Austeridade e concessões à direita impedem avanços sociais e não afastam ameaça da extrema direita
É necessário construir as lutas e uma alternativa socialista
O governo Lula comemorou os resultados econômicos acima das expectativas divulgados nas últimas semanas. O PIB do segundo trimestre aumentou em 1,4%. Isto levou a uma onda de revisão otimista para o resultado da economia brasileira como um todo no ano de 2024. Isto tanto por parte do governo, quanto do próprio mercado. As previsões mais otimistas apontam para um crescimento de 2,9% para este ano.
A lógica do déficit zero e arcabouço fiscal faz com que mesmo com esse crescimento não haja espaço para melhorias substanciais para a população. O governo não ataca de forma alguma as estruturas de poder que impedem de atacar os grandes problemas do país, seja a gigante desigualdade e problemas sociais, ou a crescente catástrofe climática. Pelo contrário, o governo aprofunda a política de concessões ao mercado e à direita, e por isso é incapaz de afastar a ameaça da extrema direita. Só construindo o caminho das lutas e uma alternativa socialista será possível sair dessa armadilha.
O fator mais provável como explicação do crescimento é o aumento no poder de consumo das famílias. A massa salarial do país cresceu na medida em que os índices de desemprego caíram. Com uma taxa de 6,8%, o desemprego é o menor desde 2012. A isto somam-se os programas sociais que foram mantidos graças ao pacto da chamada “PEC da Transição”, mantendo, por exemplo, um Bolsa Família muito acima do patamar pré-pandemia.
Atendendo-se a estas expectativas, o resultado anual pode aproximar-se do ano de 2013 (3%), antes do período de recessão que se iniciou em 2014. Isto, contudo, sem recuperar a média de crescimento de então: em torno de 4% entre 2003 e 2013. Uma tendência da economia mundial, onde os períodos de recessão se recuperam em patamares comumente abaixo dos períodos de crescimento anteriores. Isto é ainda mais válido para este momento em que o capitalismo enfrenta uma multiplicidade de crises que envolvem desde aspectos sociais a ambientais, com o desencadeamento de conflitos comerciais e propriamente militares.
Para além disso, a política de conciliação e pacificação de Lula com a elite econômica burguesa do país impede com que a melhora econômica seja utilizada como uma arma efetiva no enfrentamento da direita, inclusive de seus representantes mais radicais.
Juros altos e corte de gastos – receita para qualquer cenário
Desde o início do governo, as frações burguesas que fizeram uma escolha momentânea por Lula frente a Bolsonaro nas eleições de 2022 fazem pressão de fora do governo para incidir sobre as disputas internas do mesmo. No primeiro semestre de 2024, pudemos ver como Fernando Haddad contou com este apoio para se sobressair nestas disputas e tomar as rédeas da política econômica do governo com um viés de mais austeridade baseado em seu Arcabouço Fiscal.
Mesmo contrariando a retórica que ensaiava anteriormente, Lula autorizou o anúncio de cortes orçamentários em 2024 na casa dos R$ 15 bilhões. Para o orçamento de 2025, os gastos públicos serão reduzidos em R$ 25,9 bilhões. Oficialmente, o governo segue mantendo a meta de déficit zero. Os principais alvos anunciados pela equipe econômica são os gastos sociais. Assim, anunciam um “pente fino” nos programas sociais, que deve servir para cortar benefícios. Outras medidas ventiladas são o não cumprimento dos pisos constitucionais dos gastos com a saúde e educação públicas.
O governo continua sem nenhuma intenção de enfrentar o mercado. O nome indicado para a presidência do Banco Central a partir do ano que vem é Gabriel Galípolo. O economista aparece como um “bom moço” do mercado financeiro, inclinado a posturas mais próximas de concepções neokeynesianas do que é comum entre seus pares. Mas nada o suficiente para fazer com que a burguesia se sinta ameaçada. Aliás, pelo contrário. Galípolo foi celebrado pelos representantes do mercado.
