A abundância vermelha é possível? A economia planificada e a luta pelo socialismo
O assunto desse livro são os anos de Khrushchev na Rússia, o período após a morte de Stalin em 1953 até a derrubada de Nikita Khrushchev como primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética em 1964. E Francis Spufford, apesar de suas intenções de provar o oposto, parcialmente pelo menos, ajuda a reabilitar a ideia de uma economia planificada.
O livro não é nem uma novela, no sentido estrito do termo, nem é puro fato. Normalmente, esse é um método insatisfatório para examinar importantes questões. Mas Spufford combina fato e ficção de modo muito engenhoso. Além disso, não carece de habilidade literária.
Spufford ilustra as enormes conquistas e o grande potencial da economia planificada. As falhas óbvias inerentes a um sistema burocrático baseado no controle e gestão da cúpula são realçados. Isso está em marcante contraste com a maioria dos relatos da história da União Soviética de 1917 em diante, que pintam um quadro de uma noite infinita de ditadura, repressão, Gulag, etc, sem quaisquer traços redentores ou lições para hoje.
De fato, Spufford pontua as indubitáveis conquistas da União Soviética, mesmo depois da terrível destruição causada pela invasão nazista na Segunda Guerra Mundial. Ele escreve: “Desde a queda da União Soviética, e a abertura de seus arquivos, historiadores da Rússia e do Ocidente recalcularam o crescimento soviético mais uma vez: e mesmo usando as mais pessimistas dessas novas estimativas, todas mais baixas que os números do Kremlin e da CIA, a União Soviética ainda mostra um ritmo mais rápido nos anos 1950 do que qualquer outro país do mundo, exceto o Japão. Oficialmente, a economia soviética cresceu em 10,1% ao ano; segundo a CIA, cresceu 7% ao ano; agora as estimativas estão acima de 5% ao ano. Isso ainda é suficiente para ultrapassar a Alemanha Ocidental, outra estrela de crescimento do período, e para deixar para trás a média americana, de 3,3% ao ano nessa década”.
Nos anos 1960, na revista Scientific American, um estudo objetivo chegou à mesma conclusão: que a taxa de crescimento da Rússia era sem precedentes, excedendo até a do Japão, segundo sua análise. Mesmo se o Japão excedesse a taxa de crescimento da Rússia nessa etapa, ele era apenas um país, não a semicontinental União Soviética. Além disso, o crescimento do Japão era uma consequência dos esforços especiais empreendidos pelo imperialismo estadunidense, em particular, para renovar completamente a economia do Japão, incluindo a reforma agrária implementada pelo procônsul general MacArthur. Isso foi por causa da ameaça aos interesses do imperialismo na Ásia que vinham do exemplo da recém-vitoriosa Revolução Chinesa.
Os marxistas foram acusados de exagerar as conquistas da União Soviética. Pontuamos que, com as vantagens de uma economia planificada e apesar das ineficiências colossais do regime totalitário unipartidário stalinista, ela foi capaz de produzir mais cientistas, engenheiros e técnicos do que o resto do mundo junto. Isso era uma fonte de desdém para nossos adversários. Agora, esse livro chega essencialmente à mesma conclusão. Em uma etapa, a União Soviética estava produzindo mais cientistas e técnicos do que os EUA e estava realmente à frente em campos chave da pesquisa e exploração espacial, entre outros.
Além disso, o crescimento econômico engendrado pelas vantagens de uma economia planificada permitisse que o regime de Khrushchev começasse a aumentar significativamente os padrões de vida. Spufford pontua: “Os salários dos trabalhadores foram aumentados, e os salários da elite foram congelados, criando uma divisão de renda muito mais igualitária”. Por um tempo, no final dos anos 1950 e começo dos 1960, os capitalistas no Ocidente sentiam a mesma inquietação hiptnotizante que sentiam com o crescimento japonês nos anos 1970 e 1980, e com o crescimento chinês e indiano desde os anos 1990. Nem estavam sendo apenas enganados: “O jornada de trabalho caiu para oito horas, e a semana de trabalho para cinco dias. As milhões de famílias apertadas em cômodos czaristas arrepiantes, e úmidos ex-salões de bailes subdivididos por paredes de papelão, foram finalmente alocadas em subúrbios recém-construídos”.
