França de 1968 – Mês da Revolução – Lições da Greve Geral

As nuvens de tempestade se aproximam

O profundo ressentimento com as indignidades e imposições do governo gaullista cintilou em raiva nas “Jornadas de Maio”. Combinou-se a um descontentamento borbulhando nos locais de trabalho da França, que estalou em significativas batalhas. Os sinais de alerta da maior greve geral da história já se mostravam nos meses e anos precedentes. Em 1963, uma greve dos mineiros de dois meses e meio obteve pelo menos uma vitória parcial para os trabalhadores e um retrocesso psicológico para o governo. A eleição presidencial de dezembro de 1965 viu François Mitterand forçando de Gaulle a um segundo turno.

Em 1967 e nos primeiros meses de 1968, houve greves e locautes envolvendo maquinistas, trabalhadores metalúrgicos, siderúrgicos e da construção naval, e também o setor público. As principais federações sindicais chamaram greves de um dia e até de uma hora. Embora a maioria dos trabalhadores – cerca de 80% – não fossem organizados em sindicatos, isso não os impediu de se unir à ação sindical, mas muitas vezes deixados por sua própria conta em amargas batalhas com as forças do estado.

Em junho de 1967 a Peugeot chamou a tropa de choque contra grevistas e dois foram mortos. Militantes sindicais tentando se organizar eram vitimizados. Uma luta de longo prazo estava ocorrendo na fábrica de fibras sintéticas da Rhodiaceta em Lyons. No verão de 1967, 14.000 trabalhadores estiveram envolvidos numa greve de 23 dias. Locautes e demissões decorrentes e manifestações de massa ainda estavam ocorrendo nas fábricas de caminhões da Saciem em Caen no final daquele ano. Por vários dias, em janeiro de 1968, batalhas com a policia irromperam não apenas na linha de piquete mas pelas ruas da cidade.

Na planta da Renault em Billancourt, havia um nível de organização geralmente alto e o sindicato liderado pelo Partido Comunista, a CGT, tinha três quartos da mão de obra de 30.000 (22.000 recebiam por hora). Houve nada menos que 80 casos de ação sindical lá entre o inicio de março de 1968 e o começo de maio sobre demandas por maiores salários, reduções de horas e melhores condições.

Mesmo nos primeiros dias de maio não houve falta de lutas sindicais. O 1° de Maio viu 100 mil pessoas nas ruas de Paris. Os jovens estavam gritando ‘Empregos para a Juventude!’ com punhos cerrados levantados. Um amplo setor dos trabalhadores estava envolvido. Demandas por uma semana de 40 horas, direitos sindicais e anulação dos decretos de segurança social eram generalizadas.A maior federação sindical, a CGT, e a segunda maior, a CFDT (ex-Católica), já tinham anunciado seus planos por um dia de ação para 15 de maio sobre a segurança social e o desemprego. Elas também estavam envolvidas em planos para manifestações de massa no oeste da França em 8 de maio.

Le Monde (3 de maio) comentou sobre um ‘situação tensa’ na fábrica de aeronaves Sud Aviation em Nantes, Loire Atlantique. Os trabalhadores estavam lutando contra uma perda dos salários que os patrões insistiam que deveria acompanhar a redução da semana de trabalho para 46.5 horas. Eles estavam parando o trabalho e abandonando as ferramentas várias vezes por dia na primeira semana de maio, e os trabalhadores de colarinho branco apelaram à gerência para ceder às exigências dos trabalhadores. Esta fábrica se tornaria o campo de testes da grande greve.

Em 3 de maio, os gráficos também estavam ameaçando uma ação grevista sobre a transferência do trabalho. Uma greve relâmpago dos motoristas de ônibus em Paris sobre o prolongamento das horas de trabalho significou apenas dez ônibus de 180 circulando em um dos subúrbios de Paris. Em 5 de maio, 560 trabalhadores de uma refinaria de açúcar pararam o trabalho. No dia 6, motoristas de táxi e trabalhadores dos correios estavam planejando uma ação grevista. O Le Monde falou também de uma ‘crise nos hospitais’.

No dia seguinte, os sindicatos da policia estão em processo de formular demandas e propor uma ação para 1 de junho. Na Córsega, jovens trabalhadores da agricultura começaram uma ocupação. Controladores do tráfego aéreo ameaçavam uma greve. Na fábrica de caminhões Berliet, uma greve de 24 horas ocorreu a respeito do pagamento de bônus. Os sindicatos dos trabalhadores da meteorologia discutiam suas reivindicações! Mineiros do ferro em greve por um mês bloquearam a Route Nationale (auto-estrada) por uma hora. Uma fundição é ocupada, e uma fábrica de roupas é tomada pelos trabalhadores por uma semana.

