Tropa de Elite 2: Violência, corrupção… mas e o sistema capitalista?
“O sistema é foda, parceiro!”
O capitão Nascimento fascinou multidões quando o filme Tropa de Elite se espalhou como um vírus pelo mercado “alternativo-pirata”, e, com um ar de subversão, apresentou a tese mais atual da política de segurança pública: a tolerância zero contra os pobres. Os jargões policialescos e toda a mística em torno da violência apresentada como necessária e inevitável, teciam um filme que criticava a polícia militar por corrupção e apresentava o Batalhão de Operações Especiais (Bope) como bastião da moralidade, a “cura”, a mais nova solução para a segurança pública do estado do Rio de Janeiro.
A continuação da série, Tropa de Elite 2, mudou o foco, mas não a tese central de seu discurso.
O mais assustador não era ver Luciano Huck, representante dos ricos cariocas, exigir o seu capitão Nascimento, como um playboy raivoso e medroso que procura o seu segurança particular. O pior era ver o quanto a mensagem do filme se perpetuou entre a classe trabalhadora, que urrando as frases de efeito do filme (“Homem de preto, qual é sua missão?… Entrar pela favela e deixar corpo no chão”) exigia a moralização sanguinária que o Bope se propõe a executar. O Rambo carioca estava muito bem inventado, mas não havia terminado ainda sua saga.
A continuação da série, Tropa de Elite 2, mudou o foco, mas não a tese central de seu discurso. A trama recai sobre o tema corrupção, mas desta vez, tendo como eixo a ascensão das milícias na sua relação entre policia e políticos, num “sistema” em que Estado e a grande mídia retroalimentam a desgraça social urbana. A crítica se aprofunda, na medida em que ao debater o que é este “sistema”, mostra escancaradamente algumas das contradições sociais que promovem a violência urbana. Assim, a complexidade e a qualidade do filme Tropa de Elite 2 são ainda mais envolventes que o primeiro. A inserção de um personagem baseado no deputado estadual do PSOL, Marcelo Freixo, na trama conhecido como Fraga, permitiu ao grande público conhecer a batalha enfrentada pelo PSOL na luta contra as milícias.
O bom desenvolvimento do roteiro torna-o digno de boas discussões sobre as motivações da violência urbana, no entanto, ao contrário do que alguns críticos mais à esquerda apontam, o filme mantém o seu caráter conservador. Como o próprio diretor afirma, ele é um complemento necessário do discurso do primeiro filme. Enquanto no primeiro a crítica se volta contra a corrupção nas micro-relações entre a polícia, o tráfico e os usuários de drogas, apresentando a violência contra o pobre como solução, o segundo filme busca culpar o “sistema” corrupto, ou seja, leva o tema corrupção para uma escala estrutural, mas sem abrir mão da violência de classe como preceito de justiça. Mas que sistema é esse tão falado no filme?
Apresentando os dilemas do abnegado capitão Nascimento, como o redentor de moralidade absoluta, que dedica a vida à luta contra a criminalidade e a corrupção, a história evolui a partir das conclusões que o personagem tira ao longo de suas experiências no alto escalão do poder público. Nesta evolução de consciência, Mathias fica para trás e acaba assassinado, por ainda acreditar que apenas com o Bope nas favelas seria capaz de resolver o sistema. Mathias representa a juventude de Nascimento, a ingenuidade ainda não perdida.
O curioso é que Nascimento para tirar suas conclusões ainda age com a ingenuidade de um “aspira”, já que desconhece a maldade do mundo, das grandes esferas de poder do Estado, as negociatas, lobbys etc. Isso porque, para o filme, o Bope jamais teria tido um exemplo sequer de corrupção, assim, o tenente-coronel, sofreria pela primeira vez, junto aos políticos ligados as milícias, as pressões para cometer o seu primeiro pecado de corrupção.
Torna-se, por casualidade, Subsecretário de Inteligência do Governo do Estado do Rio de Janeiro com a pureza de um verdadeiro herói, sem sequer imaginar que políticos mantêm relações com o crime. Na sua busca pela revolução moral, põe seu plano em prática, acreditando na potencialidade de sua boa intenção. Inicia a “limpeza das favelas” graças à ampliação do Bope na política de segurança pública, isso sem em nenhum momento questionar os métodos violentos usados. A ascensão das milícias, assim, é apresentada como se fosse consequencia inusitada (para Nascimento) da eficiência do Bope, que resolvia o problema do tráfico de drogas, mas, por não mirar suas balas nos políticos corruptos e na PM, abriu margem para a formação das milícias.