Ele continua: “Estava claro que outra onda de investimentos seria necessária, maior do que qualquer outra antes, para construir a próxima geração de indústrias. Precisava-se de fábricas que logo desenvolvessem plásticos, fibras sintéticas e equipamentos para as emergentes tecnologias de informação: mas tudo parecia estar disponível agora. A União Soviética podia dar à sua população geleia agora e reinvestir para amanhã, e pagar as contas armamentistas de uma superpotência, tudo de uma vez”. Esse era o pano de fundo das visitas de Khrushchev aos EUA – que é um tema importante no livro – quando ele faz comparações entre as conquistas da economia planificada, embora sob o stalinismo, e das da potência capitalista mais avançada do globo.
Spufford afirma que Khrushchev previu a “fartura vermelha”, o título desse livro. Em 1956, Khrushchev foi frouxamente traduzido como declarando a uma audiência: “Iremos enterrar vocês!” (A citação real diz: “Quer vocês gostem ou não, a História está do nosso lado. Iremos fazer uma trincheira ao redor de vocês”). Encorajado pelas enormes conquistas na tecnologia especial, simbolizadas pelo primeiro voo humano ao espaço pelo cosmonauta Yuri Gagarin, Khrushchev alertou aos capitalistas americanos: “Por enquanto vocês são mais ricos do que nós… mas amanhã seremos tão ricos quanto vocês. Depois de amanhã? Mais ricos! Mas o que há de errado nisso?” Spufford comenta: “Os ouvintes não pareciam tão encantados quanto ele esperava com esse franco sentimento ao estilo capitalista”.
Tentando entrar dentro da mente de Khrushchev, ele o faz pensar quantas mudanças haviam sido efetuadas desde a morte de Stalin: “Se você olhar as pessoas na rua, todas as roupas velhas desapareceram, nos últimos anos. Não mais remendos, não mais retalhos. Todos estão usando finas roupas novas. As crianças têm casacos de inverno que ninguém tinha antes delas. As pessoas têm relógios em seus pulsos, com seu próprio e bom relógio de aço da planta de Kuibyshev. Elas estão se mudando dos horríveis apartamentos comunais, onde quatro famílias dividiam um banheiro e havia brigas de faca sobre quem iria usar o fogão, para apartamentos de concreto novinhos”.
Pode-se objetar que as afirmações de Khrushchev sobre um novo e dramático aumento nos padrões de vida eram falsas. Afinal, os novos “apartamentos de Khrushchev”, embora bem vindos na época, foram rejeitados pelas gerações posteriores por serem muito pequenos, confinados em edifícios altos. Mas as mesmas críticas poderiam ser feitas aos planejadores da Grã-Bretanha nos anos 1960 e outros países por construírem conjuntos inadequados. Para as gerações que saíam das favelas, elas representavam um grande passo à frente. É claro, uma economia planificada com democracia dos trabalhadores teria consultado as pessoas sobre suas necessidades, o que era possível para as novas habitações etc. Mas os planejadores urbanos capitalistas eram tão arbitrários, e ainda o são, na concepção, projeto e construção de casas “para” o povo, que este tem muito pouco a dizer.
Às vezes, o autor claramente teme que o material que ele enumera para mostrar as conquistas da União Soviética nessa etapa possam influenciar “excessivamente” o leitor de uma maneira que ele não pretende. De um lado, ele registra Khrushchev falando em 28 de setembro de 1959 em Moscou: “Os sonhos que a humanidade nutriu por séculos, sonhos expressados em contos de fada que pareciam pura fantasia, estão sendo traduzidos para a realidade pelas próprias mãos do homem”.
Spufford comenta: “Claro, Khrushchev estava certo. Isso é exatamente o que aconteceu no século 20, para centenas de milhões de pessoas… Khrushchev acreditava que… a abundância… estava chegando à Rússia soviética, e chegava por causa de algo que a União Soviética possuía e as terras famintas do capitalismo careciam: a economia planificada. Por que todo o sistema de produção e distribuição na URSS era do Estado, por que toda a Rússia era (nas palavras de Lênin) ‘um escritório, uma fábrica’, ela podia ser dirigida do modo como o capitalismo não podia, até a satisfação mais rápida e generosa das necessidades humanas. Portanto, ela facilmente superaria o caos dispendioso do mercado”.
