O legado de Mandela
A heróica condução do Congresso Nacional Africano (ANC) ao poder que acabou tragicamente num beco sem saída.
Artigo por Weizmann Hamilton e Thamsanqa Dumezweni, militantes do Movimento do Socialismo Democrático (DSM, seção do CIT na África do Sul). Traduzido por Eduardo Moraes (LSR).
O DSM oferece os pêsames à família do Mandela e a todos na África do Sul ou no exterior que estão de luto pelo falecimento de Nelson Rolihlahla Mandela. Mandela é um símbolo das lutas e sacrifícios de milhões através de décadas para acabar com o apartheid e conquistar a democracia. As esperanças e expectativas dessa luta heróica – com a poderosa classe trabalhadora negra cumprindo o papel protagonista – foram investidas em Mandela. Reconhecemos seu papel na derrota de um dos mais odiosos sistemas de opressão e exploração na história.
A morte de Mandela na quinta-feira, 5 de dezembro de 2013, traz ao fim o período de pré-luto que começou 6 meses atrás quando ele deu entrada no hospital com uma recorrente infecção pulmonar. Sua doença tem sua origem na tuberculose que ele contraiu durante o trabalho forçado em pedreiras na Ilha de Robben onde serviu a primeira parte de seus 27 anos de prisão por enfrentar o apartheid. Para muitos sua morte será bem vinda como um alívio ao sofrimento que ele enfrentou, estando completamente incapaz em sua casa em Joanesburgo, mas também pelo uso político que a liderança da ANC fez de sua condição, tendo em vista as eleições de 2014.
Integridade e comprometimento
Mandela é corretamente reverenciado mundialmente como um estadista do nível de grandes figuras da história como Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. Ele é reconhecido por seu papel na derrota de um dos mais vis regimes no planeta e um dos mais odiosos sistemas de opressão e exploração da história. Ele adquiriu o status de herói universal em boa parte devido à sua demonstração na prática de seu comprometimento ao auto sacrifício por uma causa nobre – a liberação nacional da maioria negra. Isso ficou claro em sua declaração, durante o Julgamento por Traição, de que a luta contra o racismo era um princípio pelo qual ele estava preparado a morrer.
Sua disposição a fazer o sacrifício maior pela causa vem do fato de que ele pessoalmente assumiu a tarefa de estabelecer o braço armado do ANC, Umkhonto weSizwe (MK), visitando secretamente países como Argélia para angariar apoio à luta armada, levando-o a ser instalado como o primeiro comandante do MK. Sua decidida recusa a aceitar qualquer compromisso com o regime do apartheid em troca de liberdade, escolhendo enfrentar vinte e sete anos de cárcere, reforçarão sua reputação de um homem de princípios e integridade, comprometido ao serviço de seu povo em contraste à atual elite política corrupta e sem princípios que é vista por muitos como deturpando o legado que ele lhes concedeu.
A atual liderança do ANC retrata a derrota do apartheid como o inevitável ápice da centenária marcha à vitória do movimento de libertação mais antigo do continente. Não há dúvida porém, que o ANC que conquistou o apoio das massas, em termos políticos, ideológicos e de comprometimento, foi o ANC do Mandela, da segunda metade de seu centenário e não o ANC original.
Mandela transforma o ANC
Como parte de uma nova geração de jovens líderes dos anos 40, inspirados pelas revoluções coloniais que sacudiram o imperialismo ao fim da segunda guerra mundial, Mandela e seus camaradas, principalmente, Walter Sisulu e Oliver Tambo, agitaram a liderança do ANC, cujo caráter até ali era determinado pelo caminho que escolheram para alcançar a salvação dos oprimidos – implorando a Rainha da Inglaterra para libertar os negros oprimidos, ao passo que juravam enquanto súditos sua lealdade sem fim a ela e ao império britânico.
De uma organização cujos métodos consistiam de solicitações e petições, Mandela e seus camaradas, tendo tomado o controle da juventude do ANC e adotando o Programa de Ação de 1949, converteram o ANC pela primeira vez numa organização comprometida a alcançar seus objetivos por ações de massa – campanhas de desobediência civil, boicotes a ônibus, greves e protestos contra passaportes internos para negros.
