França de 1968 – Mês da Revolução – Lições da Greve Geral

Poder na balança

Os líderes de todos os partidos apresentaram o espetáculo de um total impotência em face do titânico desenrolar dos eventos. Os líderes das organizações operárias, na verdade, exibiram uma paralisia de vontade ainda maior, algumas vezes mascarada por estardalhaços radicais, do que os líderes dos partidos burgueses. Os líderes comunistas e socialistas percebiam seu papel como de meras caixas de ressonância para ecoar a indignação das massas, mas em nenhum momento eles consideraram que poderiam ser chamados para assumir o comando das alavancas do poder e prenunciar uma nova sociedade. Nunca previram que deveriam pegar o leme para guiar o navio! O Wall Street Journal comentou isto:

“Os discursos na Assembléia Nacional pareciam estranhamente irrelevantes. François Mitterand, o líder da oposição, e Waldeck-Rochet, o chefe do Partido Comunista, estavam tão desesperadamente sem contato com a realidade como o Premier Georges Pompidou. São todos parte do establishment, e estão todos em face a uma maré popular que lhes causam medo”.

Em 19 de maio, de Gaulle retornou da Romênia como um fantasma no meio da noite. Vinte anos depois, numa entrevista no Sunday Times, o Prefeito da Polícia de Paris recordou-se da noite de 19 de maio. Quando o Presidente da República retornou da Romênia convocou ele, Grimaud, e o Primeiro Ministro Pompidou, e lhes disse: “hoje à noite vocês retomarão o Odéon e a Sorbonne amanhã de manhã’. Grimaud assinalou a asneira que isso seria. Uma tentativa de retomar estes prédios durante os “paroxismos de paixão que os eventos alcançaram” significaria que o “sangue iria jorrar!” Neste momento, ele conseguiu dissuadir o presidente, que daí por diante permaneceu um impotente prisioneiro no Palácio Elysée. A França estava quase paralisada. Armazéns agrícolas e fazendas estavam sendo ocupados. Trabalhadores dos bancos e da receita uniram-se à greve. Cineastas paralisaram o Festival de Cannes. Corridas de cavalo, de carros e até um campeonato de golfe não ocorreram. As noticias estavam parcialmente sob o controle dos jornalistas de rádio e televisão.

Comitês de ação

As muitas centenas de comitês de ação nas fábricas, escritórios, universidades e bairros começaram a se conectar. Na província de Loire Atlantique, no que foi provavelmente a mais avançada forma de democracia operária a se desenvolver em 1968, os trabalhadores, camponeses e estudantes conjuntamente decidiam tudo. Na capital provincial, Nantes, o Comitê Central de Greve assumiu o controle do tráfego que entrava e saia da cidade. Bloqueios rodoviários erigidos por trabalhadores do transporte foram guarnecidos com a ajuda dos colegiais. Cupons de gasolina e autorizações de viagem foram emitidos para motoristas levando suprimentos essenciais para grevistas das fazendas de áreas vizinhas. Tão imperioso era o movimento que a policia local e os funcionários da prefeitura voltaram atrás, e fizeram ‘vista grossa’ aos novos arranjos.

Um jogo de futebol foi realizado em beneficio dos grevistas. No inicio da ocupação da fábrica, um ataque sem motivos e potencialmente sangrento da policia foi encerrado com confraternização! Mulheres trabalhadoras tomaram em suas mãos a entrega de comida às lojas locais e abriram pontos de venda nas escolas. Trabalhadores e estudantes ajudaram os fazendeiros a colher as novas batatas: “Ao eliminar os intermediários, as novas autoridades revolucionárias cortaram os preços do varejo: um litro de leite caiu de 80 para 50 centavos. Um quilo de batatas de 70 para 12 centavos e as cenouras, de 80 para 50 centavos. Os grandes armazéns foram forçados a fechar. Permitiu-se a algumas lojas pequenas abrirem, mas funcionários do sindicato checavam os preços toda a manhã”.