Mas então, comparando essa visão de abundância vermelha com os contos de fada russos do passado, Spufford escreve: “É doce ilusão, irresponsável, ingênuo”. Mas isso é um “conto de fadas” utópico que evoca o passado russo? Por exemplo, Spufford tenta, e é bem sucedido, entrar na mente de um matemático da época ponderando sobre sua própria situação: “Ele foi feliz o suficiente de viver no único país do planeta onde os seres humanos tomaram o poder para moldar os eventos de acordo com a razão, ao invés de deixarem as coisas acontecerem casualmente, ou permitindo que as velhas forças da superstição e da cobiça governem as pessoas”.
Falando do planejamento, o mesmo personagem pensa: “Ele podia ver que isso não seria possível sob o capitalismo, onde todas as fábricas têm donos separados, presas em uma dispendiosa competição umas com as outras. Lá, ninguém estava em posição de pensar sistematicamente. Os capitalistas não gostariam de compartilhar informações sobre suas operações; para que isso serviria a eles? É por isso que o capitalismo era cego, porque tateava e errava. Era como um organismo sem um cérebro. Mas aqui era possível planejar todo o sistema de uma vez. A economia era uma folha de papel em branco na qual quem escrevia era a razão. Então porque não otimizá-la? Tudo o que ele precisava fazer era persuadir as autoridades apropriadas a ouvirem. Suponha que a economia soviética pudesse crescer um extra de 3% ao ano – um extra de 3% ano após ano, agregando. Ela aumentaria rápido. Depois de apenas uma década, o país seria 50% mais rico”.
Portanto, a ideia de Khrushchev da União Soviética alcançando e ultrapassando os EUA capitalista não era tão absurdo quanto o autor nos quer fazer acreditar. O próprio Khrushchev representava a ala da burocracia que, embora presa dentro da estrutura paralisante do stalinismo, realmente acreditava que o ritmo com que a economia russa estava se desenvolvendo poderia desafiar e ultrapassar até mesmo a mais poderosa potência do capitalismo. E, com um sistema politico diferente, isso teria sido inteiramente possível.
Leon Trotsky pontuou nos anos 1930 que a burocracia continha diferentes alas ou tendências. A tendência pró-capitalista existia desde o triunfo de Stalin sobre a Oposição de Esquerda Internacional – dirigida por Trotsky e que exigia a restauração da democracia dos trabalhadores na economia planificada – nos anos 1920 e 1930. Mas a maioria da burocracia, provavelmente até os anos 1980, uma década antes da derrubada do stalinismo e da liquidação dos restos da economia planificada, preferia se apoiar na economia planificada, que representava o “progresso” tanto para a sociedade em geral quanto para seus privilégios, em particular. Khrushchev representava essa camada, que triunfou sobre os arqui-stalinistas na luta pelo poder após a morte de Stalin em 1953.
Depois disso veio o “degelo”, que afrouxou o punho de ferro do stalinismo, permitindo à ala de Khrushchev da burocracia procurar renovar esse sistema dentro de “limites seguros”. Contudo, isso encorajou a oposição ao sistema e detonou a revolução na Alemanha Oriental em 1953 e o terremoto da Revolução Húngara de 1956.
Red Plenty também tem um capítulo muito interessante sobre Novocherkassk, que foi palco de um levante russo em 1962, similar àqueles que aconteceram antes na Europa Oriental. O gatilho para as manifestações de massa, na qual a classe trabalhadora levava retratos de Lenin ao lado de demandas por “carne, manteiga e aumento salarial” e “façam salsichas do Khrushchev”, foi o aumento dos preços de produtos básicos. Ao apelo do stalinista Kozlov – um apoiador de Khrushchev – que estava presente na cidade durante o levante, Khrushchev deu ordens para se disparar na multidão indefesa. Isso resultou em 28 mortes e 84 feridos. Dos 116 presos, sete foram executados. Junto com os crescentes problemas econômicos, isso serviu para minar a imagem ‘liberal’ de Khrushchev. Isso, por sua vez, preparou o terreno para sua deposição por Leonid Brejnev em 1964.