Neste momento em que a economia dá supostos motivos para comemorar, a elite econômica começa a mudar o seu discurso. Antes, a taxa de juros precisava permanecer alta por conta dos altos juros do Banco Central dos EUA, da alta do dólar, do risco inflacionário etc. Agora, que a economia brasileira parece aliviar, provavelmente será necessário manter uma alta taxa de juros por conta do baixo desemprego, do, sempre presente, risco inflacionário etc. O cenário muda, a receita econômica é sempre a mesma: austeridade fiscal e uma política monetária contracionista em benefício dos rentistas.
Da burguesia nada se espera efetivamente. Contudo, nos últimos meses, o próprio governo federal modificou a sua retórica. Antes, o inimigo era o bolsonarista presidente do BC Roberto Campos Neto, que com sua política de altos juros tentava “sabotar” o governo Lula. A retórica era tão forte que as centrais sindicais vinculadas à base social do governo chegaram a realizar manifestações pela redução das taxas de juros.
Aparentemente, para o governo, este problema sumiu do horizonte e não se fala mais disso. O mercado estabelece uma “expectativa” (pressão) de alta de juros já para as próximas reuniões do COPOM. Na última reunião, mesmo os conselheiros indicados por Lula, Galípolo incluso, votaram contra a redução dos juros. Uma alta na taxa de juros agora seria vista como “um bom cartão de visitas” de Galípolo ao mercado financeiro. Ele sabe disso melhor do que ninguém e, misturando-se esse momento com o de sua sabatina no Senado Federal para aprovação de sua indicação, não seria uma surpresa se ele se esforçasse por atender às “expectativas” do mercado.
A redução da pobreza extrema e da fome ocorre sem qualquer abalo na estrutura da desigualdade. A partir de dados do próprio IBGE, a Oxfam calcula que a renda do 1% mais rico do país está em um patamar 40 vezes maior do que a dos 40% mais pobres. Isto se explica em uma estrutura econômica que chega a realizar alguma transferência de renda através de programas sociais, principalmente das camadas médias, mas não avança nenhum milímetro no combate aos privilégios dos ricos como o estabelecimento de taxação das grandes fortunas, ou mesmo a redução de subsídios sobre empresas com fortes lobbys no congresso.
Espaço para maior articulação da direita e extrema direita
O problema maior neste cenário é que ele não ocorre sem riscos. O primeiro ciclo de governos petistas aconteceu em um clima em que se pensava ser possível transformar as coisas gradualmente, em um longo prazo. Já naquele momento ficou provado, com a crise política de 2014 a 2016, que culminou no golpe contra Dilma Rousseff, como essa tática gradualista e que nunca focou elementos estruturais do país, não poderia dar certo. Agora o cenário é ainda pior.
Há uma extrema direita forte no país, que acabou de deixar o governo federal e domina postos estratégicos na estrutura política em muitos estados e no Congresso Federal. Ela pressiona a direita tradicional, retirando-lhe espaço político e fazendo com que ela adote posições ainda mais reacionárias para tentar manter-se como força política relevante. No caso do famoso “Centrão”, a direita fisiológica herdeira direta da ditadura empresarial-militar de 1964, essas posições costumam ser assumidas sem nenhum desconforto.
Se no primeiro ciclo de governos petistas o executivo federal tinha condições de barganha com esse setor por meio de liberação de verbas para os parlamentares, isto já não é mais assim. O Congresso Federal controla algo próximo a 20% do orçamento federal com as diversas mudanças que foram estabelecidas desde o golpe de 2016, e aprofundadas durante o governo Bolsonaro. Lula garantiu vagas ministeriais para o Centrão, e pode até ampliá-las. No entanto, isto não tem servido para angariar apoio no Congresso Federal de parlamentares desta área para o governo.