O mais dramático de tudo neste período que levou à greve geral foram as manifestações de massa no Oeste da França. Elas envolviam os trabalhadores da eletricidade e transporte, metalurgia, construção, pesca e correios, contingentes das escolas, clérigos e freiras e, acima de tudo, numerosos jovens. As lojas são fechadas em solidariedade. A crise aqui era o de uma área severamente despojada com graves problemas na agricultura, uma severa escassez de industrias, e sem empregos para a juventude. A cada ano, 45.000 alunos deixavam a escola, mas até os empregos que costumavam estar disponíveis em Paris já estavam preenchidos. Havia uma queda nos padrões de vida e no rendimento agrícola. Na opinião de Paul Houee, Diretor do Instituto de Ciências Sociais e Econômicas de Angiers: ‘As condições de uma situação pré-revolucionária se juntaram’. Sob o slogan ‘O Oeste quer viver’, 30.000 se manifestaram em Brest em 8 de maio, 20.000 em Quimper, 10.000 em Rouen, 10.000 em San Brieuc – as maiores manifestações vistas desde a Libertação(4) – 12.000 em Morlais, 20.000 em Angiers, 20.000 em Nantes e 10.000 em Le Mans. Outra bomba-relógio estava soando!

A pressão vinda de baixo sobre os líderes dos partidos operários e sindicatos estava aumentando. Mais e mais jovens trabalhadores estavam se unindo às batalhas estudantis. O comportamento das autoridades – diretores universitários, ministros do governo e forças policiais – trouxe à superfície uma raiva e indignação que agora estava para explodir em cada canto da França.

Nos primeiros dias…

Muitos sobressaltos ocorreram em muitos quarteirões desacostumados à medida que os protestos estudantis se espalhavam para as fábricas.

Nos primeiros dias dos distúrbios estudantis, Peyrefitte declarou que as manifestações não tinham nada em comum com as de Berlin ou Varsóvia – elas eram de fato apenas uma ‘dificuldade local’. No sábado, 11 de maio, sua posição contra as demandas estudantis foi rejeitada pelo Primeiro Ministro, e pelo fim do mês sua carreira estava no fim!

Nos primeiros dias dos distúrbios estudantis, François Mitterand, Presidente da Federação dos Partidos de Esquerda, deu um apoio morno dizendo: ‘Mesmo se os métodos dos estudantes não são os melhores, isso ainda não significa que os do Ministro do Interior são bons.’ Pelo fim do mês ele estava propondo um ‘Governo Provisório’ de dez pessoas, com ele mesmo como Presidente, como a única solução para a crise!

Nos primeiros dias dos distúrbios estudantis, os líderes do Partido Comunista e sua federação sindical, a CGT, condenaram os estudantes, apoiados pelo Pravda da União Soviética, declarando que ‘esquerdistas’, ‘anarquistas’, ‘trotskistas’ e ‘pseudo-revolucionários’ estavam impedindo os estudantes de se formarem! Em 11 de maio estavam chamando todos os trabalhadores a fazerem uma ação grevista de um dia em solidariedade com os estudantes sob o slogan ‘Fim à repressão’, e pelo fim do mês, o poder estava sendo entregue a eles de bandeja!

Nos primeiros dias dos distúrbios estudantis, alguns dos estudantes foram às fábricas suplicar aos trabalhadores para se unir a sua luta e foram despachados sem cerimônias. No fim da terceira semana de maio, dez milhões de trabalhadores seguiram seu exemplo e então, mais uma vez, em junho as organizações e jornais estudantis foram banidos por um regime gaullista novamente dono da situação!

A enorme pressão vinda de baixo forçou os líderes das organizações operárias a fazer um giro de 180 graus sobre a questão dos estudantes. Seu objetivo passou então a tomar a direção do movimento para controla-lo. André Jeanson da CFDT admitiu depois: ‘Para muitos dos organizadores das manifestações, isso marcou o fim dos próprios eventos.’ A pressão poderia ser liberada através de uma greve geral de 24 horas, e especialmente os líderes sindicais comunistas esperavam isto (Georges Marchais, depois secretário do Partido Comunista, de fato se opôs mesmo ao chamado para uma greve geral de 24 horas!). Isso teria sido aperfeiçoado na Itália, onde greves gerais de até 2 minutos de duração supostamente serviam a um propósito. Os líderes sindicais franceses freqüentemente adotavam políticas similares, almejando dissipar e diminuir as energias dos trabalhadores sempre que pareciam estar preparando uma luta. Mesmo no período anterior à maio, eles tinham organizado movimentos parciais e locais – greves de 24 horas numa industria, em outras fechamentos de uma planta enquanto outras ficavam abertas, ou fechamentos de um setor por uma hora, etc. Freqüentemente, petições e protestos eram organizados ao invés de greves.

