Resenha: O Estilo Literário de Marx, de Ludovico Silva

Um livro que se propõe a discutir estilo literário de um autor como Marx é algo no mínimo inusitado. Afinal, Marx é considerado um autor político, economista, no melhor dos casos um “filósofo”. O que se poderia esperar de um ensaio que se propusesse a discutir o que ele escreveu enquanto texto literário? Será que um estudo estilístico teria alguma coisa a nos dizer a respeito de temas centrais da concepção científica do autor de O Capital? Ou isso não passaria de um exercício esotérico, de pessoas que pensam ver um “sentido oculto” nas palavras ou discutir minúcias?

O livro de Ludovico Silva, publicado pela Expressão Popular, é um ensaio brilhante que mostra o quanto podemos aprender com uma análise textual de um autor tão rico como Marx. Não conhecia o autor, que, como a própria apresentação do livro diz, é praticamente desconhecido no Brasil, mas é considerado em seu país, a Venezuela, um autor tão importante quanto Mariátegui o foi no Peru.

Não estou em condições de dizer se isso é um exagero ou não, mas o fato é que esse pequeno texto não deixa de causar um grande impacto em quem o lê. Impacto não só pelo tema em si, mas também pela forma clara e concisa com que expõe o assunto tratado. Há uma preocupação constante do autor em não se estender além do tema que se propõe a discutir, ao mesmo tempo que provoca em nós uma infinidade de reflexões sobre o legado teórico de Marx, sob o ângulo do seu estilo literário.

A tese principal do autor é que a obra de Marx constitui todo um conjunto harmônico (uma arquitetônica, cujo significado ele explica logo no início do ensaio), onde o rigor científico para a análise da sociedade capitalista está acompanhado da preocupação em encontrar os termos literariamente mais adequados para expressá-lo. Em termos linguísticos, os signos estão em perfeita harmonia com os significados que querem transmitir, ou seja, a forma em sintonia com o conteúdo. A isso ele chama de estilo literário, um sistema expressivo que “não se contenta com a boa consciência de utilizar os termos cientificamente corretos, mas que a acompanha com uma consciência literária empenhada em que o correto seja, ainda, expressivo e harmônico, e disposta a conseguir, mediante todos os recursos da linguagem, que a construção lógica da ciência seja, também, a arquitetônica da ciência” (p. 11).

Após uma breve apreciação da formação literária do jovem Marx, onde nos conta seu gosto pela poesia clássica e pelo latim e grego, Ludovico Silva passa a analisar algumas de suas ferramentas estilísticas preferidas, que se combinam para formar o que ele chama de dialética da expressão ou expressão da dialética. Ele nos diz que: “Marx conscientemente tentou expressar, mediante certas particularidades do seu estilo literário e mediante um específico movimento verbal, o próprio movimento real a que se referem os seus textos. Falando em termos semântico-literários, as relações formais e lógicas em que Marx escreve os signos verbais constituem uma movimentação plástica destinada a refletir as relações materiais e históricas dos significados” (p. 35).

Não é possível aqui entrar em detalhes sobre cada aspecto discutido, então vou falar do que para mim constitui a grande originalidade do livro: a sua revelação de que alguns termos, que normalmente são associados à teoria marxista como conceitos explicativos fundamentais, na verdade foram usados por Marx apenas como metáforas ilustrativas. Um primeiro exemplo é sua explicação científica sobre a alienação e a correspondência entre a base material da sociedade e suas formações ideológicas, o que, normalmente, na literatura marxista, se convencionou chamar de “superestrutura” e passou a ser um quase sinônimo de toda a concepção materialista da História. Pois bem, o que Ludovico nos diz é que Marx usou o termo “superestrutura” (no alemão original, Überbau) como uma metáfora, um recurso estilístico para ilustrar uma explicação teórica de como as formações ideológicas, jurídicas políticas etc. de cada sociedade encontram sua explicação nas relações de produção próprias a cada uma.

O mesmo é dito sobre outro termo muito utilizado, por marxistas de todas as épocas, a do reflexo. Ou seja, que as teorias jurídicas, movimentos literários, ideologias religiosas ou teorias científicas de cada época são um reflexo da sua base material. Outra vez, recorrendo aos textos originais de Marx, Ludovico nos mostra que ele usou esse termo não como uma explicação científica, mas apenas como uma metáfora ilustrativa de uma explicação científica. O termo reflexo vem de uma época em que a fotografia ainda era uma invenção recente, e por isso mesmo era justo utilizá-lo em um sentido metafórico, mas apenas dentro de certos limites, e sem pretender substituir com ela uma explicação científica acabada. Por isso, Marx utilizou com mais frequência o termo “expressão” ideológica do que o termo “reflexo”.

