Lei Rouanet e as oligarquias da cultura

Hegemonicamente, a cultura é considerada uma mercadoria. Assim, como bons empresários, artistas e produtores se unem no garimpo por incentivos fiscais às suas “obras”, não com objetivo de socializar a produção de cultura, mas unicamente como meio de se tornarem ricos. Desde 1991, a instituição da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro), a popular Lei Rouanet, é um dos principais mecanismos legais para isso. A lei nada mais é que uma forma de isenção fiscal (pessoa jurídica 6% e física 4%) para aqueles que “incentivam a cultura”.

De lá pra cá esta relação do setor privado ampliou-se consideravelmente nas políticas de fomento a cultura e temos hoje um verdadeiro caudilhismo na distribuição de verba para a área de cultura. A Lei Rouanet garante um montante anual de R$ 1 bilhão, oriundo de isenções fiscais de grandes empresas. Mas para onde vai esse dinheiro?

Não é preciso grandes análises para perceber que os grandes investimentos são sempre destinados aos mesmos grupos empresariais e artistas. Formaram uma oligarquia que domina o controle sobre os investimentos em cultura. E o que é pior: não se reflete em uma possibilidade maior de acesso aos trabalhadores pobres, justamente o setor que possui maiores dificuldades de ter acesso aos meios difusores de cultura. Peças, shows de música, CDs e DVDs de artistas renomados recebem fartas quantias, mas o custo de aquisição destes produtos culturais é extremamente caro e pode ser consumido apenas por uma pequena parcela privilegiada da população.

O blog milionário de Maria Bethânia

O caso de Maria Bethânia ganhou notoriedade recentemente na grande mídia sobre o que seria um suposto abuso no uso do dinheiro público, ainda que dentro dos marcos da lei. Longe de ser um caso isolado, Bethânia é um exemplo do que mais acontece em nosso país: justamente o artista que menos precisa de verba para seus trabalhos recebe mais. Bethânia recebeu R$ 1,3 milhão para realizar 365 vídeos de declamação de poesias e postá-las num blog.

Além do disparate que é o valor do financiamento para algo tão simples como um blog, outros absurdos saltam aos olhos. Primeiro, R$ 130 mil será destinado à empresa financiadora, ou seja, o dinheiro que deveria ser usado para garantir a obra artística volta para o bolso da empresa. Bem conveniente. Outra questão maliciosa é que a diretora artística deste megaempreendimento, um blog de poesia, receberá a singela quantia de R$ 600 mil. Curioso é que Bethânia é a diretora artística.

Apesar do estardalhaço da mídia isso é prática comum. Outros queridinhos das grandes corporações de cultura receberam fortunas. Arnaldo Jabor recebeu R$ 12 milhões para fazer seu filme “A Suprema felicidade”; Fernando Deluqui da banda RPM R$ 207 mil para a execução de um DVD e um disco; Gilberto Gil conseguiu R$ 800 mil para a sua turnê; Gal Costa captou R$ 2,2 milhões para um projeto de oito shows e a execução de um DVD dos shows, e o mais escandaloso, o Cirque Du Soleil recebeu R$ 9 milhões e mesmo assim vendeu ingressos a R$ 200!

Parâmetros do mercado

O investimento em cultura segue parâmetros de mercado. Não por acaso 85% dos recursos em cultura no ano 2001 foram no eixo Rio-São Paulo, tendo apenas 2% na região Nordeste. Ou seja, a empresa que entre tantos projetos opta pelo blog de Maria Bethânia deixa sem verba centenas de artistas. A escolha da empresa é meramente comercial, nada tendo a ver com uma perspectiva de política pública de cultura.

Os institutos culturais ligados a bancos e grandes empresas, assim, surgem seguindo esta lógica em busca de mercado e de locais já dotados de infraestrutura cultural como SESC, SENAI, teatros e centros culturais estaduais e municipais. O fato dos investimentos serem baseados em lobbys faz com que estes institutos sempre sejam os responsáveis por centralizar a maior parte dos investimentos, tornando-os alvo de financiamentos praticamente perpétuos.

Caso Bethânia segue a regra

Bethânia é, portanto, nada mais que a regra quando se discute distribuição de verba na área de cultura. O que deve ser debatido e mudado é o método de fomento a cultura no país: se deixaremos a gestão do fomento à cultura a mercê de empresas e artistas-empresários, ou se entidades representativas e movimentos sociais serão os responsáveis por tornar pública e democrática a produção e o acesso às formas de manifestação cultural. O Estado não pode ser apenas um facilitador para que empresas se beneficiem com marketing e isenções fiscais que lhes retornam em forma de lucro e boa imagem perante a sociedade.

Esta mercantilização absoluta da cultura tornou o artista meramente um empresário, submisso ao seu chefe, o empresário cultural. O produtor cultural passa a ser o intérprete do gosto geral, que sob rígidos critérios de marketing empresarial industrializa a manifestação cultural em torno de interesses econômicos particulares. A consequência artística disso é a subordinação dos produtores culturais a um chamado “gosto médio”, ou mesmo nichos específicos de mercado (arte esnobe para os ricos). O conservadorismo, a previsibilidade, a falta de crítica são marcas que explicam o porquê do marasmo de inovações culturais acessíveis ao grande público.

Verba pública para quem precisa

O orçamento da área de cultura deve ser público de fato. Por que ao invés de permitirem que mais de R$ 1 bilhão se perca em manifestações artísticas elitistas, não podemos gerir verba para quem de fato precisa? Por que temos que oferecer a empresas verba pública, se a gestão pública poderia tirar do caminho estes atravessadores da cultura e ampliar as possibilidades de produção cultural?

Há mais em jogo. A tradição coronelista ainda trafega entre vaidades e interesses econômicos no meio artístico. Poucas famílias, grupos empresariais e o mesmo loteamento de sempre também se enraízam na produção cultural. Maria Bethânia é parte disso. E quando Caetano Veloso baba raivosamente em defesa de sua irmã, está apenas nos lembrando que a tradição coronelista ainda é regra também nos versos.