O coronavírus e o racismo estrutural: “a África não é um laboratório de testes” – é preciso enfrentar a pandemia, a xenofobia e o racismo
A primeira semana de abril começou com a notícia de uma conversa entre dois médicos franceses transmitida pelo canal LCI (La Chaîne Info), da TV francesa, que gerou indignação por parte de figuras conhecidas do futebol africano. Os jogadores Samuel Eto’o (camaronês) e Didier Drogba (marfinense) expressaram revolta em suas redes sociais contra um comentário feito durante a conversa dos médicos, que apontou a possibilidade de combate ao coronavírus com a vacina BCG, usada para prevenção da tuberculose, testando-a em pessoas do continente africano.
Na França, país que participou da colonização de países na África, Ásia e América, o governo de Macron teve que admitir que as reformas anti-trabalhistas neoliberais e o fechamento de fronteiras aos refugiados – muitos vindo de países antes colonizados pelo capitalista império francês – aprofundaram o desmantelamento do sistema de saúde e de proteção social, despreparado o país para evitar mortes das pessoas menos favorecidas, principalmente trabalhadores pobres e refugiados.
A discussão sobre a eficiência da vacina nos casos de COVID-19 é importante, mas o apontamento de fazer os testes em pessoas africanas deve ser compreendido com a gravidade que representa, é fruto do racismo somada avisão colonialista que jamais deixou de assolar o povo africano, refugiados e afrodescendentes em demais países fora da África.
Nossas vidas importam – em defesa das culturas, vidas dos refugiados, das sociedades africanas e afrodescendentes
Marcados por um passado de colonialismo e escravismo, os diversos países africanos enfrentam dificuldades diretamente ligadas à escravização de milhões de pessoas, e têm justamente nesse passado as origens de sua condição de subdesenvolvimento. O descaso e a banalização mantidos por visões ainda imperialistas sobre os refugiados e sobre o continente africano geram um acirramento da desigualdade social e o aumento da precarização da vida, fazendo com que mesmo questões humanitárias sejam deixadas de lado quando o assunto diz respeito aos povos africanos.
Ofato do comentário que o médico francês ter ocorrido em uma emissora de visibilidade nacional e internacional mostra descaso e o profundo preconceito em relação aos povos do continente africano, que em sua visão podem ser literalmente usados para testar a eficiência da vacina já que “não usam máscara”. Não ter máscaras disponíveis ou não ter acesso a produtos para higienizar as mãos com frequência, e mesmo não ter a possibilidade de ficar em casa saindo somente para o estritamente necessário, são problemas da falta de estrutura e de ações por parte do capitalismoe dos governos para evitar a contaminação pelo coronavírus, vividos por pessoas espalhadas por todo o mundo, e não a ocasião que justifica testar a vacina em pessoas africanas já que “não usam máscara”.
Existe uma carência de proteção e de acesso a serviços de assistência à saúde, que fazem com que doenças como a causada pelo Ebola, por exemplo, levem muito mais tempo para serem erradicadas, com menos esforços e menos recursos à disposição das pessoas, e um maior número de mortes. Isto é, quando se trata dos povos de países africanos não é prioridade lutar pela vida, a comoção em relação aos problemas de saúde, fome e etc. é menor, e as medidas para garantir não só a ausência de doenças mas também o bem estar das pessoas são insuficientes ou inexistentes.
Basta de genocídio e necropolítica
À medida em que as vidas são consideradas banais, dispensáveis para interesses capitalistas, se estabelece um cenário em que enquanto a terra do continente africano é vista como fonte de recursos naturais e, portanto, de lucros, as nações por sua vez são ignoradas, desconsideradas e desrespeitadas, vítimas do racismo global. Assim, a realidade dos povos africanos ainda hoje é a de viver sem que as grandes corporações ou governos de direita se importem para promover mobilização no combate às doenças disseminadas em meio às populações etnicamente plurais dos 54 países da África, criando particularidades sobre os impactos da atual pandemia e como enfrentá-la nesses países.
