A revolta do porão
Nas últimas semanas a Coreia do Sul se tornou um dos assuntos mais comentado das redes sociais e desta vez não foi pelo sucesso do K-pop. A premiação da grande indústria cinematográfica hollywoodiana, pela primeira vez em seus noventa e dois anos de existência, elegeu um filme de língua estrangeira na principal categoria do Oscar e em outras três importantes categorias. Além de melhor filme, também levou o troféu de melhor direção, melhor filme internacional e melhor roteiro original. Para além da repercussão do Oscar, Parasita merece ser comentado por seu conteúdo ácido e perturbador, que traz à tona uma realidade social que poderia se passar em qualquer parte do mundo capitalista.
Logo na primeira cena vemos quatro pares de meia secando próximos a janela de um “semi-basement” ou semi-porão, assim são chamadas as residências sul-coreanas que não estão totalmente escondidas e que de alguma forma permitem ver e ter contato com a rua. A família de Kim, os personagens centrais dessa narrativa, se jogam em uma “missão impossível” ao tentar se infiltrar como empregados da casa de uma família rica. Para eles é a possibilidade de mudar radicalmente de vida, largando seus trabalhos informais e suas identidades. Tudo dá certo até começar a dar errado…
O filme vai do humor de uma família farsante à tensão crescente de serem descobertos. Com doses de terror e drama entre as relações verticais da cidade e das habitações que constróem dois mundos, indicando que o “sol não nasce para todos”. Da visão acinzentada do semi-porão à paisagem ensolarada e panorâmica da mansão luxuosa há um abismo aparentemente intransponível. Isso porque a família Kim não deixa de acreditar que com o plano perfeito é possível criar uma história de amor com o capitalismo. Mas para Bong Joon Ho, o diretor, seu filme é muito mais que a relação entre pobres e ricos.
A construção do filme nos permite adentrar e esmiuçar diversas camadas. Temáticas internacionais como a relação dos Estados Unidos e da Coreia do Norte. Dos espaços arquitetônicos à construção das falas e movimentação dos personagens do ponto mais alto da cidade para o mais baixo, tudo se torna uma grande metáforas, tornando difícil identificar aquilo que não é. Uma sociedade que abriga em seu porão corpos ignorados que servem ao seu avanço tecnológico, como o homem que acende a luz com a própria cabeça, cada vez que o dono da casa chega. Ou cheiro acre sentido pela elite asséptica naqueles que estão nos subterrâneos úmidos e sem ventilação, sejam das casas ou dos metrôs. A própria pedra, que é entregue a Kim como símbolo de fortuna, o acompanha durante toda jornada, que é utilizada para golpeá-lo.
Quem são aqueles que já se acostumaram e não querem sair do porão? Quem de fato é o parasita neste filme?
Parasita entra para a seleção de filmes que em 2019 de alguma forma questionou as relações desiguais que se agudizam em nossa sociedade. Do aumento no acúmulo da riqueza da classe dominante – 26 bilionários tem um riqueza conjunta que equivale a metade da população do planeta, 3,6 bilhões de pessoas – as retiradas de direitos, criminalização da pobreza, e as crises ambientais que atingem milhões de pessoas em todo o globo. Bacurau no Brasil, Coringa nos Estados Unidos, no primeiro a população local de uma pequena cidade se une para combater o extermínio ordenado por um inimigo externo, no outro são as mazelas de uma sociedade sem direitos que criam seus doentes e as faíscas da revolta.