Daí se seguiu a adoção da Carta da Liberdade, cujas radicais demandas refletiam o quanto as massas trabalhadoras chegaram a influenciar o ANC, em contraste à liderança anterior ao Mandela e sua distância hostil à classe trabalhadora. Deste ponto até a liberação em 1994, era possível que as antagônicas aspirações das massas trabalhadoras e aquelas da classe média – a aspirante burguesia negra – mantidas em comum subjugação ao regime da minoria branca coexistissem na mesma organização sob o mesmo programa e compromisso mútuo de derrubar o governo da minoria branca. Não importava… até que passou a importar, ou seja, quando chegou a hora de implementar a Carta da Liberdade.
As próximas eleições ocorrerão vinte anos após o fim do apartheid. As históricas eleições de 1994 simbolizaram o triunfo da luta pela liberação nacional – do jugo da opressão racial e a abertura de portas a uma sociedade em que os negros pudessem ficar lado-a-lado com seus compatriotas brancos. Assegurados pelas promessas de uma vida melhor para todos e pela força de seus números, a maioria negra abraçou a generosidade que Mandela defendia com relação à minoria branca. A liderança de Mandela, acreditava-se, evitou uma guerra racial que era considerada inevitável.
Com uma liderança aparentemente unificada na determinação de liderar seu povo à liberdade, não havia motivo para duvidar da promessa de uma vida melhor para todos por vir. Através da liderança de Mandela, uma nova e democrática constituição, descrita como uma das mais progressivas do mundo, foi escrita. Sob seu alicerce, surgiria uma nova “nação arco-íris”, na qual opressão racial e seus companheiros – pobreza, analfabetismo, doenças e falta de moradias – seriam banidos para sempre. Nesta nova África do Sul haveria igualdade de oportunidade para todos numa nação “unificada em sua diversidade”.
A realidade parece diferente
Ao chegar à sua segunda década de democracia, a realidade na África do Sul parece muito diferente da promessa que surgiu do acordo político negociado no começo dos anos 1990. Apesar do governo racista de FW De Klerk ter vagado o governo para o ANC e do ANC ter alcançado grandes maiorias em diferentes eleições, para a gigantesca maioria pouco mudou.
Uma característica marcante dos elogios à Mandela, são os conflituosos interesses de classe convergindo a uma manifestação comum de uma nação unida em luto a ele.
A “nação” legado de Mandela está tão desconstruída agora quanto ao fim do apartheid, desagregada em suas duas principais forças sociais – a classe trabalhadora de um lado e a burguesia de outro. A África do Sul é a sociedade mais desigual da Terra. Há 8 milhões de desempregados, 12 milhões vão dormir com fome e milhões não tem acesso a educação, saúde e habitação de qualidade.
A elite governante do ANC está demonstrando as mesmas características daqueles que substituiu – corrupção, inépcia e um apetite insaciável por riqueza e poder. Pior ainda, enquanto condena as políticas de ordenação do apartheid como um crime contra a humanidade, os representantes da nova elite estão demonstrando um crescente gosto por métodos similares de governo aos de seus predecessores, utilizando-se de legislações repressivas como o Ato de Segredo, Ato de Pontos Chave Nacional e a Lei de Cortes Tradicionais para assegurar a manutenção de seu poder e para manter a nação no mesmo tipo de segredos sombrios e repressão do regime do apartheid.
Em vez de alcançar os sonhos de igualdade e prosperidade que as massas foram levadas a acreditar que os aguardaria na democracia, seus benefícios atingiram apenas uma miúda minoria. Longe da prometida “Nação Arco-Íris” de iguais, a África do Sul se assemelha mais, como disse o secretário geral do ANC Gwede Mantashe, a um café (negro por baixo) com uma fina camada de creme e chocolate salpicado em cima.
Um tema comum na grande maioria das avaliações da vida de Mandela é que a conduta de seus sucessores no ANC e de sua conflituosa família são não apenas um desvio de tudo pelo quê ele lutou como também a desecração de seu legado. Mas será que isso é verdade?
Comentaristas burgueses gostariam que acreditássemos que a África do Sul seria um lugar melhor, senão o país de nossos sonhos, se os sucessores de Mandela tivessem seguido seus passos. A verdade, porém, é que é exatamente isso que eles fizeram, pelo menos quanto às questões fundamentais em que o ANC se baseou em seus vinte anos de governo.
Mandela e o programa GEAR
Mandela cumpriu um papel decisivo no abandono da Carta da Liberdade e tudo que o ANC defendeu até então. A ruptura decisiva foi a adoção do programa GEAR (Crescimento, Emprego e Redistribuição) em 1996. O programa levaria o ANC a cada vez mais bater de frente com a classe trabalhadora – nos locais de trabalho, cidades, favelas e universidades e introduziu os primeiros conflitos na Aliança Tripartite (com a central sindical COSATU e o Partido Comunista da Africa do Sul – PCAS). A diferença do governo Mandela para o de seus sucessores foi mais uma questão de estilo que de substância.