Os sindicatos ajudaram as famílias de grevistas mais pobres distribuindo vales de comida: um frasco de leite para crianças com menos de três anos, e para crianças acima de três, 500 gramas de pão e uma porção de alguma outra comida. Professoras instalaram creches para crianças de grevistas. Trabalhadores e camponeses, tão freqüentemente às turras entre si, começaram a trabalhar juntos. Eletricistas asseguraram que não houvesse interrupção da eletricidade para as máquinas de leite. As entregas normais de ração e gasolina aos fazendeiros foram mantidas. Camponeses marcharam nas ruas de Nantes, lado a lado com os trabalhadores e estudantes. Trinta e dois anos antes, em 1936, mais de 50,000 camponeses, a maioria empregados em grandes fazendas, manifestaram-se em Nantes contra o governo da Frente Popular. Este era o interior Chouan – cena das grandes revoltas camponesas realistas [contra o regime revolucionário jacobino] do fim do século 18. Mas os tempos mudaram. A Place Royale foi renomeada Place du Peuple. (Revolution in France, 1968)

Assim, foi demonstrada na ação, na linguagem de ganhos reais para o povo trabalhador, uma pequena indicação do que seria possível numa sociedade socialista. Neste mesmo sentido, quase 20 anos depois, a construção de casas e a criação de empregos pela Câmara socialista Trabalhista de Liverpool fez a mesma demonstração – muito mas eloqüentemente do que qualquer discurso político.

Nas escalas da história, tais inovações proletárias pesarão muito mais do que experimentos de vanguarda dentro das universidades. Não obstante, os trabalhadores que foram levados às universidades e os estudantes que foram levados às fábricas cimentaram um relacionamento produtivo. Na famosa Escola Superior Nacional de Belas Artes 10 mil cartazes estavam sendo produzidos diariamente – num total de 350 desenhos diferentes. Numerosos panfletos ajudaram os trabalhadores a sustentar sua força.

Um panfleto da ocupação da Air France declarou: “Recusamos a aceitar uma ‘modernização’ degradante que significa que somos constantemente vigiados e temos que nos submeter a condições que são prejudiciais a nossa saúde, aos nossos sistemas nervosos e um insulto à nossa condição de seres humanos”. Trabalhadores da Rhone-Poulenc declararam: “Os estudantes nos mostraram que apenas a ação das bases pode obrigar as autoridades a recuarem”. O panfleto para a Renault Billancourt: “O governo teme a extensão do movimento. Ele teme que se desenvolva a unidade entre os trabalhadores e os estudantes. Pompidou anunciou que ‘o governo irá defender a República’. O exército e a polícia estão sendo preparados. De Gaulle falará no dia 24. Enviará ele a polícia para tirar os piquetes das empresas em greve? Estejam preparados! Nos locais de trabalho e faculdades, pense em termos de autodefesa”.

Os trabalhadores discutiram com os estudantes a aceitação que os panfletos receberam. A audácia e idéias revolucionárias dos estudantes atraíram o melhor dos jovens trabalhadores, mas eles nunca tinham se encontrado antes. Os trabalhadores estavam inseguros se os estudantes desapareceriam no ar de novo, quando a experiência terminasse. Mas eles também estavam questionando o que o partido operário tradicional, o Partido Comunista, estava fazendo enquanto a onda grevista se desenvolvia rapidamente.

Este partido estava planejando um Festival de Juventude de recreação e dança, mais um comício. No dia em que os 40 mil trabalhadores da fábrica Citroën paralisaram, o Festival da Juventude foi cancelado pelos burocratas do Partido Comunista. O que poderia ser se tornado um comício de massas da tropa de choque juvenil da revolução não ocorreu por “medo de infiltração” pelos “raivosos”, eles declararam!