Isso ilustra, junto com a decadência subsequente do sistema, que Khrushchev era incapaz de sair dos limites do regime burocrático. Ele representava, dentro da elite privilegiada, a geração que chegou a posições de destaque na era stalinista dos anos 1930. Stalin havia eliminado completamente todos aqueles ligados com as grandes tradições da Revolução de Outubro 1917. Ao fazer isso, em larga medida ele destruiu a memória da classe trabalhadora dentro da Rússia. Burocratas recém-promovidos como Khrushchev eram completamente ignorantes sobre a história recente, especialmente do Partido Bolchevique e sua ênfase na democracia dentro do partido e do controle e gestão dos trabalhadores no Estado e na sociedade. Portanto, depois da morte de Stalin e da remoção de Khrushchev, seus colaboradores e herdeiros eram incapazes de buscar por soluções nessa história. Eram incapazes de escaparem do sistema de governo burocrático cupulista.
Isso pôs sua marca e impôs severas limitações ao regime Khrushchev, dificultando severamente até onde ele podia ir em termos políticos, assim como sobre a planificação efetiva e eficiente da economia. É sobre esse ponto fundamental que Spufford erra em sua crítica do conceito de “economia planificada”, suas origens e conquistas. Ele ecoa cada calúnia de Orlando Figes, Robert Service e do exército de professores e escritores burgueses, que distorcem completamente o que aconteceu em 1917 e subsequentemente. Por exemplo, o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) era “um culto anormal sob a batuta de um pequeno aristocrata carismático, VI Lenin, que desenvolveu uma doutrina da infalibilidade do partido, e por extensão, dele mesmo”. Os bolcheviques realizaram um “golpe” em outubro de 1917 etc. Na verdade, Lênin rompeu com o POSDR para formar os bolcheviques como um grupo separado em 1912. O Partido Bolchevique foi o partido de trabalhadores mais democrático da história, com ricas discussões e desacordos internos. Que ele criou um Estado Operário democrático baseado nos sovietes (conselhos operários) e no controle e gestão dos trabalhadores é de pouca importância na análise de Spufford.
Os bolcheviques eram “utópicos”, ele argumenta, porque queriam estabelecer o socialismo na Rússia, o país “que menos se assemelhava à descrição de Marx de um lugar adequado para a revolução socialista”. Spufford ignora o “pequeno detalhe” de que os bolcheviques não acreditavam que o país em si estava pronto para o socialismo. Mas o capitalismo podia ser rompido em seu elo mais fraco, a revolução se espalharia internacionalmente – como aconteceu – e depois, unindo a Rússia aos grandes recursos científicos e industriais da Alemanha e Europa, poderia ser criada a base para o início de um movimento ao socialismo. Apenas em uma escala mundial seria possível começar a lançar as bases para esse tipo de sociedade, em uma riqueza material e produtividade do trabalho superiores.
É por causa de suas severas limitações – escrevendo do ponto de vista de um apoiador do capitalismo – que as críticas gerais zombeteiras de Spufford ao planejamento erram tanto o alvo. Desnecessário dizer que ele não faz nenhuma crítica reveladora sobre o método burocrático de planejamento do stalinismo. Quando ele está correto, já foi antecipado há muito tempo atrás na crítica do stalinismo feito pelos marxistas e trotskistas.
O stalinismo cometeu erros monumentais que resultaram em enormes desperdícios que sobrecarregaram a economia planificada. Havia uma tremenda desproporção no desenvolvimento de diferentes ramos da indústria. Contudo, isso era inseparável dos métodos burocráticos. Trotsky comentou sobre isso: “Do ponto de vista de uma diretriz de planejamento ideal, que garantisse o ritmo máximo nos diferentes setores, mas o resultado ótimo na economia como um todo, o coeficiente estatístico de crescimento seria menor no primeiro período, mas a economia como um todo, e especialmente o consumidor, sairiam ganhando. A longo prazo, a dinâmica industrial geral também ganharia”. (A Revolução Traída).
O marxismo, não ex post facto, mas na época em que a Rússia se industrializava, fez críticas contundentes aos métodos empregados pelo stalinismo. Primeiro, Stalin rejeitou o programa de industrialização defendido por Trotsky e a Oposição de Esquerda. Depois, quando foi desafiado pelas novas e confiantes forças pró-capitalistas, que foram encorajadas pelas políticas de Stalin e seu grupo, Stalin mudou para um programa repressivo contra os ‘homes do NEP’ (aqueles que ficaram ricos sob a Nova Política Econômica).
