Governo Lula sacrifica os mais pobres em nome do arcabouço fiscal
Após meses de discussões internas no governo, o pacote de cortes para garantir as metas do arcabouço fiscal foi finalmente apresentado por Fernando Haddad em um pronunciamento na TV em 27 de novembro. Apesar da tentativa de dourar a pílula anunciando a intenção de apresentar um projeto no ano que vem para elevar a isenção do imposto de renda para 5 mil reais a partir de 2026, o maior fardo desse pacote cai sobre as costas dos mais pobres, que não se beneficiarão dessa medida.
O “mercado” queria ainda mais e respondeu com queda na bolsa e o dólar superando pela primeira vez os 6 reais. O governo segue o mesmo caminho que levou à vitória de Milei na Argentina e Trump nos EUA. É urgente construir e unir as lutas para barrar esse pacote e assim criar uma força que possa desafiar a extrema direita.
O arcabouço fiscal é incompatível com justiça social
Como muitos de nós alertavam, o arcabouço fiscal levaria a ataques e cortes, para garantir um crescente superávit primário que garanta o pagamento da dívida pública a bancos e ricos. Já no primeiro ano de aplicação do novo arcabouço fiscal, quando a meta era de déficit zero, essa política já se mostrou incompatível com qualquer justiça social. Foram 19 bilhões de cortes e congelamentos de verbas esse ano, e para os próximos dois, a proposta é cortar 70 bilhões.
É gritante a ausência de medidas que mexem com as centenas de bilhões que vão para isenção de impostos de grandes empresas e do agronegócio. A equipe de Fernando Haddad ainda estudava medidas piores, como desvincular o piso da aposentadoria e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) do salário mínimo ou acabar com o piso de gastos com saúde e educação.
Essas medidas ainda podem voltar, já há uma proposta de PEC alternativa sendo elaborada por deputados da extrema direita nesse sentido. O próprio Haddad também diz que essas propostas não são “uma bala de prata” e que mais medidas podem ser necessárias.
Mas se isso era para ser o “mal menor”, é revoltante ver como o maior peso dos cortes cai sobre os mais pobres. A principal medida será a limitação do aumento do salário mínimo ao limite do arcabouço fiscal, de 0,6% a 2,5%, que limita também as aposentadorias, abono salarial e BPC. Cálculos mostram que se essa regra tivesse sido aplicada desde o primeiro governo Lula em 2003, o salário mínimo hoje seria 400 reais mais baixo.
Sob a falsa pretensão de “combater fraudes” e passar o “pente fino”, o BPC também é atacado. 300 mil beneficiários do BPCs já foram cortados , sem nenhum dado mostrando quantos destes realmente eram fraudulentos, enquanto relatos na mídia mostram o desespero de pessoas analfabetas, sem celular, que de repente ficam sem qualquer auxílio e com grandes dificuldades de regularizar sua situação para voltar a receber. O “pente fino” vai passar também pelo Bolsa Família.
Mas além dessas medidas, há também a proposta de restringir quem tem acesso ao BPC. Hoje ele é pago para pessoas com deficiência ou idosos com uma renda familiar por pessoa de até um quarto de salário mínimo, sem levar em consideração outros auxílios baseados no salário mínimo. Isso mudará a partir de agora. No cálculo da renda familiar serão considerados esses benefícios, como o próprio BPC ou baixas aposentadorias de familiares, mesmo que não morem juntos. Se for um casal de idosos ou pessoas com deficiência, a metade da renda será cortada, mesmo se não moram juntos. Também haverá mais restrições para pessoas com deficiência, com exigência de invalidez e com a incapacidade registrada no CID (Classificação Internacional de Doenças).
O discurso de denunciar “fraudes” para atacar direitos sociais é bastante usado pela direita. Veja que no caso das licitações e privatizações, onde o grau de corrupção é muito maior, a ocorrência de fraudes bilionárias não é usada para atacar as privatizações, algo que seria muito mais justo, já que por definição se trata de beneficiar uma pequena elite em detrimento dos mais pobres.