“Em cada célula e em cada fábrica, se perguntavam se o Partido não estava perdendo a chance de uma vida”. O correspondente de Paris do The Economist anotou: “Perseguir esta política cautelosa, moderada, profundamente racional, em maio, colocou o partido sob enorme tensão. Ele era como um homem vendendo pão velho quando havia um bolo em oferta”. (Ênfase nossa)

Para que serve uma revolução

Um alto grau de politização se desenvolveu. Quando personalidades bem conhecidas do rádio e TV, por causa da greve, se viram privados de seu próprio meio, eles percorreram a França como um circo itinerante. Mas o público parecia menos interessado nas estrelas do que nas discussões que seguiam às suas performances. Menos monólogo e mais diálogo estava em demanda!

Novas e inesperadas camadas do proletariado foram afetadas pela “epidemia”. Na grande greve de 1936, trabalhadoras de lojas de departamentos recusaram-se a usar batom e maquiagem, declarando que eram “trabalhadoras, não atrizes”. Em 1968 as ‘atrizes’ do Folies Bergeres exigiram serem consideradas trabalhadoras também! Elas exigiam um aumento salarial para 10 xelins (50 pence) a hora, melhores lavabos e o direito de negociação coletiva. “Não somos estúpidas apenas porque somos strippers”, elas declararam. Jogavam xadrez, liam livros, cantavam músicas e formavam grupos de discussão.

As famosas lojas de departamentos da Galeria Lafayette foram, como em 1936, mais uma vez fechadas e ocupadas. Agentes funerários e taxistas pararam o trabalho. O sorteio da loteria estatal teve que ser adiado, assim como a Copa da Federação de Tênis. Futebolistas entraram em greve, ocuparam a sede da Federação de Futebol e exigiram o “Futebol para os futebolistas!” Engenheiros ocuparam a sede do Conselho Nacional dos Empregadores Franceses. Servidores civis, trabalhadores de usinas nucleares, metereologistas, empregados de livrarias uniram-se à greve… a lista era interminável! Assim como as anedotas!

Um visitante estrangeiro foi visto peregrinando de hotel fechado em hotel fechado procurando um quarto. Em desespero, ele telefonou ao Primeiro Ministro e não obteve uma resposta satisfatória. Era Hussein, Rei da Jordânia! A revolução não respeita patentes ou cargos!

Quando de Gaulle estava em sua visita de estado a Bucareste, ele esperava dar um banquete para Ceaucescu na embaixada francesa. Mas o avião carregado de 205 quilos de alimentos – vinhos finos, fois gras, etc. nunca deixou Paris; os trabalhadores das linhas aéreas estavam em greve! ‘Mongeneral’ teve que recorrer ao cardápio local. Depois, quando ele quis telefonar para o Comandante das tropas na Alemanha, disseram a de Gaulle que ela não poderia ser completada. O operador estava em greve. “Mas é para o general de Gaulle!” “E eu com isso? Estou em greve para o mundo inteiro!”

Os empregados ocupando o Plaza Hotel convocaram os seus acionistas. Fizeram um ultimato a eles para não vendê-lo para o milionário britânico Charles Forte. A marinha mercante entrou em greve. ‘Até os oficiais se uniram às greves de ocupação iniciadas pela tripulação, relatou o The Times (23 de maio).

Grandes fazendas e depósitos agrícolas foram ocupados. A Organização Nacional de Jovens Fazendeiros chamou uma greve geral nas fazendas por “verdadeira democracia econômica e social”! No sul da França os mercados estavam controlados pelos sindicatos. Foi relatado que poucas pessoas no Sul estavam falando sobre programas de partidos e níveis salariais: Elas queriam uma mudança mais qualitativa do que quantitativa em suas vidas.

Nas grandes fábricas – as fortalezas da revolução – uma atmosfera de carnaval e feriado tomava conta de tudo. Não havia o medo de 10 anos antes, mas sim existia um ambiente estimulante. Os trabalhadores da Berliet Caminhões mudaram as letras de sua fábrica para serem lidas ‘Liberté’. Novos cartazes apareciam nas fábricas em todo lugar: “Em greve indefinidamente”, “Nós somos o poder”. Um jovem trabalhador da fábrica aérea SNECMA comenta: “Éramos totalmente nós mesmos, donos de nós mesmos… sentíamos que estávamos vivendo o socialismo!” Outro jovem trabalhador na Renault disse: “O que queremos é que tudo deva se realizar da base até o topo, não como hoje, do topo para a base!”