De certa forma injustamente, Thabo Mbeki (presidente que sucedeu Mandela), que se orgulhava de se proclamar um seguidor da neo-liberal Margaret Tatcher, foi bastante associado ao programa GEAR. No entanto, GEAR foi adotado durante a presidência de Mandela. Apesar do fato de Mbeki ter sido chave na adoção do programa GEAR, ele o fez com a benção de Mandela (e do resto da liderança do ANC e do PCAS).
No período entre sua liberação em 1990 e a ascensão ao poder do ANC quatro anos depois, a posição de Mandela, de um compromisso inabalável à Carta da Liberdade e reafirmação de suas cláusulas de estatização como fundamentais na política do ANC passou a uma declaração, mesmo antes do ANC entrar no parlamento de que privatizações – no coração dos objetivos do programa GEAR – eram agora a política essencial do ANC. O mesmo Mandela que levou o ANC ao poder com a promessa de empregos para todos declarou no parlamento após a adoção do programa GEAR que o governo do ANC “não era uma de criação de empregos”.
Ao executar esse transplante de coração, “doutor” Mandela não consultou o paciente. Enquanto a adoção da Carta da Liberdade foi o ápice do mais democrático processo da história do ANC, a adoção do programa GEAR foi profundamente antidemocrático. A Carta da Liberdade foi a soma das contribuições de milhares de trabalhadores urbanos e rurais e de todo tipo de gente pelo país, cujas propostas foram escritas em pedaços de papel e remetidas ao Congresso do Povo para serem incorporadas.
O programa GEAR por outro lado, foi desenvolvido pelas costas não apenas da militância, mas da maioria até mesmo da direção do ANC. Foi adotado e implementado em 1996 e apresentado a militância do partido na conferência do ANC de 1997 como um fato consumado, após já ter sido aprovado pelos grandes empresários.
O ex-líder do MK, membro do comitê central do PCAS e Ministro da Inteligência Ronnie Kasrils confirma, numa confissão surpreendentemente honesta, que sob a liderança de Mandela, o ANC traiu os “mais pobres dos pobres” pelo capital doméstico e imperialista nas negociações Codesa (Convenção por uma África do Sul Democrática – parte da negociação que levou ao fim do apartheid).
Acordos comerciais com Mandela
Citando Sampie Terreblanche, da Universidade Stellenbosch, Ronnie Kasrils escreve “… no fim de 1993, grandes estratégias de negócios – planejadas em 1991 na residência do magnata da mineração Harry Oppenheimer – estavam sendo cristalizadas em discussões secretas nas madrugadas do Banco de Desenvolvimento da África do Sul. Estavam presentes além do ANC, líderes em minérios e energia e chefes de multinacionais americanas e britânicas.
O quê surgiu dessas “discussões da madrugada”? Kasrils revela: “A nacionalização das minas e dos principais setores da economia como visados na Carta da Liberdade foi abandonada.” Kasrils descreve como a liderança do ANC se prostrou ante o capital doméstico e o imperialismo: “O ANC aceitou responsabilidade por uma grande dívida da era do apartheid… um imposto de renda nos super-ricos para financiar projetos de desenvolvimento foi colocado de lado e corporações domésticas e internacionais, enriquecidas pelo apartheid, foram perdoadas de quaisquer reparações financeiras. Obrigações orçamentárias extremamente rígidas foram instituídas, amarrando as mãos de qualquer governo futuro. Uma política de livre comércio e abolição de tarifas alfandegárias em linha com a doutrina neo-liberal foram aceitas.”
As raízes do desencantamento da liderança do ANC com a constituição, e sua crescente tensão com a própria democracia parlamentar vêm do atropelamento de sua própria democracia interna.
Ao contrário do que era propagandeado pelo regime anterior, a liderança do ANC, apesar do apoio do PCAS, nunca foi infectada pela “doença” do comunismo. O ex-presidente Mbeki, cuja ideologia foi falsamente retratada como diferente da de Mandela, apenas ecoava de maneira audível pela classe trabalhadora aquilo que Mandela cristalizou já em 1956, apenas um ano após a adoção da Carta da Liberdade e depois no Julgamento por Traição em 1964.
