancos, a estimativa é de um déficit catastrófico de 32% do PIB, algo só visto durante períodos de guerra. A dívida externa da Irlanda, pública e privada, equivale a 1.305% do PIB.

Como na Grécia, um pacote de resgate estará ligado a uma política de enormes cortes nos gastos públicos para diminuir o déficit. Isso significa que os ataques continuarão, e que a economia em geral continuará em crise.

Esse cenário se repete em diferentes graus também em outros países. A expectativa é que Portugal e Espanha também não consigam pagar suas dívidas e terão que pedir socorro. As consequência de uma falência estatal na Espanha seriam muito mais graves, dado o tamanho de sua economia.

Esses ataques têm gerado uma onda de fortes protestos na Europa. Na Grécia houve seis greves gerais esse ano e mais uma está marcada para o dia 15 de dezembro. Na França houve oito dias nacionais de luta em oito semanas, com paralisações e grandes manifestações contra a reforma da previdência. Na Espanha houve uma greve geral no dia 29 de setembro e os trabalhadores portugueses sairão em greve geral no dia 24 de novembro.

Guerra cambial e o fracasso do G20

Mas a crise das contas públicas não é o único aspecto dessa segunda fase da crise mundial. Há outros perigos enormes, que também fluem dos efeitos da primeira fase.

A primeira fase da crise teve um efeito desigual no mundo. Alguns países, que não sofreram a mesma crise financeira, foram menos afetados e seus pacotes de resgate e estímulo levaram a uma recuperação mais forte. O principal exemplo é a China, onde o crescimento continua em alta, até certo ponto também o Brasil, apoiado pela grande demanda de matérias primas da China e um aumento do consumo baseado no crédito fácil.

Essa desigualdade nos efeitos da crise aumenta as tensões entre os grandes países, refletindo os grandes desequilíbrios da economia mundial que já vinha do período anterior. O principal exemplo é a tensão entre os EUA e a China. Os EUA têm um enorme déficit no seu comércio com a China, que tem um enorme superávit. No período anterior, a relação de amor e ódio entre os dois países era um fator que aumentava o crescimento global. A China produzia e os EUA consumiam, pagando com um aumento contínuo de dívidas, que a China ajudava a bancar com seu acúmulo de superávit. Mas esse desequilíbrio, que envolve também outros países com grandes déficits e superávits na balança comercial, agora se torna um das principais fontes de instabilidade.

O aspecto mais visível disso nos últimos tempos é a chamada “guerra cambial”, um termo lançado pelo ministro da fazenda brasileiro, Guido Mantega. Os EUA estão tentando diminuir o valor do dólar, já que um dólar forte dificulta suas exportações e aumenta as importações, mantendo um déficit comercial alto. Quer dizer, os EUA, que tem um consumo doméstico estagnado, já que as famílias endividadas estão sendo forçadas a saldar suas dívidas, está tentando aumentar sua produção estimulando suas exportações, às custas dos outros países. O principal alvo dos EUA é a China, que tem mantido o valor de sua moeda desvalorizada para sustentar as exportações.

O Banco Central dos EUA, o Fed, lançou recentemente um novo pacote de “afrouxamento quantitativo”, que visa jorrar 600 bilhões de dólares no sistema financeiro para estimular a economia. Mas há um consenso no mundo de que o efeito principal não será esse. O sistema financeiro já está repleto de crédito barato a juros perto do zero desde os pacotes anteriores, mas os bancos não querem emprestar para as famílias já com problemas para pagar suas dívidas atuais. Boa parte desse dinheiro vai então para o exterior, para tentar achar lugares onde podem gerar lucro, como no Brasil onde os juros são altos. O efeito desse aumento de oferta do dólar é que o preço do dólar cai.

A reunião do G-20, que reúne as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, discutiu o problema, mas não resolveu nada. E nem podia, já que os interesses entre as grandes potências econômicas são divergentes.