Um apoiador do Militant visitando a França ficou impressionado com o fato que em todo lugar as pessoas estavam conversando e querendo conhecer umas as outras: todos discutiam política. Uma indicação do sentimento dos trabalhadores foi que, enquanto conversávamos com eles do lado de fora da grande fábrica da Citroën, um ônibus cheio de trabalhadoras passou em frente. Ele diminuiu a velocidade e as mulheres começaram a cantar a Internationale com garra, balançando os punhos cerrados. Elas foram aplaudidas pelos trabalhadores.

Estudantes secundaristas eram vistos nos portões da Renault discutindo seriamente com os grevistas. Às vezes as famílias dos grevistas juntavam-se nos portões das fábricas, que se tornavam ruidosos “parques de diversão”, como jornalistas do Observer anotaram. “Para os trabalhadores, este arranjo dos procedimentos era como um delicioso feriado prolongado”. E porque não?

Em sua História da Revolução Russa, Trotsky fala da indignação de um antigo capitão da indústria russa, V. Auerbach: “A revolução era entendida pelas camadas mais baixas como algo da natureza de um carnaval de páscoa. Os empregados, por exemplo, desapareciam por dias inteiros, passeavam com fitas vermelhas, andavam de automóvel, voltavam para casa de manhã apenas para se lavarem e saírem para a diversão”.

A classe média entra em ação

Quando a classe trabalhadora se move em seus milhões e mostra onde está o poder verdadeiro na sociedade, as camadas dispersas colocam-se de pé. Cada agrupamento em cada nível da sociedade começa a articular o que deseja da vida. Sem dúvida, em maio de 1968, os donos de postos de gasolina que saíram em greve não pensaram em nada mais do que em lucros maiores, mas até os escoteiros atreveram-se a se declarar por sua participação no controle de seu movimento!

Jovens porta-bandeiras católicos invadiram a igreja de St. Severin, no bairro dos estudantes, e gritavam “Queremos reinventar a igreja!” Jovens judeus invadiram a Sinagoga judia, com uma declaração criticando as estruturas arcaicas e anti-democráticas de suas instituições comunitárias. O arcebispo de Paris visitou o Quartier Latin durante os combates e escreveu depois em sua carta Diocesana que “Deus defende a justiça; ele não é conservador. Os cristãos também devem desafiar a sociedade que negligencia as profundas aspirações do homem”. Isto parece a “Teologia da Libertação do Terceiro Mundo”, de anos depois, vindo da própria hierarquia da igreja de um país capitalista avançado! Uma repórter do Evening Standard, viajando de bicicleta pelo interior do norte da França, encontrou-se com três trabalhadores de uma fazenda num pequeno bar. Eles estavam argumentando apaixonadamente sobre a causa da greve, se queixando do custo de vida, o preço da gasolina, impostos e assim por diante. Pedaços de sua conversa alcançaram-na: “E os lucros?… Não são dos trabalhadores, mas dos banqueiros, os capitalistas, a classe média… fugindo em viagens ao estrangeiro por capricho… Ele [de Gaulle] vai para a Romênia e fala de liberdade com os estudantes de lá – e a nossa liberdade?… Temos uma sociedade de consumo – ‘Compre! Compre! Compre!’… O que os camponeses podem comprar com esterco?…”

Os sindicatos dos camponeses são forçados a defender suas demandas e intensificar sua campanha. Mais depósitos e propriedades são tomados! O êxodo de 100.000 por ano para as cidades significa uma rede de laços existente com os trabalhadores nas cidades. Em contraste com o movimento dos anos 30, esta greve de 1968 organizou-se entre os intelectuais e então espalhou-se para os trabalhadores em cada esfera da vida. Este fato, junto com o poder imensamente maior do proletariado na França de 1968, significou que cada camada da classe média foi não apenas “afetada”, mas participou ativamente do movimento, levada pelo peso absoluto da classe trabalhadora, que lhe deu confiança de lutar contra a velha ordem, com a perspectiva real de estabelecer uma nova forma de sociedade. Cada norma aceita foi desafiada.