Ele não queria que a Carta da Liberdade fosse confundida com socialismo. A Carta da Liberdade, ele explicou “… não é de modo algum um plano para um estado socialista. Ela reivindica a redistribuição, mas não a estatização da terra; ela defende a estatização de minas, bancos e monopólios da indústria pois os grandes monopólios pertencem a apenas uma raça e sem essa estatização, a dominação racial seria perpetuada apesar da distribuição de poder político.
Como pontuamos anteriormente, o apoio do ANC à estatização nunca foi um passo na direção da abolição do capitalismo, mas uma maneira de usar o estado para acelerar o desenvolvimento de uma burguesia negra, assim como os nacionalistas brancos desenvolveram uma burguesia afrikaner (sulafricanos brancos). Como Mandela explicou em seu Julgamento por Traição: “A política de estatização do ANC corresponde à velha política do atual Partido Nacionalista, que por muitos anos teve no seu programa a nacionalização das minas de ouro que à época eram controladas pelo capital estrangeiro.”
Mandela antes das eleições
O ANC se encontra neste ponto na história, não porque se desviou do curso histórico que planejou para si, mas porque é para cá que, dada sua história, caráter social e propósito histórico, sempre esteve encaminhado.
A rendição do ANC nas negociações Codesa não foi um desvio deste caminho. De fato, foi a concretização da missão histórica do ANC. Isso foi sinalizado no discurso do Julgamento por Traição de Mandela em que ele deixou clara a aceitação da liderança do ANC em negociar mesmo o princípio fundamental de eleições diretas com uma-pessoa-um-voto, oferecendo que os negros tivessem um número limitado no congresso, que seria aumentado gradualmente com o tempo. Ele também sinalizou isso em negociações com representantes da inteligência do regime do apartheid a partir de 1985, ainda que não tivesse sido designado para isso pelo ANC.
As negociações que se seguiram com o alto escalão do regime foram precedidas por conversas com membros da política convencional em 1987 em Dakar, Senegal. O abandono da luta armada sem nenhuma consulta aos quadros do MK, mostram que a luta armada nunca passou de uma ação de propaganda dessa tática com o intuito de forçar o regime a negociar. A rendição nas negociações Codesa foram a sequência lógica.
O prêmio Nobel da Paz foi conferido a Mandela e De Klerk para perpetuar o mito de que o acordo negociado foi a fortuita confluência de um governo burguês afrikaner e um ANC liderado por Mandela, magnânime em sua vitória. Mas como o próprio Mandela foi obrigado a pontuar, o país não foi liberado por ele ou pelo ANC, mas pelas massas trabalhadoras.
Se o imperialismo e a burguesia dominante na África do Sul exerceram pressão no regime dominante do apartheid para negociar com o ANC foi porque eles entendiam que a luta das massas – das greves de Natal em 1973 ao levante da juventude de 1976 ou o movimento insurrecionário dos anos de 1980, instigado pela consciência socialista dos trabalhadores da central COSATU – se mostravam uma ameaça mortal a seu sistema. Fosse o governo da minoria branca derrubado por uma insurreição das massas, o futuro do capitalismo estaria ameaçado. As negociações secretas com Mandela convenceram aos estrategistas mais consequentes do capital de que Mandela era um homem com o qual poderiam fazer negócios. Mandela nunca contemplou a abolição do capitalismo. Seu problema não era com o capitalismo, mas com um capitalismo que favorecia uma raça sobre a outra. Por isso, a classe dominante é eternamente grata a Mandela.
A liderança do ANC nunca se comprometeu com uma transformação significativa da sociedade sulafricana. Longe de desejar a derrubada do capitalismo, ela buscou se acomodar nele. Com o capitalismo agora atravessando sua pior crise desde os anos 1930, a incapacidade deste governo capitalista de cumprir as expectativas do povo se torna mais e mais aguda. A crise do capitalismo é refletida no próprio ANC.
Novo partido dos trabalhadores
Quase que conspirando para tornar simétricos os ciclos de vida do partido que ele tão heroicamente liderou e do próprio Mandela, a história parece ter determinado que o falecimento de Mandela coincidirá com a implosão do ANC.
Para a elite governante do ANC, o falecimento de Mandela é uma bem vinda distração de um dos maiores golpes à credibilidade do ANC, após relatório do Ministério Público com descobertas de corrupção e mal administração contra dois de seus ministros, além da contínua saga da investigação de corrupção em que mais de R200m (45 milhões de reais) foram gastos na residência privada do atual presidente Zuma em Nkandla.