O grande risco é que essa “guerra cambial” se transforma em uma guerra comercial, com cada país ou bloco tentando salvar sua indústria com medidas punitivas contra importações. Uma guerra comercial hoje teria um efeito muito mais grave que nos anos 30, já que a produção mundial é muito mais interligada. 55% das exportações da China, por exemplo, vem de empresas estrangeiras com fábricas no país. Isso faz com que as classes dominantes não embarquem numa guerra comercial facilmente, mas a situação pode escapar do controle.

 
Brasil: ameaça de desindustrialização

O Brasil já sente o efeito do real forte. O Ministério do Desenvolvimento reconhece que o país está se “reprimarizando” e “desindustrializando”. Esse ano, pela primeira vez em 3 décadas, as exportações de matérias primas vão ser maiores do que os produtos industrializados. O Brasil está se tornando cada vez mais um exportador de matérias primas para a China.

O consumo de aço importado, por exemplo, aumentou de 6 a 8% do total consumido no país para 20%, segundo o Valor Econômico. Isso por que o aço importado é até 50% mais barato que o nacional.

A produção industrial, que tinha se recuperado da forte queda do ano passado, vem caindo nos últimos meses. O aumento do consumo tem sido coberto por um aumento das importações. O efeito disso é que se espera que o PIB brasileiro desacelere no terceiro trimestre e não cresça mais que 0,5%.

Nos últimos tempos temos visto como dezenas de países implementaram medidas para se resguardar contra esse fluxo de dólares, para que suas moedas não se valorizem na mesma proporção que o dólar cai. O Banco Central brasileiro, por exemplo, tem tido uma política de comprar o excesso de dólares que entra no país, aumentando suas reservas cambiais, que estão próximas a 290 bilhões de dólares no momento.

Essa política tem um preço alto, já que o efeito é o oposto ao que os especuladores buscam. O Banco Central pega dinheiro emprestado, emitindo títulos, pagando cerca de 10%, para investir em papéis cotados em dólares, que não rendem nem 1%. O custo para manter a reserva cambial no ano passado foi de 35 bilhões de reais.

Mas essa política tem sido insuficiente para conter a valorização do real, e por isso o governo tem tomado outras medidas, como o aumento do IOF para estrangeiros que investem em renda fixa no Brasil.

Ao mesmo tempo Argentina está implementando medidas para diminuir importações de mercadorias brasileiras, para proteger a sua indústria.

 
Risco de novas bolhas

A função da crise capitalista é de queimar o excesso de capital (produtivo e financeiro) acumulado durante o período de crescimento, que não consegue mais gerar lucro sob as atuais condições. A crise dos anos 30 foi superada com a maior queima de capital da história: a segunda guerra mundial, que limpou o terreno para um novo período de crescimento.

A crise atual foi muito aguda por causa do enorme acúmulo de capital especulativo no mundo. A política neoliberal de ataques aos trabalhadores nas últimas décadas conseguiu restaurar os lucros das empresas, mas o consumo por parte dos trabalhadores não seguia o mesmo ritmo, por causa do arrocho contra eles, mesmo com o aumento do crédito. Isso levou, junto com a política de desregulamentar os fluxos de capital, a um enorme aumento da especulação, já que os superlucros não podem ser obtidos na esfera da produção.

As bolhas geradas por essa especulação em escala mundial levou à crise atual. Mas até agora, esse excesso de capital não foi queimado. Houve enormes quedas nas bolsas de valores e no valor dos papéis especulativos, mas o resgate público do setor financeiro salvou os bancos e transformou suas dívidas podres em dívidas públicas. Além disso, os bancos centrais forneceram um mar de dinheiro a juros perto de zero ao setor financeiro.

Tudo isso faz com que as bolsas de valores recuperem a maior parte de suas perdas e o capital especulativo volte a buscar meios de lucrar, isso numa situação onde as possibilidades de investir na produção da economia “real” são mais restritas ainda. Isso traz o risco de novas bolhas se formando quando um mercado começa a se recuperar.