Cresce o poder do Centrão
Ainda assim, numa tentativa de conter possíveis tentativas de impeachment por parte deste setor, o governo se dobra cada vez mais às suas exigências. Embora ainda se discuta o nome de sucessão de Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados (no momento em que escrevemos o nome mais cotado é do golpista Hugo Mota, cria direta de Eduardo Cunha), o que já está certo é que o governo federal deve apoiar a mesma candidatura que o Centrão. É verdade que a correlação de forças no Congresso é desfavorável para o campo progressista. Ser minoria, no entanto, implica em lutar pela maioria. E não é possível fazer isso escondendo posições!
Apoiar o Centrão só pode ter como resultado direto o seu fortalecimento a curto e médio prazo. E isto deve ser visto nas eleições municipais deste ano, onde os partidos deste campo devem ser os mais bem sucedidos na eleição de prefeituras. Eleições estas, que não devem ameaçar a imagem do governo federal de pacificação e conciliação com a burguesia. É o que demonstra a sua disposição ao apoiar nomes da direita tradicional, embora razoavelmente moderada, como é o caso de Eduardo Paes (PSD) no Rio de Janeiro, ou Geraldo Júnior (MDB) em Salvador. Ainda assim, há que se lembrar que mesmo estes possuem ligações com elementos mais reacionários, como é o caso de Paes, ao mesmo tempo apoiado pelo PT e pelo deputado de direita Otoni de Paula, auto intitulado “de direita e conservador”.
Enquanto isso, a extrema direita, embora acumulando algumas derrotas conjunturais no último período, como a inelegibilidade de Bolsonaro para 2026 e a repressão sobre os atos do 08 de Janeiro, busca se rearticular. Ela passa efetivamente por um momento interno de disputa de direção que envolve desde Bolsonaro e sua família, apoiadores de primeira hora como Tarcísio de Freitas e Nikolas Ferreira, passa por aliados de ocasião como Ronaldo Caiado e chega até novos atores no palco como o candidato à prefeitura de São Paulo que tem horrorizado a todos, Pablo Marçal.
A extrema direita tenta retomar a iniciativa
No último período, a extrema direita tentou retomar a sua ofensiva, buscando um discurso que organizasse a sua base social em torno de bandeiras capazes de mobilizá-la. A que mais lhe serviu foi a proibição das atividades do “X” (Twitter) a partir de decisões do Ministro do STF Alexandre de Moraes. O próprio Elon Musk entrou no coro da extrema direita brasileira (como ele já faz em diversos outros países) para tentar energizar sua base. O recente caso de denúncias de assédio sexual ao ex-ministro de Direitos Humanos Sílvio de Almeida também foi utilizado hipocritamente pelos mesmos agitadores que, via de regra, utilizam a sua audiência para tripudiar dos direitos dos setores oprimidos.
Por enquanto, esta agitação não foi efetiva em fazer com que pudessem retomar o controle das ruas. No último 07 de Setembro, como parece estar se tornando tradicional, a corja bolsonarista reuniu-se mais uma vez na Avenida Paulista. Desta vez, o poder de mobilização se demonstrou muito menor que o do ato realizado em fevereiro.
Isto não deve servir para acreditar que este campo esteja minguando. Bolsonaro perdeu exposição e audiência, comparando-se ao momento em que ocupava a cadeira presidencial. De igual forma, sua atual linha política é um pouco difícil de engolir para uma base que foi educada a amar um suposto “outsider” do sistema político, mas que nesse momento precisa fazer uma série de acordos com setores de direita mais amplos afim de negociar uma possível anistia no Congresso para os crimes de que é acusado. Outros atores se apresentam para ocupar o posto de liderança deste setor. Este momento de desarticulação parece influenciar em sua capacidade de mobilização momentaneamente.