A evolução de consciência de Nascimento o faz chegar à brilhante conclusão, que a corrupção também está alojada nos altos cargos do poder público. Chega-se aí ao verdadeiro centro da discussão puxada por José Padilha: o grande problema do sistema é a corrupção, na verdade o sistema é a corrupção! Seja a polícia militar, o usuário de drogas, a polícia, a mídia, os governantes, o caos é a própria corrupção. Esta perspectiva nega o conflito entre classes sociais: os que trabalham e são explorados cotidianamente nos seus direitos sociais, e os que exploram o trabalho destes, os ricos. Na verdade, segundo o filme, o “sistema é foda” porque existem os que não têm ética e fazem a engrenagem do sistema corrupto funcionar. Logo, precisamos de um capitalismo ético, de uma polícia justa, bem intencionada que tenha carta branca para matar, o Bope.
Assim, se analisarmos por inteiro a obra de Padilha, pode-se perceber uma linha sinistra de continuidade e identidade entre Sandro, o menor abandonado do filme Ônibus 174, e o Capitão Nascimento. Ambos são apresentados como vítimas da corrupção, e alegorias deste sistema, em que cada um responde a este mal da sua forma, mas com o mesmo instrumento, a violência. Contudo, a violência do Capitão Nascimento é redimida e mostrada como necessária, se bem aplicada. Segundo Padilha, “É a mesma coisa. Os dois são lados da mesma moeda. Sei lá o fascismo e o comunismo. Como critica” (entrevista dada no Programa do Jô – 20/10/2010). O “sistema” para Padilha é o terreno de disputa entre os corruptos e os éticos, que nos dias atuais é dominado pela corrupção. O deputado Fraga, ainda que em vários momentos seja apresentado em posição de combatividade, sua luta é identificada, especificamente, como uma cruzada contra a corrupção e nunca contra o sistema capitalista. A noção sobre o que é o sistema é sutilmente embaralhada e boa parte dos espectadores sai do cinema de alma lavada, mirando todo o seu ódio contra o sistema corrupto, deixando ileso o sistema capitalista.
A narrativa do filme nos leva à identificação com Capitão Nascimento, sua postura de policial honesto, ingênuo, que aos poucos vai tirando a conclusão de que o sistema é falho, é melancolicamente cativante. Diferente do primeiro filme, agora, Nascimento é um herói ainda mais humano, que muda parte de sua concepção sobre as formas de resolver os dramas da violência urbana, já que ele agora quer mirar seu fuzil também nos políticos corruptos e na PM.
Tropa de Elite 2 é um panfleto cinematográfico muito bem desenvolvido, em que a complexidade da trama e de sua mensagem não se fizeram reféns da técnica cinematográfica de altos custos e de sua capacidade de entretenimento. A argumentação é bem desenvolvida sem que se abandone a sutileza na forma de apresentar a sua intencionalidade artística e política. Isso de certa forma é assustador, pois a idéia básica de que os fins justificam os meios ainda está presente no filme mais implicitamente.
A violência de Nascimento, resolvendo tudo pelos seus próprios meios revestem o seu autoritarismo de um perigoso heroísmo, aquele presente no indivíduo apenas, que se apresenta como o grande salvador disposto a carregar o fardo de viver unicamente para curar o mar de lama que assola o país, a corrupção. Quando Nascimento espanca o político corrupto em defesa de sua família é mais um momento emblemático do filme, em que a platéia geme de prazer vendo o político corrupto ser trucidado. Esta é a catarse que o filme explora. Enquanto no filme Tropa de Elite 1 a violência era direcionada contra os traficantes e usuários, no Tropa de Elite 2 a violência ganha tons de heroísmo quando direcionada a PM e aos políticos corruptos, o verdadeiro sistema.
A mensagem do filme é ilusionista e perigosa. Mostra o sistema como meramente corrupto, e não o sistema capitalista como essencialmente desumano. Na saída do cinema pude ouvir coisas do tipo: “ah… imagina se toda a polícia do país fosse igual ao Bope? Bem que o Capitão Nascimento poderia ser presidente do Brasil…” O Bope na presidência do Brasil, eis a tenebrosa moral do filme. O pior é que já vi esse filme antes.