O abono salarial também sofrerá restrições. Hoje, essa renda extra é paga para quem recebe até 2 salários mínimos, mas o acesso será reduzido a quem tem 1,5 salários mínimos.
Há também outros ataques, como a incorporação parcial do FUNDEB (fundo para financiamento da educação básica) no arcabouço fiscal, uma regra que limita o aumento de salário do funcionalismo a 0,6% em anos que os gastos discricionários (não obrigatórios) caírem e a prorrogação da DRU (Desvinculação de Receitas da União) até 2032, permitindo que até 30% das receitas vinculadas sejam usadas livremente pelo governo.
Medidas positivas bem limitadas
Para amenizar as críticas à essa avalanche de ataques, foram incluídas algumas medidas positivas, mas ainda bem limitadas. Há proposta de limitar os “penduricalhos” que tornam possível os supersalários acima do teto do funcionalismo de 44 mil reais, a retirada de alguns privilégios dos militares (no caso da “morte fictícia”, o pagamento de pensão de militares expulsos para seus familiares, não é privilégio, é fraude) e o aumento dos impostos de quem ganha mais de 50 mil por mês para cobrir a isenção de até 5 mil reais. No caso do aumento dos impostos para os mais ricos, com um imposto mínimo de 10% somando todas as rendas, incluindo por exemplo dividendos, é muito pouco. Já no governo de Itamar Franco em 1994 foi implementada a taxação de dividendos de 15% e o imposto máximo de renda era 35%, mas isso foi revogado por FHC e essa revogação foi mantida nos governos do PT.
Para dar um exemplo do que seria possível, segundo o estudo britânico da Tax Justice Network, seria possível arrecadar cerca de R$ 260 bilhões no Brasil com uma taxação progressiva dos super-ricos, com uma taxa entre 1,7% e 3,5%.
No caso da reforma tributária, a intenção de dourar a pílula amarga só fica para o ano que vem. Veremos também como essas propostas sofrerão ajustes no Congresso. O primeiro passo dos deputados do “Centrão” foi pressionar pela liberação de emendas. Sem grande pressão e mobilização social, o risco é que as propostas fiquem ainda piores, como foi no caso do arcabouço fiscal.
Construindo a derrota…
Esse pacote neoliberal é uma escolha de Lula e Haddad. A lógica da estratégia da conciliação de classes é que se aqueles com quem você se alia vão mais à direita, você vai junto, mesmo que isso signifique atacar sua própria base social.
Você pode ter um governo progressista que lute por justiça social, sofre uma derrota e talvez até faça uma concessão para evitar uma derrota pior. Mas isso seria feito sem deixar de propor o que é necessário para defender o povo trabalhador, mobilizando para a luta e fazendo a disputa. Aqui não se trata disso. É o próprio governo propondo os ataques e tentando dar o ar de que se trata de justiça social. No “Zap do Lula” circula uma gravação dizendo que “O pacote do governo é sobre cuidar de quem mais precisa! Ele traz investimentos em saúde, educação e criação de empregos“. Mentira do começo ao fim.
Até mesmo representantes do PSOL tentaram embarcar nessa linha. O deputado do PSOL-RJ, Henrique Vieira, postou no X no dia 27:
“O governo @LulaOficial anunciou agora há pouco um pacote de medidas econômicas para combater desigualdades, fortalecer a economia e equilibrar as contas públicas! … Essas medidas reafirmam o compromisso do governo com o povo trabalhador e as famílias brasileiras! #JustiçaSocial é combater privilégios para ampliar direitos… Haverá revisão e combate a irregularidades no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Bolsa Família para proteger quem realmente precisa.“ As contas de Guilherme Boulos e Erika Hilton só comentaram a isenção de renda até 5 mil reais.