A história do stalinismo em relação à economia era a de ziguezagues, inevitáveis em um regime baseado no governo burocrático da cúpula. Trotsky escreveu: “O regime soviético está passando por uma etapa preparatória, importando, assimilando e se apropriando das conquistas técnicas e culturais do Ocidente. O coeficiente comparativo da produção e do consumo testemunha que essa etapa preparatória está longe de acabar” (A Revolução Traída). Assim, o stalinismo pôde presidir o desenvolvimento de uma base industrial, com baixa produtividade do trabalho. Nessa etapa, a burocracia jogou um papel relativamente progressista.
Contudo, quando essa tarefa foi completada, a burocracia entrou em conflito com o desenvolvimento posterior da indústria e da sociedade. Isso é mostrado, muito bem em partes, neste livro. A burocracia tornou-se um freio absoluto à possibilidade do desenvolvimento posterior da sociedade da União Soviética.
Não obstante, está muito claro nesse livro que a Rússia, embora ainda atrás dos EUA em termos de padrão de vida (os salários eram 25% maiores nos EUA nessa época), estava num nível incomparavelmente superior aos anos 1930 ou mesmo no período imediatamente posterior à 2ª Guerra Mundial. Novas necessidades e tarefas estavam postas nessa situação. Ao invés do desenvolvimento extensivo da indústria da etapa anterior, precisava-se de métodos intensivos de utilização da ciência e técnica para desenvolver a produção e a sociedade. Isso a burocracia stalinista foi incapaz de fazer.
Spufford tenta mostrar que, desde o início, os bolcheviques eram utópicos em seus planos e práticas para a indústria. Isso é enfatizado na questão dos preços e de como eles são formados na sociedade capitalista e, especialmente, numa em transição do capitalismo. Lidando com o período imediato depois da revolução – o chamado “comunismo de guerra” – ele escreve: “Apesar dessa ausência de todas as pré-condições de Marx, os bolcheviques tentaram de todo modo entrar no paraíso pela via rápida, abolindo o dinheiro e confiscando alimentos para as cidades diretamente na ponta das armas”. Os métodos empregados neste período foram impostos aos bolcheviques pela guerra civil e a intervenção de 21 exércitos do imperialismo. Eles eram uma exigência de uma “fortaleza sitiada”.
Pode-se comparar o que os bolcheviques fizeram com o primeiro governo de maioria Trabalhista (Labour) de 1945 na Grã-Bretanha, que foi forçado a empregar os métodos de racionamento devido a escassez aguda de alimento e combustível. Embora muito pior na Rússia por causa de sua pobreza e isolamento, havia similaridades no método, apenas em uma escala massiva. Havia sem dúvida uma certa esperança “utópica” de que tais métodos poderiam ser mantidos, mas apenas com a condição de que a revolução se espalhasse da Rússia para a Europa Ocidental e depois para o resto do mundo. Quando isso não aconteceu, por causa da traição dos líderes social-democratas europeus, os bolcheviques não hesitaram a recorrer a novos métodos, o que significava uma restauração parcial do “mercado”.
De fato, é uma falácia acreditar que os marxistas achavam que o dinheiro e os preços poderiam ser completamente abolidos imediatamente após a derrubada do capitalismo. Apenas os defensores da falsa teoria do “capitalismo de Estado” (sua caracterização da União Soviética) ingenuamente acreditavam que uma economia socialista planificada significaria a superação imediata da lei do valor.
O capitalismo derrubado não significa que o novo regime socialista poderia começar com uma folha em branco. Classes, a produção de mais-valia, preços, dinheiro – todas as heranças “infelizes” do capitalismo – continuarão a existir. Não é possível se mover do reino da necessidade para o da liberdade da noite para o dia. Contudo, a intervenção consciente do Estado, que possui os meios de produção, significa que esses vestígios, trazidos do capitalismo, jogarão um papel diferente. Ao invés de serem determinados pelo jogo cego das forças produtivas, eles podem ser usados para o alocação consciente e o planejamento dos recursos da sociedade.
