Encenando a resistência: o teatro da Cia do Latão
Fazer uma peça que denuncia a burguesia e cobrar 20 reais de entrada. Apresentar gratuitamente, nas praças, peças conservadoras para o povo. São essas as alternativas que vemos quando se tenta fazer arte transformadora: ou fazer uma excelente crítica social, sofisticada, só que restrita à elite, ou achar que qualquer produto artístico apresentado de graça pode ter efeito emancipador.
A Companhia do Latão, grupo de teatro com 12 anos de vida, está muito longe dessa encruzilhada. Para eles, “o modo como se organizam as relações de trabalho entre os integrantes do grupo determina o caráter político da encenação”. Para uma peça que busca explorar alternativas ao massacre cotidiano capitalista, o trabalho alienado que transforma os atores em marionetes nas mãos do diretor não pode existir. Os atores participam do processo criativo e compartilham das concepções presentes na peça, pois ela deve ser um produto coletivo desde o começo.
Por ser coletivo, o processo não está restrito ao palco: a forma de apresentação e para quem se dirige precisa ser pensada. Hoje, vemos principalmente uma arte produzida para si mesma, em busca do reconhecimento dos especialistas. Pois se tornou uma mercadoria, onde o que importa é seu valor-de-troca e não o valor-de-uso. Se um objeto artístico atinge o gosto de críticos de arte e, assim, se valoriza, para muitos artistas, aí está a boa ventura.
Para a Cia do Latão, a relação com a platéia e o “valor-de-uso” (ou seja, qual impacto terá) da arte são fundamentais. A partir de 1998, o grupo manteve relações com o MST, se apresentando em encontros do movimento, realizando oficinas. Segundo Sérgio de Carvalho, o diretor, essa experiência alterou o grupo e ajudou na sua constituição. Não é à toa que o grupo teve uma aproximação sólida com o marxismo, principalmente através da obra do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht.
Bertolt Brecht
Segundo o escritor Ernst Fischer, “Brecht observa que, numa sociedade dividida pela luta de classes, o efeito ‘imediato’ da obra de arte requerida pela estética da classe dominante é o efeito de suprimir as diferenças sociais existentes na platéia, criando, assim, enquanto a peça vai sendo encenada, uma coletividade ‘universalmente humana’ e não dividida em classes”. O teatro de Brecht segue o caminho contrário: a exposição da divisão de classes.
Algumas peças encenadas pela Cia do Latão:
• Ensaio para Danton
• Ensaio sobre o Latão
• Santa Joana dos Matadouros
• Auto dos Bons Tratos
• O Mercado do Gozo
• O Nome do Sujeito
• O Círculo de Giz Caucasiano
No Youtube é possível ver trechos de ensaios das peças
Site da Cia do Latão: www.companhiadolatao.com.br
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Hoje a Cia do Latão é responsável pelo reavivamento da obra brechtiana por meio daquilo que percebem como o mais essencial: “O estilo de Brecht apresenta a desumanização como um processo realizado por homens. Como um processo diante do qual é possível fazer algo. Um processo, portanto, que se objetiva com a colaboração do público (…). Brecht nos ensina a pesquisar formas de concretizar negativamente o processo social de coisificação”.
Portanto, ao fazer da arte o espaço para pensar, imaginar e pesquisar resistências à ideologia burguesa, a Cia do Latão detona um processo que não se resume ao campo artístico. Na situação atual, onde parece cada vez mais difícil pensar numa alternativa ao sistema em que vivemos, mas, ao mesmo tempo, é cada vez mais necessário construir essa alternativa, a experiência que traz a Companhia é valiosa.
O teatro dialético
No livro lançado no início deste ano, poderemos ter uma visão dos vários aspectos do grupo. Textos teóricos que discutem o teatro contemporâneo, o legado de Brecht no Brasil, o processo de construção das peças, entrevistas, críticas de peças do grupo, manifesto e até duas peças da Companhia – uma delas o Ensaio do Latão, texto delicioso que discute a relação da arte com a realidade.
A leitura do livro coloca com muita clareza alguns marcos na discussão da arte numa sociedade de classes. É impressionante a coragem do grupo em enfrentar as concepções hegemônicas da arte contemporânea e defender a arte como espaço de resistência e imaginação de alternativas à sociedade capitalista. Como qualquer bom texto marxista, o livro da Cia do Latão não é somente uma boa análise, é principalmente uma contribuição a um programa para ação.