Mas ao invés de dissipar o movimento, a greve geral de 13 de maio de 1968 não iria parar depois de 24 horas! Foi uma massiva demonstração de solidariedade operária. Ela teve um profundo efeito sobre a consciência dos trabalhadores. Uma vez que experimentaram o sentimento de seu poder, dadas as condições sociais subjacentes, provaria ser impossível estancar a pressão vinda de baixo. Trabalhadores de todas as esferas de atividade participaram de gigantescas manifestações em Paris (um milhão), Marselha (50.000), Toulouse (40.000), Bordeaux (50.000) e Lyons (60.000). O gênio não se contentaria em ficar na garrafa!

Em Paris neste dia, tal era o poder da manifestação, que a policia saiu do caminho. O índice de criminalidade de fato caiu dramaticamente. Não houve nenhum saque ou quebra de janelas na área da manifestação. A CGT sozinha tinha 20.000 organizadores altamente disciplinados.

Um jornalista britânico descreveu a cena em Paris: “Uma maré humana em agitação… ninguém pode realmente contá-la. Os primeiros dos manifestantes alcançam o ponto de dispersão final horas antes das últimas fileiras terem deixado a Place de la Republique às sete da noite… interminavelmente eles marcham em fila. Há setores inteiros de funcionários de hospitais em sobretudos brancos, alguns carregando cartazes dizendo ‘Onde estão os “desaparecidos” dos hospitais?’” [expressando temores de que os feridos nas batalhas de rua pudessem ter sido levados sob custódia policial].

Cada fábrica, cada grande local de trabalho, parecia estar representado. Havia grupos numerosos de ferroviários, carteiros, tipógrafos, metroviários, metalúrgicos, aeroviários, eletricistas, advogados, trabalhadores dos esgotos, bancários, pintores e decoradores, trabalhadores do gás e dos mercados, moças de lojas, escrivãos de seguros, varredores de rua, operadores de cinema, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores das novas indústrias plásticas, um após o outro, a carne e o sangue da moderna sociedade capitalista, uma massa interminável, um poder que poderia varrer tudo à sua frente se só decidisse agir assim…

Havia faixas de todo tipo. Faixas sindicais, estudantis, políticas, não políticas… faixas do ‘Movimento contra Armas Atômicas’, faixas da ‘Pais dos Comitês de Alunos’… Algumas faixas eram vivamente aplaudidas, tais como uma dizendo ‘Vamos libertar as notícias’ trazida por funcionários do Serviço de Rádio e Televisão (ORTF). Algumas faixas entregavam-se num vivido simbolismo, como uma horripilante trazida por um grupo de artistas, representando mãos, cabeças e olhos humanos, cada um com seu etiqueta de preço à mostra em ganchos e bandejas de um açougue.

Significativamente, dadas as divisões alimentadas por seus líderes entre as diferentes organizações operárias, havia centenas de faixas sindicais conjuntas. Outras declaravam ‘Estudantes, Professores, Trabalhadores – Juntos’. Bandeiras vermelhas estavam em todo lugar. A Internationale irrompia em cada setor da marcha. Assim como gritos de ‘De Gaulle: renuncie!’ e ‘De Gaulle: assassino!’

No exato aniversário da ascensão ao poder de de Gaulle, gritos que caiam particularmente bem eram ‘10 anos é suficiente!’; ‘Adeus, Charlie!’ e ‘Feliz aniversário, de Gaulle!’. Nesta gigantesca manifestação os trabalhadores se tornaram conscientes de seu poderoso e impáravel poder. A consciência de sua força é o elemento mais importante da verdadeira força. A represa estava para arrebentar.

Os estudantes ocupam

Os estudantes foram da manifestação para a Sorbonne e o Censier Annexe para ocupar, discutir e abrir a universidade aos trabalhadores e a qualquer um interessado em discussões ininterruptas sobre cada assunto sob o sol. A Sorbonne foi fundada no século 13 e tinha funcionado por séculos como um censor intransigente de livros em nome da instituição católica. Foi numa época o centro da perseguição de protestantes e infiéis.