Mesmo em uma sociedade economicamente mais desenvolvida, como a União Soviética se tornou nos anos 1960 e 1970, não seria possível ignorar completamente o “mercado”, mesmo em um estado dos trabalhadores saudável. Spufford sugere que uma sociedade desenvolvida não seria capaz de harmonizar a determinação dos preços com o planejamento da indústria e da sociedade. De fato, Trotsky e a Oposição de Esquerda lutaram com essa questão nos anos 1920, especialmente depois da introdução da Nova Política Econômica em 1921. Mesmo em 1923, por causa dos atropelos de Stalin e seu grupo, havia uma divergência crescente entre os preços industriais e agrícolas, chamada na época de “tesoura”. Portanto, em 1927, a Oposição de Esquerda exigia “uma garantia de estabilidade incondicional da unidade monetária”. Sem isso haveria o perigo de inflação, “a sífilis de uma economia planificada” (A Revolução Traída).
O genuíno marxismo, tanto antes como agora, não abordaria essa questão de um modo arbitrário ou burocrático. A pré-condição para preços realistas é a compreensão dos custos – custos reais, não preços burocraticamente determinados. Isso, por sua vez, não é possível sem compreender as relações econômicas reais, especialmente com as desigualdades grosseiras que caracterizavam o regime de Stalin. Em resposta a Spufford, que acha que os marxistas têm uma atitude arbitrária sobre essa questão, Trotsky escreveu que “diretrizes sobre preços são menos impressionantes na vida real do que nos livros dos sábios”. (A Revolução Traída).
Em outras palavras, a pré-condição para a fixação de preços, se devem ser precisos em uma economia planificada, deve ser a liberdade de todo controle burocrático, de um centro “infalível”. O autor dá o exemplo dos preços de centenas de milhares de mercadorias fixados pelo centro todo-poderoso. Isso não seria o caso em um regime de democracia dos trabalhadores. Isso significaria controle operário nas fábricas e gestão dos trabalhadores a nível nacional, regional e local. Isso aproveitaria todos os talentos, ideias e opiniões para o desenvolvimento futuro da sociedade pelos produtores, consumidores e a sociedade como um todo.
Obviamente, nem o regime de Khrushchev nem os que o seguiram, como o de Brejnev, eram capazes de conseguir isso. Não obstante, o que Spufford mostra são as conquistas colossais da economia planificada, mesmo quando ela foi frustrada pelo totalitarismo stalinista. Em sociedades economicamente subdesenvolvidas, em certos períodos históricos, ele cumpriu a tarefa de lançar as bases para a indústria pesada e a infraestrutura básica, incapazes de serem implementadas pelo capitalismo.
Contudo, quando se alcança uma sociedade industrial avançada, as necessidades da produção entram em choque com o desgoverno burocrático. A história da União Soviética no período retratado por Red Plenty mostra que ela não apenas estava competindo com as sociedades industriais avançadas, mas as ultrapassando em alguns campos importantes. Até o desenvolvimento da cibernética e dos computadores estava bem avançado. Mas os erros burocráticos do regime stalinista o tornavam incapaz de reconhecer as vantagens colossais que derivariam da implementação dessa nova tecnologia. Ironicamente, o golpe de sorte da alta dos preços de petróleo – o primeiro campo na Sibéria foi descoberto em 1961 – ajudou a proteger o sistema e esconder sua fraqueza subjacente. Uma bonança similar, o petróleo do Mar do Norte, jogou o mesmo papel para o capitalismo britânico.
É por isso que Khrushchev falhou e as esperanças engendradas por ele viraram cinzas sob o governo de Brejnev e Alexsei Kosygin. Contudo, esse livro continua valioso, embora involuntariamente, para a defesa de um verdadeiro planejamento socialista. A época em que os regimes stalinistas da Rússia e do Leste Europeu eram usados como um espantalho contra a planificação e o socialismo está chegando ao fim. O governo capitalista nesses países tem sido um enorme desastre. Metade dos romenos agora acredita que a vida era melhor sob os “comunistas”, diz uma recente pesquisa do Balkan Insight. Isso não é incomum na situação dos antigos regimes stalinistas.
À medida que o capitalismo se torna mais desacreditado, a classe trabalhadora se voltará por outras alternativas. O stalinismo teve sua época é jamais se tornará a força de massas que foi no passado, especialmente nos países industriais avançados. Não foi a planificação socialista que foi desacreditada na antiga União Soviética, foi a perversão stalinista de uma economia planificada. É tarefa do marxismo genuíno hoje expurgar desse conceito todos os elementos de controle burocrático cupulista e situá-lo em uma estrutura socialista e democrática.