Dois dias depois, a Executiva Nacional do PSOL adotou corretamente uma linha de oposição aos cortes sociais, o que é positivo. Mas essas contradições mostram os limites da linha da direção do PSOL, de ser base e participar do governo Lula, com a ideia de apostar que o “governo Lula dê certo”, como forma de barrar a extrema direita nas eleições de 2026. O governo “dar certo” costuma ser explicitado como a aplicação do “programa eleito nas urnas em 2022”. Mas o programa pró-forma registrado pela campanha de Lula não é o programa do governo. O governo “dar certo” para Lula e Haddad, é manter a aliança com o “Centrão”, para garantir a “governabilidade”, e votar o pacote de ataques apresentado por Haddad. Se esse pacote cair, será uma derrota para o governo. Se ele for aprovado , o governo perde apoio da classe trabalhadora, e merecidamente. Não tem como isso “dar certo”, seja para barrar a extrema direita, seja para defender os nossos direitos.
Já vimos esse filme repetidamente, e o mocinho perde sempre. Foi assim que a Dilma caiu (com seu pacote de ataques sendo derrotado e o governo do PT deixando de ter utilidade para o mercado). Foi assim que Biden e Harris foram derrotados, levando à vitória de Trump nos EUA. Foi assim que Alberto Fernández, Cristina Kirchner e Sergio Massa perderam, abrindo o caminho para Milei na Argentina.
… ou o caminho da resistência e de uma alternativa?
A correlação de forças hoje não é positiva, mas apostar no apoio ao governo não ajuda. O rumo de tornar o PSOL um puxadinho do PT fragiliza a construção de uma alternativa. O balanço das eleições mostra também que o pragmatismo eleitoral não ajuda nem para ganhar as eleições. Após as eleições, Guilherme Boulos vem fazendo o balanço de que ”a esquerda não conseguiu fazer uma disputa de valores”. Total acordo. Mas ele tinha essa chance nas eleições, mas ao invés disso apostou em acomodação ao centro, que ele agora diz que esse é o caminho da morte, com rebaixamento programático, não levantando temas como o direito ao aborto, a oposição à privatização da educação infantil e até flertando como o “empreendedorismo”.
Houve elementos importantes de luta e resistência que infelizmente não tiveram destaque nas eleições. As mobilizações que barraram o PL 1904 do estupro não se traduziram a um debate sobre o tema nas eleições, por exemplo. Por outro lado, a luta pelo fim da escala 6X1 foi um sopro de ar fresco e elegeu Rick Azevedo como o mais votado do PSOL no Rio de Janeiro, enquanto o partido como um todo recuou. Essa luta teve continuidade com as mobilizações de 15 de novembro, mas será necessário ainda mais luta, incluindo greves como a da Pespsico, sem ilusões de que o apoio de deputados da direita que oportunisticamente assinaram a PEC apresentada por Erika Hilton signifique que há um caminho negociado para essa conquista social.
Luta e a alternativa socialista
2025 será um ano com novos ataques, mas também de luta e resistência. O que se deve fazer agora é construir as mobilizações em curso: pelo fim da escala 6X1, contra os novos ataques ao direito ao aborto, contra a anistia dos golpistas, junto com uma luta para derrotar o pacote de ataques do governo.
Não podemos permitir que cheguemos em 2026 com a esquerda desmoralizada tentando defender o governo e a única oposição existente seja a da direita. Por isso, essa luta precisa passar por cima do discurso petista de que qualquer luta enfraquece o governo e abre espaço para o retorno da direita. Pelo contrário, só uma forte mobilização social contra esses ataques poderá começar a mudar a correlação de forças. Mas isso precisa passar pela construção de uma alternativa política que possa dar rumo a essa luta. Isso significa manter independência em relação ao governo e combater de forma coerente a política de conciliação de classes do PT.
Quando o governo for ameaçado por ataques da extrema direita, não iremos hesitar em combater qualquer tentativa golpista (e não confiar que a polícia e tribunais irão nos salvar, como tem sido a linha perigosa que prevaleceu após as eleições de 2022). Mas quando o governo ataca a nossa classe, somos oposição de esquerda, defendendo um programa socialista que possa mostrar um caminho que rompa com a lógica de ataques para defender os interesses da elite capitalista.