Os Magistrados se organizaram para a ação grevista, mas também questionaram qual papel, se houvesse, eles jogariam numa sociedade futura, provavelmente socialista! E assim também os servidores civis e advogados. Astrônomos no Observatório Meudon examinaram as estruturas de seus centros de pesquisa e viram que tinham falhas; 200 curadores de museus de toda a França reuniram-se para considerar o papel dos museus na sociedade, enquanto suas equipes de funcionários, sentindo-se “um só com o grande movimento de renovação que agora se espalha por todo o país”, conduziram uma revisão da antiga, estéril e super-centralizada administração dos museus!

Arquitetos, planejadores urbanos e até estatísticos começaram a sentir que seus sonhos mais extravagantes poderiam se tornar verdade e seus talentos poderiam ser usados para o benefício da sociedade como um todo, ao invés de para uma minoria rica. Hospitais dirigidos por comitês de médicos, pacientes, estudantes de medicina, enfermeiras e auxiliares começaram a se declarar autônomos. A profissão médica tinha uma reputação de perspectiva reacionária, mas agora acalorados debates estavam ocorrendo sobre como acabar com as tradições antiquadas da hierarquia nos hospitais e escolas médicas e também sobre como um futuro serviço de saúde realmente poderia ser dirigido nos interesses dos que ele supostamente deveria servir. Dez mil empregados do centro de pesquisas nucleares em Saclay saíram em greve e levantaram não apenas questões sindicais, mas também questões fundamentais de poder e controle.

Cultura

Assim como chuvas em áreas desertas trazem um súbito florescimento de plantas estranhas e maravilhosas, a perspectiva de revolução começa a trazer à superfície algumas idéias estranhas e maravilhosas no domínio da arte, música e literatura. Os esboços começam a mostrar como a cultura pode florescer quando as algemas da busca pelo lucro do capitalismo são quebradas.

Um “comando” literário de novelistas assumiu a direção da sede da Sociedade dos Homens de Letras, apoiado por 50 outros escritores. Uma assembléia geral de um recém-formado sindicato dos escritores discutiu “O status de um escritor numa sociedade socialista”. Uma reunião dos “Estados Gerais” do cinema francês – 1.300 pessoas ao todo – encontrava-se regularmente e discutia a renovação de toda a indústria. Era um documento utópico demais para sobreviver: era contrário aos fatos econômicos da produção de filmes numa sociedade capitalista. É claro, numa economia planificada, nada disto seria utópico.

Diretores dos teatros de província e “Casas da Cultura” reuniram-se por toda uma semana no auge da crise! Artistas faziam propostas para uma “arte socialmente comprometida” e enviavam suas pinturas para serem penduradas nas vastas “galerias” das fábricas aéreas e de carros. Atores encenavam suas peças nas fábricas em greve. Todas as principais orquestras francesas entraram em greve – compositores e arranjadores, assim como instrumentalistas. Cantores de Ópera exigiram mais conteúdo no que cantavam. Um programa de reformas no ensino de música e artes foi elaborado em um debate maratona em meados de maio até junho. Tinha por meta cruzar os compartimentos impermeáveis nos quais a arte foi encaixada por tanto tempo.

A lista da miríade de elementos arrastados para o processo molecular da revolução era interminável. Havia ainda mais tumultos do que antes nas escolas e universidades, onde tudo começou. Em 11 de maio, um contingente de 6 mil pessoas de 18 liceus de Paris uniram-se numa marcha gigante e terminaram nas barricadas. O que os apelos dos estudantes por uma ação unida falharam em fazer por um ano, a experiência da manifestação fez em três horas.