No entanto, há exemplos que demonstram que a extrema direita ainda possui muito espaço. Nas eleições de São Paulo, por exemplo, Pablo Marçal disputa um fenômeno no que diz respeito ao seu rápido ganho de popularidade e de intenções de voto. Chama a atenção o ato de que, pela primeira vez, as críticas de Bolsonaro a uma político de direita não resultaram na perda de popularidade do mesmo. A família do ex-presidente teve de recuar das críticas ao coach protofascista, mesmo sendo forçada a manter o apoio a Nunes (MDB).
Isto demonstra que acordos defensivos com o Centrão não são suficientes para defender o país de uma escalada reacionária. Pelo contrário, uma política de austeridade que impeça a melhoria efetiva das condições de vida da maioria da população e da classe trabalhadora em particular vai continuar abrindo espaço para a agitação reacionária. Se a maré ficar turbulenta por conta disto, os ratos de direita serão os primeiros a abandonar a canoa dos acordos com Lula.
A mobilização independente é o único caminho
O país é marcado por uma desigualdade brutal, índices crescentes de violência, especialmente contra mulheres, LGBTs e a população negra e indígena, carência no acesso a muitos direitos básicos como moradia, saúde e educação, fruto de anos de políticas neoliberais e inconsequentes. A isto tem se somado catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, e na seca histórica que vivemos, 60% das cidades do país estão sendo afetadas pela fumaça das queimadas que cobrem o território de norte a sul.
Uma política de austeridade baseada no Arcabouço Fiscal não é apenas inofensiva contra esses problemas. Ela caminha na direção oposta. Servirá para piorar ainda mais as condições de vida da maioria da população, enquanto garante grandes remessas do fundo público para os da burguesia. É preciso revogá-lo.
Para melhorar realmente as condições da classe trabalhadora, também é necessário revogar as Reformas Trabalhista e da Previdência, que só foram possíveis de serem aprovadas por causa do golpe de 2016. Não é completa uma “defesa da democracia” que deixe de lado o enfrentamento das consequências concretas do golpe.
Da mesma forma como é necessário impor limites às chantagens do Congresso Nacional, turbinado pelas diversas facetas de seus “orçamentos secretos”, “emendas impositivas”, “do relator” e coisas afins. Assim como também é preciso enfrentar o privilégio dos ricos, taxando grandes fortunas e efetivamente tomando grandes partes da atividade econômica e financeira sob um plano econômico democrático sob controle dos trabalhadores.
É verdade que o governo federal não possui força sozinho para enfrentar estes setores. Esta força só pode ser conquistada a partir da mobilização independente da classe trabalhadora, dos setores oprimidos e da juventude.
No entanto, a postura que Lula e o governo federal vêm apresentando frente às diversas greves do funcionalismo federal demonstra que seu último desejo é a de que o poder de mobilização dos setores populares cresça. O governo tem sido intransigente nas negociações, chegando a ameaçar grevistas com medidas como cortes de ponto, sindicâncias e outras.
Na luta contra o PL1904, Lula só se pronunciou após muita pressão do movimento de mulheres. E mesmo assim, de forma escorregadia. Apenas quando as manifestações contra o PL do Estuprador já tomavam as ruas, o governo federal embarcou na oposição ao mesmo. Sua postura inicial era a de “preservar” as suas figuras de ataques com a “pauta dos costumes” às vésperas das eleições municipais.
Apostar nas lutas
O caminho da conciliação e da concessão à direita pode, no máximo, adiar derrotas. Mas nunca resultar em vitórias. Ele pode parecer o único viável no momento. Isto acontece porque as mobilizações da classe no último período, apesar de importantes, foram insuficientes para superar a contenção imposta pelas direções ligadas ao governo federal, virar a chave do relativo esgotamento que pairou sobre a classe trabalhadora após anos de enfrentamento ao Bolsonarismo no governo, e destravar todo o seu potencial.
Contudo, sem que chegue este momento, amargaremos a convivência com a ameaça do retorno ao poder pela extrema direita durante um longo tempo. É preciso derrotá-la e isto não será feito sem luta!