Diante da propagação do coronavírus, a verdadeira situação das pessoas africanas não aparecem como assunto de conversas que levantem a necessidade de maior suporte aos países subdesenvolvidos, mas sim como alvo para serem as cobaias no momento de testar uma vacina. Isso levou a denúncia de Drogba, dizendo em suas redes sociais que “a África não é um laboratório de testes”.
Vida acima dos lucros – contra o neocolonialismo nos países do hemisfério sul
As lideranças dos países da África devem proteger o povo africano, e desde já repudiar a proposta de testar a vacina nas populações. A classe dominante herdeira do período colonial nações tem uma dívida histórica com os povos africanos e superar essa pandemia implica em priorizar a vida das pessoas no continente, respeitando-as e garantindo assistência à saúde, adaptando as produções para fornecer os suprimentos necessários, garantindo os salários da classe trabalhadora e renda durante essa crise para as pessoas desempregadas.
Tanto nos países africanos como nos demais países do hemisfério sul, se preparar para o cenário de pandemia ainda pelos próximos meses é fundamental, em especial pela futura fase do inverno que virá, e aumento do número de outras doenças como resfriados, gripe, pneumonia, e outras, que elevam a necessidade de atendimento à saúde sendo que os sistemas de atendimento não estão preparados para a atender a todos já com os casos esperados de Covid-19.
Além do mais, os próximos períodos e o clima frio esperado, com aumento da ocorrência de outras doenças, poderão comprometer a imunidade das pessoas, facilitando a propagação do coronavírus. Inclusive no Brasil,último país a abolir a escravidão e cuja a população negra, a maiorfora do continente africano, está concentrada em sua maioria nas periferias, os governos precisam agir protegendo os grupos de risco e criando as condições para que a quarentena seja possível, sem que as pessoas passem fome ao ficar em casa, tendo seus salários, tendo uma renda emergencial, e oferecendo alimentação, pontos de distribuição de produtos de higiene e máscaras para moradores de rua.
O racismo marginaliza e discrimina as pessoas negras, e isso não só não mudou com a pandemia, bem como mostra o comentário do médico, como tem fatores que agravam ainda mais o preconceito existente.
Somos a maioria, faremos Palmares de novo
A realidade demilhões trabalhadores e trabalhadoras negras autônomos, refugiados ouque ocupam cargos em empresas que estão despedindo pessoas, ainda é a de serem os primeiros a serem excluídos, demitidos, sob critérios racistas para fazer essa escolha.
Não esqueceremos do primeiro caso de morte por Covid-19 registrado no Rio de Janeiro, de uma trabalhadora, empregada doméstica, mulher, negra, que teve que se submeter ao contato com os patrões contaminados pelo coronavírus. Está explícito quem morre primeiro nessa pandemia em países como o Brasil.
Toda a classe trabalhadora, negra e não negra, com ou sem emprego, vem enfrentando tudo isso e precisa do suporte imediato com renda básica emergencial, proibição de despejos, suspensão de dívidas domésticas, fornecimento de alimentos à preços populares para grupos sociais em situação de vulnerabilidade socioeconômica garantia de quarentena e acesso a equipamentos de proteção individual do governo durante essa pandemia, mas o modo como essa crise afeta negros e negras soma ainda a discriminação racial.
Mais do que nunca é preciso combater a ideia de testagem das vacinas no povo africano e para issoé preciso que as medidas de garantia das condições venham para evitar a propagação do vírus sejam garantidas já. Africanos e afrodescendentes não serão as cobaias das experimentações para combater essa pandemia. As soluções pautadas com racismo ou quaisquer outros preconceitos não nos servem.
Governos de todo o mundo devem priorizar a vida das pessoas, e não amenizar a crise econômica para as grandes empresas. É preciso combater a classe dominante de direita ou extrema-direita, que não vai abrir mão de seus lucros sem luta, com estratégias anticapitalistas, antirracistas, socialistas, sem xenofobia e contra toda forma de discriminação.