Anteriormente, em fevereiro, uma reunião de 600 secundaristas discutiu o papel de sua embriônica organização, mas a ação foi esporádica e restrita a poucas escolas. Agora, cada camada foi afetada. Não menos do que 300 relatórios sobre a reforma escolar foram elaborados por comitês de secundaristas após longas e sérias discussões com pais, professores e trabalhadores durante suas ocupações. Mesmo nas universidades havia redutos de conservadorismo que tiveram de ser conquistados – a Faculdade de Medicina, a Cité Universitaire (uma comunidade de residências para milhares de estudantes estrangeiros), o Instituto para Estudos Políticos – notório por sua complacência – e também os colégios teológicos. Alguns foram conquistados pelo debate político, alguns através da infecção absoluta, outros através de sua experiência com os ataques físicos nas mãos da CRS. Um dos carabins – estudantes de medicina que tinham a reputação de serem “eunucos políticos” – contou uma história sobre um colega, também carabin: “Ele foi pegar seu carro no Boulevard St. Michel quando um grupo da CRS caiu sobre ele, o surraram e o chamaram de ‘estudante imundo’. Um ou dois dias depois, quando ouviu na rádio que os combates surgiram novamente, pulou em seu carro para tomar parte. Ele lembrou de pegar uma chave de fenda para arrancar os pavés (paralelepípedos das ruas). Encontrei-o na manhã seguinte, ele tinha se tornado um rebelde ativo”.

Estudantes de teologia foram particularmente rebeldes. Eles descreviam a igreja como “uma sociedade alienante, auto-perpetuante. Tudo isso aprendemos nas barricadas”. A Universidade de Chaplaincy organizou um enorme ‘talk-in’ (ocupação com debate). Um jovem seminarista que desafiou as regras de sua ordem para ir para Paris para isto declarou: “Sinto que é mais importante vir para testemunhar aqui do que continuar por mais uma semana comparando Gênesis 1 com o salmo 104, como eu estive fazendo na última semana!”

Um professor foi visto errando pelo Quartier Latin, obviamente perturbado com algo: “Eu não sei o que está acontecendo comigo, mas de repente toda a minha tese na Sorbonne sobre “A Piada Verbal” na Idade Média parece ridícula para mim’. Estes acadêmicos da atmosfera enclausurada das universidades e colégios bíblicos estavam acostumados a discutir questões cruciais como “Quantos anjos podem dançar na ponta de uma agulha”. Agora eles descobriram que as questões reais confrontando o resto da humanidade trabalhadora eram muito mais fascinantes!

Na atmosfera embriagadora e irreal das universidades houve inevitavelmente alguns “excessos”. Poucos aprovariam as tentativas de incendiar a Bolsa de Valores de Paris para tentar “nocautear o coração do capitalismo”. Poucos ficariam tão enlevados quanto Ernest Mandel, do PCI, que assistiu seu carro queimando sobre uma barricada e declarou como era linda a revolução! Não obstante, foi uma experiência inesquecível para todos, quando as estruturas de vida na sociedade capitalista pareciam para sempre desmoronadas. Eles tiveram o perfume da revolução em suas narinas e ele cheirava bem.

O contágio da Revolução Francesa não ficou confinado dentro das fronteiras da França. Os estudantes em todo lugar estavam intoxicados, não menos na Grã-Bretanha, onde vários protestos estavam em curso, no Hornsey Art College e nas universidades de Oxford, Sussex e Canterbury. Estudantes de Essex viajando de balsa da França declararam que eles tinham libertado o Canal e que “Paris está chegando”! Estudantes na London School of Economics, já engajados numa ocupação, onde dormiam no local (‘sleep-in’), decidiram visitar os estivadores de Londres para organizar uma ação de solidariedade com os trabalhadores franceses. Mas eles experimentaram uma tradicional rejeição sumária cockney [dialeto das camadas londrinas mais pobres]. Ao mesmo tempo, as esposas destes estivadores estavam envolvidas numa luta elas mesmas contra o aumento dos aluguéis. Vindas dos conjuntos habitacionais do leste de Londres, elas se manifestavam e cantavam do lado de fora do prédio da sub-prefeitura, Waterloo. Quanto elas viram cópias do jornal Militant com a manchete A REVOLUÇÃO FRANCESA COMEÇOU, gritaram com alegria: “É isto o que queremos aqui!”