Não há dúvidas de que a liderança do ANC irá usar a morte de Mandela para tentar reviver a sorte de um partido que alienou a classe trabalhadora ao ponto de que no congresso especial da União Nacional de Metalúrgicos que ocorre em dezembro, é amplamente esperado que seja aprovada uma resolução para que não se apóie o ANC nas eleições de 2014 e que a contribuição de R8m (2 milhões de reais) seja mantida em seu fundo de campanhas. Num contexto no qual uma enquete revelou que 67% dos trabalhadores filiados a COSATU apoiariam um candidato apoiado pela central, a aprovação de tal resolução iriar reverberar pelos trabalhadores organizados e para além da COSATU, quase certamente causando um racha na central e dando um grave golpe na performance eleitoral do ANC. É por isso que o presidente da COSATU, S’dumo Dlamini, líder da facção capitalista pró-Zuma na COSATU não desperdiçou tempo em cinicamente usar a ocasião para pedir unidade “em nome de Mandela”.
Mas qualquer benefício da simpatia das massas será temporário. Apesar dos elogios de Zuma à Mandela como o “maior filho” da África do Sul, para muitos o país está sendo governado por seu pior presidente. A popularidade de Zuma é tão baixa que seus conselheiros mais próximos mal podem disfarçar o descontentamento de o ANC ter seu mais reverenciado líder sendo enterrado por seu mais desprezado, que com seu desavergonhado chauvinismo zulu reviveu o mesmo tribalismo que o ANC foi criado para combater, levando o ANC de um nacionalismo relativamente progressivo a seguir os passos do nacionalismo racista e reacionário do Partido Nacionalista do apartheid. Ao enterrar o fundador do ANC moderno, Zuma estará enterrando a própria encarnação moderna do partido.
Com ele serão enterrados os últimos raios de seu halo de organização liberadora. A morte de Mandela irá provavelmente acelerar o processo de declínio do ANC. Ao redor dele o ANC era capaz de ter alguma coesão, aproveitando o reflexo de sua glória. Com o Partido Socialista dos Trabalhadores (WASP – Workers and Socialist Party), que já recebeu apoio do Movimento Nacional de Transporte – racha que representa 50000 trabalhadores do corrupto sindicato de transportes da África do Sul, – funcionando como uma referência, o caminho está sendo aberto para o surgimento de uma alternativa de massas da classe trabalhadora com um programa socialista.
Portanto, enquanto a burguesia lamenta o iminente colapso das negociações Codesa que foram sua salvação, a classe trabalhadora acordou aos sons do massacre de Marikana – em que o partido que eles acreditaram por tanto tempo ser o seu, demonstrou ser o partido dos patrões. O que ocorreu foi uma troca dos capitães políticos do capitalismo: o governo racista branco foi substituído por um governo eleito democraticamente “não racista” baseado na maioria negra.
A criação do Partido Socialista dos Trabalhadores representa um histórico passo adiante: a reivindicação do proletariado de sua independência política e de classe, sua liberação da prisão política e ideológica do ANC e da Aliança Tripartite na qual foi encarcerada por duas décadas. A marcha para uma África do Sul socialista, da qual a classe trabalhadora foi desviada desde 1994, agora foi retomada.
Os burgueses e seus porta-vozes tem motivos para se preocuparem com a morte de Mandela. Mesmo que alguns chorem lágrimas de crocodilo, a questão é que ele deu ao capitalismo sulafricano um novo sopro de vida. Já faz quase vinte anos que seu ANC chegou ao poder. Estes vinte anos tem consistentemente revelado a brutalidade do capitalismo – pobreza, desemprego e desigualdade o triplo desafio, como dizem líderes do ANC. Sob o capitalismo eles não podem ser superados. Apenas sob o socialismo os trabalhadores livrarão a sociedade destas mazelas do capitalismo. Resta aos trabalhadores e à juventude de hoje seguir o que há de melhor no exemplo de Mandela – auto sacrifício e determinação – mas também aprender que no combate que travamos, um compromisso com um inimigo de classe é inadmissível, porque eles inevitavelmente levam à traição das massas visto que o capitalismo não pode cumprir suas expectativas. Mais importante, eles devem aprender que a classe trabalhadora só deve confiar em suas próprias lideranças políticas, organizações e programa independentes para transformar a sociedade de acordo com seus próprios interesses e dos pobres, por uma África do Sul socialista e um mundo socialista.