As consequências práticas dessas observações não são uma questão menor. Como o próprio Ludovico alerta em várias ocasiões, desenvolveu-se toda uma escola de pensamento que tomava tais metáforas como uma explicação científica em si mesma. Essa escola abarcava desde os inimigos declarados do marxismo, os defensores da sociedade capitalista, quanto pretensos “marxistas”. Ambos convertiam Marx em um materialista mecânico, que propunha uma relação causal e mecânica entre a estrutura social e suas correspondências ideológicas ou jurídicas, como se uma estivesse separada das outras de forma absoluta e unilateral. Para ilustrar as consequências de tal leitura equivocada, basta olhar para o chamado “marxismo soviético”, uma insossa ideologia a serviço das necessidades da burocracia que governava a antiga União Soviética. Ele empobreceu as contribuições teóricas de Marx e Lenin de tal forma que elas se transformaram em um mero manual escolar que explicava tudo e nada ao mesmo tempo, e se expressava em uma linguagem murcha repetitiva e carente de qualquer beleza estilística.

Para superar o atraso representado por tal leitura mecanicista de Marx, Ludovico diz que o marxismo contemporâneo precisa “revisar as suas ‘leituras’ da obra de Marx – e de tomar esta obra a partir do ponto de vista estilístico. Pois o exame cuidadoso de um estilo é o meio primordial para separar tudo o que é, neste estilo, metáfora, jogo literário, ilustração ou ornamento de tudo o que é propriamente teoria. Um estudo semelhante é tanto mais importante numa obra como a de Marx (…). Sua determinação para superar em si mesmo toda divisão do trabalhou levou-o a cobrir todos os aspectos do labor científico, inclusive, em primeiríssimo lugar, o aspecto literário” (p 65).

A última parte do ensaio é dedicada ao conceito de alienação. Nesse ponto, não há uma grande novidade, já que o mesmo tema, assim como suas correspondentes analogias com a religião, já foram discutidos em várias ocasiões por outros autores. A alienação na sociedade capitalista sendo consequência da alienação do trabalhador dos produtos do seu próprio trabalho, fruto por sua vez da divisão do trabalho e da apropriação privada pela classe capitalista, é ilustrada de maneira magistral na seguinte citação, da Teorias da Mais Valia: “… a essência da produção capitalista ou, se se prefere, do trabalho assalariado, do trabalho alienado de si mesmo, ao qual se enfrenta a riqueza criada por ele mesmo como riqueza estranha, sua própria força produtiva como força produtiva do seu trabalho, seu enriquecimento como autoempobrecimento, sua força social como força da sociedade sobre ele” (p. 88).

No entanto, Ludovico ainda nos consegue fazer enxergar outras nuances da alienação na maneira como Marx a elaborou ao longo das décadas, chegando à seguinte conclusão: a sociedade capitalista em si é uma gigantesca metáfora. Não, Marx não cai aqui no idealismo que tanto criticou, achando que a realidade material é produto da atividade mental. Metáfora, assim como alienação, tem como significado original transferência de um sentido a outro. Ou seja, na sociedade capitalista as verdadeiras causas dos fenômenos sociais estão ocultas, invertidas, e aparecem como sendo outra coisa. O estranhamento causado pela alienação nos faz enxergar o mundo virado de ponta cabeça, um sentido transformado em outro.

Polemizando com aqueles que enxergam um corte epistemológico na produção do “jovem Marx” e do “Marx maduro”, ele prova que o conceito de alienação sempre esteve presente no autor alemão, que aliou a denúncia indignada dos seus efeitos com uma crítica rigorosamente cientifica e precisa, buscando assim mostrar os meios para sua superação. O maior exemplo de superação do trabalho alienado é o próprio Marx, que durante toda a sua carreira sempre recusou a divisão de matérias que hoje é tão comum nos departamentos especializados de universidades, e denunciou a Economia Política como uma ideologia que separa os fatos econômicos da realidade social. E aqui o autor encerra com essas belas palavras, que também mostram a necessidade de se ter uma apreciação estético-literária da obra de Marx para se chegar a compreendê-la por inteiro:

Por isso, a máxima realização estilística desse homem excepcional que foi Marx consistiu em apresentar o mundo capitalista posto sobre seus próprios pés – para o que, primeiro, haveria que descobrir o seu caráter metafórico, a sua estrutura alienada.