Sem dúvida, o movimento na França capturou a imaginação de milhões de estudantes e trabalhadores no resto da Europa. Um movimento massivo de greve geral na Itália foi reconhecido como resultado direto do exemplo dado pela classe trabalhadora francesa. Em 14 de novembro de 1968, 12.5 milhões entraram em greve,subindo para 20 milhões em 5 de fevereiro de 1969. A Argentina experimentou suas “jornadas de maio” exatamente um ano depois dos eventos que estalaram na França. O movimento de greve geral conhecido como Cordobazo estourou contra a ditadura após choques iniciais entre um protesto estudantil e as forças do estado.Mas como as coisas chegaram as fim na França de 68? Se a greve geral tivesse seguido todo o seu curso, não apenas a francesa, mas a revolução européia estaria em andamento.

Revolução ou não?

“Todas as armas constitucionais que ele próprio forjou para proteger seu regime de uma crise como esta são agora vários pedaços de papel, até a arma do referendo é inútil… As greves adquiriram um caráter exclusivamente político, visando a derrubada do regime… em nenhuma circunstância mesmo as ofertas mais generosas serão aceitas. (Evening Standard 29 de maio de 1968).

O governo escapou por pouco de uma moção de censura na Assembléia (parlamento) em 22 de maio, por 11 votos, mas dois deputados Gaullistas renunciaram. Multidões reuniam-se nas lojas de televisão e famílias acotovelavam-se em torno dos aparelhos de rádio, como no tempo da guerra, para ouvir o debate na Assembléia. O resultado foi saudado com uma mistura de indignação e alivio. A transmissão apenas aconteceu com a permissão dos trabalhadores da ORTF.

Charles de Gaulle, Chefe do Estado, parecia completamente fora da realidade. Ele era satirizado e ridicularizado. A imprensa mundial falava dele como um “anacronismo”. Ele ficou ausente da situação por muito tempo. Voltou e ficou em silêncio. Quando fez finalmente seu “discurso à nação” de sete minutos em 24 de maio, foi vitima de um completo boicote televisivo, sendo apenas transmitido pela rádio. Ele admitiu que a povo da França poderia querer mais voz na direção de suas vidas. Mas tudo o que ele tinha a oferecer era um referendo sobre como o povo poderia “participar” e declarou que jogaria seu futuro no resultado. O sentimento de anti-climax depois disto era generalizado. Gaullistas começaram a pedir a demissão de de Gaulle. O Comitê Constitucional foi até preparado para recebe-la! Seu discurso não satisfez ninguém. Mitterand fez um chamado por eleições gerais. Uma manifestação nesta noite (24 de maio) terminou com trabalhadores e estudantes mais uma vez juntos nas barricadas.

A política de mediação e concessão falhou em dissipar a maré de revolta. Serviu para fortalecer a resolução da classe trabalhadora de se agarrar ao que tinha conquistado. Sentindo esta determinação – um endurecimento da situação – elementos no governo recaíram no hábito. Já era o bastante! Deram-se ordens para as barricadas serem atacadas e outra “Sexta-Feira sangrenta” entrou na história. A noite de 24 de maio de 1968 viu a pior violência de todas, em várias cidades. Em Paris a situação foi inflamada por uma declaração do Ministro do Interior às três da manhã, convocando a cidade a repelir ‘Le Pegre’ (ralé criminosa) supostamente responsável pelos combates. “Somos todos a ralé!”, replicaram os estudantes e trabalhadores. Batalhas furiosas estouraram dentro e fora do Quartier Latin. No fim da noite, 800 foram presos e mais de 1.500 feridos. Ocorreram duas mortes – um policial em Lyons e um jovem em Paris.

