Direitos LGBT: um aspecto esquecido da revolução soviética cem anos atrás
A revolução socialista de outubro em 1917 trouxe mudanças fundamentais e profundas na sociedade russa. Milhões de pessoas no maior país da Terra rapidamente se encontraram muito mais livres do que jamais haviam estado sob o despótico e antisemita Czar, as restrições da igreja e a brutalidade do capitalismo e do latifúndio russo. Além de permitir à classe trabalhadora assumir o controle da economia russa, a Revolução Russa também levou a avanços sem precedentes na libertação de mulheres e da população LGBT. Em Homosexual Desire in Revolutionary Russia, o estudioso do País de Gales, Dan Healey, relata a luta LGBT na Revolução Russa, os históricos ganhos progressistas conquistados sob Lênin e os bolcheviques e o posterior retorno, sob Stalin, para perseguição estatal e puritanismo homofóbico e sexista.
Avanços maciços
É notório que a Revolução Russa trouxe a descriminalização da homossexualidade em um ato quase único na Europa e surpreendentemente avançado em um país com condições semi-feudais em vastas partes onde a hierarquia religiosa havia sido um pilar do Estado. Healey revela fatos muito esquecidos, e mesmo ocultos, que mostram avanços ainda maiores: a União Soviética em seus primeiros anos foi o primeiro Estado industrializado a reconhecer o casamento do mesmo sexo; a URSS, ao lado de Weimar (cidade alemã), foi por um período breve a líder mundial em cirurgia de redesignação sexual; e especialistas médicos soviéticos, trabalhando ao lado das pessoas transgêneros, começaram a explorar a ideia do gênero não ser simplesmente um binário de homem e mulher, mas, em vez disso, um espectro.
Ainda que os socialistas reformistas, como os seguidores de Karl Kautsky, tomassem opiniões conservadoras sobre a sexualidade no início do século 20, os bolcheviques russos avançaram porque se baseavam em um movimento de base. O reconhecimento do casamento do mesmo sexo ocorreu quase organicamente: duas pessoas do mesmo gênero legal se inscreveram para se casar, e os tribunais e funcionários locais no despertar da Revolução Russa rapidamente decidiram que não havia base para negar o pedido.
Healey discute detalhadamente o caso de uma das partes neste casamento, tornado anônimo como “Evgenii Fedorovich M.” Atribuído ao gênero feminino no nascimento, Evgenii Fedorovich lutou com a identidade de gênero e o apoio inconsistente da família até a Revolução Russa dar-lhe a chance de se expressar como um homem. Enquanto trabalhava como instrutor político longe de sua aldeia de nascimento, ele namorou e se casou com uma mulher, “S.”, e formou uma família. Tragicamente, a reatribuição de Evgenii Fedorovich a uma cidade distante dividiu o relacionamento e, com problemas psiquiátricos, ele se afundou no alcoolismo.
O repensar revolucionário do sexo e do gênero
As discussões de Evgenii Fedorovich com psiquiatras soviéticos instruíram uma análise política revolucionária do sexo e do gênero. Healey dedica o capítulo seis de seu livro a descrever como as atitudes russas em direção a relações homoafetivas evoluíram rapidamente da Revolução até o fim do primeiro Plano Quinquenal (1932) de desafiar a ideia de relacionamentos do mesmo sexo como “perverso”, à medicalização, à declaração do biólogo N.K. Kol’tsov de que “não há sexo intermediário, mas sim uma quantidade infinita de sexos intermediários”.
Vários médicos soviéticos foram reunidos em uma comissão especializada, e ideias como as de Kol’tsov encontraram grande apoio. Esses médicos estavam sendo conduzidos pela experiência: assim que a cirurgia de redesignação sexual começou a ser praticada no início da década de 1920, os médicos foram inundados com solicitações de russos comuns que haviam lutado com seus próprios corpos durante toda a vida e, finalmente, viram um meio de resolução.
Reação stalinista
Embora esta comissão de médicos apresentasse ideias altamente avançadas sobre gênero e identidade de gênero, suas ideias, tragicamente, nunca foram totalmente realizadas. Com a consolidação de Stalin no poder no final da década de 1920 veio uma reação social viciada. Em 1933, o Estado soviético encerrou a comissão e, em 1936, restaurou a homossexualidade ao status de crime na Rússia. O legado desta reação permanece hoje, com alguns grupos stalinistas em todo o mundo ainda desprezando as ideias de identidade transgênero, transsexualidade, homossexualidade e bissexualidade como “não dialéticas”.
Por que isso aconteceu? Quando a classe trabalhadora teve poder político depois de 1917, ela avançou o mais rápido possível com uma vasta transformação da sociedade russa, incluindo a libertação de mulheres da servidão doméstica. Mas eles enfrentaram obstáculos assustadores causados pela devastação da Primeira Guerra Mundial e pela Guerra Civil Russa, agravada pelo isolamento da revolução após o fracasso das revoluções na Europa Ocidental. Isso criou o espaço para a burocracia conservadora e Stalin confiscarem o poder político da classe trabalhadora na década de 1920. Ainda que mantivessem a economia coletivizada, a burocracia voltou-se para dentro, para longe da revolução mundial, e buscava cada vez mais ter uma base social para o regime revertendo as políticas para uma ideologia social reacionária sobre a família, o papel das mulheres e a sexualidade. Eles também promoveram cada vez mais o nacionalismo russo.
Além disso, esta atitude reacionária em relação à sexualidade é, tragicamente, abraçada na Rússia capitalista de hoje, enquanto ativistas em todo o mundo estremecem com o homicídio de homossexuais respaldado pelo Estado na Chechênia e a homofobia legal e social cada vez maior na Rússia de Putin.
Healey não é socialista, e seu livro apresenta a fascinante história da libertação LGBT na Rússia através da lente de suas próprias posturas acadêmicas. Grande parte da terminologia de Healey e seu uso de convenções de nomenclatura parecem, na melhor das hipóteses, datadas. No entanto, as pessoas com quem ele discute e seus avanços heróicos merecem ser muito mais do que notas de rodapé. Eles certamente merecem ser lembrados nos EUA onde, apesar dos ganhos significativos conquistados pela comunidade LGBT, sob o governo de direita de Trump e com o domínio republicano em nível estadual, os estados estão novamente seguindo adiante com a legislação contra o casamento homoafetivo e com “bathroom bills.” (Projetos de lei sobre o uso de banheiros públicos) propositalmente transfóbicas.