Agora não havia nenhuma influência obstrutiva, e um autêntico florescimento de idéias e ações irrestritas era refletido em cartazes e slogans que apareciam em cada pedaço disponível dos muros. ‘É proibido proibir!’, ‘Criatividade, Espontaneidade, Vida!’, ‘O futuro irá conter o que você colocar agora!’, ‘Trabalhadores de todos os países, divirtam-se!’, ‘Imaginação tomou o poder!’, ‘Não reivindicamos nada, não pediremos nada; tomaremos; ocuparemos!’, ‘Tudo é possível!’. Estas idéias extravagantes e exóticas eram o transbordamento da exuberância juvenil, contida por muito tempo por mesquinhas restrições e uma centralização frustrante. Devido ao isolamento dos estudantes do movimento operário, eles erroneamente imaginavam que seu poder vinha de suas próprias ações, ao invés das do proletariado. A realidade foi algumas vezes abandonada e a ‘democracia’ levada aos extremos! As discussões eram incessantes.

A Assembléia Geral da Ocupação da Sorbonne se encontraria toda noite no anfiteatro, inchado ao extremo, com mais de 5 mil pessoas presentes. Todos poderiam ter algo a dizer – a maioria no máximo por três minutos, mas algumas vezes com um pouco mais de tempo. Salas foram destinadas para ‘O Comitê de Ocupação’, ‘O Comitê de Imprensa’, ‘O Comitê de Propaganda’, comitês para os estudantes estrangeiros, comitês de ação dos estudantes dos liceus e comitês de distribuição de instalações. Numerosas ‘comissões’ foram criadas para se encarregar de projetos especiais, como a compilação de um dossiê sobre as atrocidades policiais, de estudo sobre as implicações da autonomia sobre o sistema de exame, etc.

A composição dos comitês mudava, algumas vezes todos os dias, mas de alguma maneira as coisas foram organizadas. Uma cantina foi criada em um grande hall, uma creche para crianças em outro. Um posto de primeiros socorros e dormitórios foram criados em outros lugares. Escalas de limpeza estavam em operação e destacamentos de ‘Services d’ordre’ foram estacionados nas entradas da universidade para vigiar contra ataques, seja da tropa de choque ou dos fascistas.

Quase todas as universidades da França foram logo ocupadas e todo o tipo de experimentos da ‘Universidade Crítica’ e ‘Contestação Permanente’ estavam procedendo rapidamente. Muitos estudantes mostraram grande coragem e habilidade – organizando equipes para construir as barricadas, para cuidar dos feridos, para levar mensagens em motocicletas com bandeiras vermelhas e assim por diante. Mas, orgulhosos de si mesmo como estavam, muitos deles pensavam que estavam “liderando” uma revolução, enquanto o drama verdadeiro estava se desdobrando num local diferente.

Os ‘batalhões pesados’ dos trabalhadores nas fábricas estavam para entrar na briga e inspirar novas camadas, nunca antes envolvidas em ação, a se unir a eles. A ‘cavalaria’, como Trotsky descreveu os estudantes e a intelectualidade, pode fazer o primeiro movimento. Eles podem criar uma brecha nas forças do inimigo, mas a vitória não pode ser assegurada a menos que o poderoso exército do proletariado tome a ação decisiva. Os trabalhadores retornavam para casa vindo das gigantescas manifestações do 13 de maio considerando todas as implicações do que estava acontecendo. Em alguns casos em algumas horas, a maioria em alguns dias, eles voltariam à greve em desafio pelo poder na sociedade.

O general de Gaulle, Presidente da República, não fez nenhuma declaração pública e já estava começando a parecer irrelevante na situação em desenvolvimento. Famoso como tático, ele não obstante decidiu continuar com uma visita de estado planejada para a Romênia como se nada excepcional estivesse acontecendo. No começo do mês ele descreveu a União Soviética como um ‘pilar da Europa’. Ele e o líder romeno Ceaucescu iriam, sem dúvida, se confortar um ao outro em face das tempestades que poderiam encerrar seus respectivos regimes.

O movimento em desenvolvimento na Tchecoslováquia estava ameaçando se converter numa revolução política contra todos as burocracias stalinistas do Leste. A onda de greves na França ameaçaria não apenas a existência do capitalismo na Europa, mas por sua vez exacerbaria o descontentamento dos trabalhadores sob o governo stalinista. A greve geral já estava a caminho muito antes que de Gaulle retornasse à França.

4 Dos nazistas no fim da 2ª Guerra Mundial.