Este foi o pano de fundo para uma reunião crucial na Rue de Grenelle. Os líderes sindicais e o governo pareciam os únicos a querer que o movimento chegasse ao fim. Os líderes sindicais estavam desesperados por negociações – como estiveram em 1936, quando conversas tripartites similares ocorreram no Hotel de Matignon. Os líderes operários se apressaram em entrar em conversas com os representantes do governo, suspenso no meio do ar, e com representantes dos patrões, que estavam trancados em seus escritórios!

Um jornalista comentou que “longe de derrubarem o sr. Pompidou, eles vieram parlamentar com ele!” – em segredo, também! Milhões de trabalhadores ficaram colados aos seus rádios por notícias das negociações da Rue de Grenelle. Numerosos jornalistas acamparam no Ministério dos Assuntos Sociais onde as conversas estavam ocorrendo. Muito procurado pelas câmeras era Benoît Frachon, o presidente de 73 anos da CGT que foi um signatário do acordo de Matignon três décadas antes! Numa manifestação da CGT na noite anterior, jovens trabalhadores levavam cartazes dizendo ‘Não ceda, Séguy’, ‘Adieu de Gaulle’, ‘O Poder está nas ruas’, e ‘Poder para os trabalhadores’.

Por dois dias e noites, 49 “pessoas ilustres” trabalharam nas negociações e trouxeram uma lista de reformas massivas. Os líderes sindicais emergiram cansados mas risonhos. Imaginavam que poderiam agora levar crédito por algo que não foi o seu mérito… os maiores benefícios assegurados para a classe trabalhadora da França desde a Libertação.

Um repórter do Sunday Times, consciente do balanço de forças fora da sala de negociação, colocou as concessões em seu contexto apropriado: “qualquer amador teria negociado enormes concessões em tal situação!” Uma onda revolucionária que ameaçasse toda a “louça estatal” pode extrair de uma classe capitalista reformas que anos de conversas eram incapazes de conseguir. Uma classe enfrentando a própria destruição tomará cada centavo que lhe resta para aplacar o inimigo. Ela comprará tempo e então planejará um meio de tomar de volta o que teve que entregar quando o momento de crise passar, quando o inimigo deixou o campo de batalha.

Todos os trabalhadores conseguiram um aumento de 7%, e depois outro de 3% no final do ano. O salário mínimo estatutário subiria um terço, na agricultura em 56% e alguns assistentes de loja receberam um aumento de 72%. Os grevistas receberiam metade de seu salário normal pelo tempo em que estiveram ocupando suas fábricas!

Georges Séguy orgulhosamente dirigiu-se ao baluarte da CGT na Renault Billancourt. Em minutos, ele foi vaiado. Testemunhas lembram das grandes galerias lotadas acima. Não apenas eles mostraram sua oposição total ao acordo, mais imediatamente começaram refrões sobre um “governo do povo”. Para eles isto poderia significar apenas uma coisa – um “governo dos trabalhadores”. Os líderes sindicais comunistas sofreram exatamente o mesmo destino na mesma fábrica da Renault que os defensores comunistas do acordo de Matignon em 1936! Como antes, a mesma coisa também se seguiu. Fábrica após fábrica, as ofertas foram completamente rejeitadas e os trabalhadores entrincheiraram-se, esperando por uma alternativa melhor a surgir.

Os líderes sindicais tentavam entrar em negociações com o governo há dois anos. Agora, sob a pressão da revolução, eles tiveram sucesso e ganharam concessões além de seus sonhos mais loucos. Mas os trabalhadores da França não estavam satisfeitos. Eles queriam mais do que melhores salários, melhor seguridade social e negociações sobre direitos sindicais! A transformação de suas vidas estava à vista. Eles não iriam deixar esta chance escapar tão facilmente – eles nunca experimentaram nada como isto antes e poderiam nunca experimentar algo como isto novamente.

A sociedade francesa está agora completamente polarizada. Neste momento crucial, os líderes dos trabalhadores criminosamente falharam em dar uma liderança. A direita começou a se organizar através dos Comitês para a Defesa da República e a se armar. Mas os líderes operários estavam paralisados. Em várias ocasiões, antes e depois deste momento, uma ação decisiva poderia ter transformado a situação.