O principal exemplo disso atualmente é o risco de uma nova crise alimentar.

 
Uma nova crise de alimentos

A FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) está alertando sobre o rápido aumento dos preços dos alimentos no mundo. Os preços esse ano aumentaram 15% e o gasto total em alimentos no mundo está quase chegando ao nível recorde de 2008, de 1,03 trilhões de dólares, o dobro da média dos dez anos antes da crise de alimentos em 2007/2008. No ano que vem os preços podem aumentar mais uns 10 a 20%.

A crise de 2007/2008 levou a motins provocados pela falta de alimentos a preços acessíveis em mais de 25 países e fez com que o número de pessoas passando fome no mundo subisse em 100 milhões.

A FAO descarta a especulação como causa dos aumentos e coloca que o principal fator são as safras perdidas. A produção de cereais deve cair 2% esse ano, ao invés da previsão anterior de um aumento de 1,2%. Grandes exportadores como Rússia e Ucrânia estão limitando suas exportações. Mas como em 2007/2008, os especuladores tentam lucrar com o aumento dos preços, agravando a situação.

A demanda crescente na China também está contribuindo para o aumento dos preços, e o país está se movendo para reduzir os preços. Isso pode fazer com que os preços possam recuar. O preço do algodão, por exemplo, que tinha atingido o preço mais alto em 140 anos no início de novembro, caiu 15% em pouco tempo. O preço do açúcar caiu 19% em 7 dias. Mas parece improvável que isso seja suficiente para evitar uma nova leva de aumento dos preços no próximo período, que já está afetando o bolso dos trabalhadores brasileiros.

 
Classe dominante sem rumo

A classe dominante está sem rumo. Dentro da classe capitalista sempre ouve diferentes alas, representando diferentes interesses: liberais e conservadores, adeptos do laissez-faire e monetaristas, keynesianos e neoliberais. Nas últimas décadas os neoliberais dominaram a cena política. Mas o neoliberalismo já estava desgastado nos países pobres, como na América Latina, e com a última crise, o desgaste do neoliberalismo se tornou mundial. Porém, isso não significa que no momento uma ala keynesiana assumiu a liderança.

Há uma disputa constante, com diferentes interesses conflitantes representados. Nos EUA, por exemplo, há muitos que defendem uma postura mais dura contra a China, mas há também uma grande parte das grandes empresas que tem boa parte da sua produção baseada lá, e sairia perdendo com medidas protecionistas.

Na Europa vemos uma disputa clara entre aqueles que querem estimular a economia, e aqueles que querem puxar o freio. Muito se trata de correlação de forças. A Alemanha está com a linha dura impondo medidas de austeridade nos países menores da Europa, mas a própria Alemanha tem implementado medidas para evitar um grande aumento do desemprego.

Também se trata de uma correlação de forças entre as classes. Onde os trabalhadores conseguem organizar uma resistência, a classe dominante pode ser forçada a recuar, mas só temporariamente. A continuidade da crise vai levar a novos ataques, independente da ala capitalista que no momento esteja no poder.

A tarefa dos socialistas é de auxiliar a classe trabalhadora em reconstruir a sua capacidade de luta, que foi reduzida durante décadas de ataques neoliberais, mas também trazer as lições históricas da necessidade de romper com esse sistema econômico nefasto. A crise política da classe dominante será um fator que vai ajudar a classe trabalhadora a superar definitivamente os efeitos da queda do stalinismo, quando a classe dominante no mundo declarou a morte do socialismo e anunciou o neoliberalismo como o único caminho.

A nova geração que começa a entrar na arena de luta aprenderá com suas experiências e da história. Vai começar a encontrar o caminho para as idéias do socialismo democrático, que não tem nada a ver com a aberração burocrática e ditatorial do stalinismo, que por muito tempo foi usado como um espantalho contra quem busca uma alternativa real ao sistema capitalista. 

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