Sobre os posicionamentos da esquerda em relação ao referendo na Venezuela e suas conseqüências
O referendo sobre a reforma constitucional proposta por Chávez possibilitou um importante debate sobre o posicionamento que os revolucionários devem ter em relação ao governo venezuelano e os rumos da lutas de classe na América Latina hoje.
Diversas posições foram tomadas por grupos que reivindicam o socialismo frente ao referendo e seu resultado. Em outro texto já avançamos sobre nossa análise do resultado do referendo, queremos com este texto debater com os outros setores da esquerda socialista.
A proposta de reforma constitucional
É certo que os revolucionários não privilegiam os instrumentos como referendos para buscar uma alteração na estrutura da sociedade. Sabemos que só a organização dos trabalhadores e a luta direta contra o capitalismo são as tarefas eficazes para construir o socialismo. Mas os referendos sucessivos que ocorreram na Venezuela vêm servindo como um importante momento de polarização de classe e, conseqüentemente, de avanço na consciência dos trabalhadores. Ainda que exatamente pelo formato de referendo, esse processo é deformado, seja numa crença na instituição seja no fortalecimento do personalismo.
O último referendo colocou em votação uma reforma que seguiam duas linhas principais. Medidas progressivas de negação do neoliberalismo, como o formal fim do latifúndio, ampliação do sistema previdenciário, redução de jornada de trabalho. A segunda linha é de concentração de poder no executivo e particularmente em Chávez, junto com uma regulamentação maior das relações públicas e privadas. O caráter ambíguo da proposta de reforma é o caráter ambíguo do próprio governo Chávez.
Votar em quê?
Vários grupos no Brasil se posicionaram frente ao referendo. O MES e a APS (correntes dentro do PSOL) apontaram para o ‘sim’ com apoio total à reforma e a Chávez. A CST (outra corrente do PSOL) posicionou-se pela abstenção e, em seguida, optou pelo voto nulo. O PSTU clamou pelo ‘não’. O SR discordou de todos esses posicionamentos.
Primeiro, um apoio total e irrestrito ao ‘sim’ seria uma indicação que cabe aos trabalhadores seguir o caminho apontado por Chávez. O que seria um grande erro. O que se prepara na Venezuela em relação à possibilidade do socialismo é ou uma contra-revolução ou um processo de superação do governo Chávez pela organização independente dos trabalhadores. Portanto, um ‘sim’ simplesmente, não ajuda no avanço da consciência dos trabalhadores para o futuro da luta.
A posição oposta também é extremamente equivocada. Os documentos do PSTU defendendo o ‘não’ apontam para grandes erros de análise. Primeiro ao considerar que a polarização entre o ‘sim’ e o ‘não’ era falsa. Se considerarmos somente o conteúdo da proposta de reforma, poderíamos dizer que entre o ‘sim’ e o ‘não’ não estava exatamente um corte límpido de classe. Mas, como em todos os processos históricos, nada se apresenta com clareza cristalina. A aguda polarização de classe existente no país refletiu-se de alguma forma na disputa em torno do referendo. Para os apoiadores do ‘sim’, numa formação heterogênea, a reforma simboliza uma resistência ao neoliberalismo e um fortalecimento de direitos dos trabalhadores. Talvez o que seja mais claro ainda para os trabalhadores na Venezuela, é que a vitória do ‘não’ é uma vitória da direita. Isso fica muito evidente com a forte abstenção. A abstenção, vinda dos setores apoiadores do governo de Chávez, é fruto das críticas à reforma, mas também de uma visão de que mesmo com críticas, não se poderia votar ‘não’, pois isso seria votar com a direita. Portanto, para muitos, a abstenção foi um refúgio.
Uma postura aparentemente intermediária foi o voto nulo ou a abstenção. Ela tem a vantagem de formalmente se diferenciar de Chávez e do chavismo e não engrossar a direita. É um sentimento válido buscar a diferenciação do chavismo, apontar seus limites e assim fortalecer um pólo classista e independente. A grande questão está em qual tática adotar para conseguir realizar esse objetivo. Chamar o voto nulo no caso desse referendo, em nossa avaliação, não foi a melhor tática. Nesse referendo, a abstenção ou o voto nulo tiveram como conseqüência prática o fortalecimento do não. Como ficou claro, a vitória do não resultou principalmente da enorme abstenção (3 milhões de eleitores que votavam com Chávez se abstiveram).
Para a CST a perda de apoio à proposta de Chávez poderia significar um avanço. Ainda que essa perda tenha feito vários membros do governo afirmarem que era preciso acertar o ponteiro, diminuir a burocracia, ou explicar melhor a reforma para o povo, como vimos, a perda de apoio significou um fortalecimento, ainda relativo, da direita. Isso não quer dizer que o resultado foi uma derrota total. Há, sem dúvida, possibilidades para uma política revolucionária nesse contexto. É fundamental explicar e apontar para os trabalhadores que uma direção vacilante enfraquece o poder dos trabalhadores, os divide, e em conseqüência, abre brechas para a reação da direita.
O sentimento que moveu vários a se absterem está ligado a essa vacilação do governo. No entanto, a tática de organizadamente chamar o voto nulo não joga um papel progressivo no processo. É um descolamento precoce, uma terceira alternativa isolada, pois a alta abstenção não foi organizada, não representa uma nova força, mas sim um movimento interno dentro do apoio ao governo. Tentar transformar essa alta abstenção em uma terceira força é superestimar o desenvolvimento da consciência neste momento entre os trabalhadores. Devemos lembrar que o grande nó do processo e do governo está em sua ambigüidade fundada em políticas progressistas e uma tranqüilidade econômica. O marxismo não é uma ciência objetiva do futuro, mas podemos prever que será no desenrolar desse nó, com uma fragilização econômica da Venezuela, que aparecerá um elemento qualitativamente novo no qual o descolamento maior possa ser organizado de maneira bem sucedida.
A posição mais acertada foi daqueles que votaram ‘sim’, mas não deixaram, na campanha, durante os debates, de apontar os aspectos negativos da proposta de reforma e os limites da direção chavista. Nossa seção na Venezuela, Socialismo Revolucionário, fez exatamente isso.
O voto crítico no ‘sim’ foi uma maneira de travar o dialogo com uma parcela importante da população que se coloca no campo da chamada revolução bolivariana.
A vitória do ‘não’ incentiva um discurso na direção chavista pela unidade, impondo seu projeto de partido único e de atrelamento das iniciativas dos trabalhadores ao projeto chavista. Isso de alguma forma dificulta o setor mais avançado da esquerda na defesa de instrumentos autônomos de classe. A luta contra um “mal maior”, por vezes, leva a enfraquecer as vozes dissonantes da esquerda mais conseqüente e estratégica em nome de uma suposta unidade. Apesar dessa maior dificuldade, a tarefa dos socialistas revolucionários é a apontar que um atrelamento total a essa direção vacilante é muito perigoso e levará à derrota.
Para nós, militantes do CIO, a tomada de uma posição política necessita levar em consideração o nível de consciência da classe trabalhadora como um dos elementos centrais. Não basta adotar uma política de agitar publicamente nossas caracterizações e princípios sem levar em consideração se alguém nos ouvirá ou entenderá. Um simples enfraquecimento da figura de Chávez não significa automaticamente um fortalecimento dos setores da esquerda mais avançada na Venezuela. O fortalecimento da classe trabalhadora, por vezes, passa por caminhos mais tortuosos, complexos e não lineares e para tanto a sensibilidade em compreender o momento histórico especifico da luta de classes é de extrema importância a fim de não cometermos equívocos caros à luta dos trabalhadores (as).