Biden está fora – precisamos de um novo partido, não de um novo candidato democrata

A caótica corrida para as eleições presidenciais de 2024 sofreu mais uma reviravolta sem precedentes. Em 21 de julho, Joe Biden anunciou que encerraria sua campanha de reeleição e apoiaria a vice-presidente Kamala Harris para a chapa democrata. Este ciclo eleitoral, que originalmente prometia uma repetição pouco inspiradora de Biden vs. Trump, foi abalado por eventos históricos no último mês, desde um debate angustiante até uma tentativa de assassinato e, agora, a primeira desistência de um candidato em exercício em mais de meio século.

Os partidos e instituições capitalistas tradicionais estão em crise em todo o mundo. No Reino Unido, os conservadores acabaram de sofrer sua pior derrota em 190 anos. As eleições antecipadas na França viram o crescimento tanto da esquerda quanto da extrema direita, pois os eleitores abandonaram o presidente Emmanuel Macron e os centristas de direita que estavam no beco sem saída. No Quênia, os protestos em massa derrotaram um pacote de austeridade patrocinado pelo FMI. Os trabalhadores estão ansiosos por um caminho a seguir, e os partidos e políticos do establishment não oferecem nada. A loucura da eleição presidencial de 2024 nos EUA só pode ser entendida como parte dessa tendência global.

Até a semana passada, a liderança do Partido Democrata estava insistindo em Biden como o único candidato que poderia derrotar Trump. Embora seja verdade que os presidentes titulares geralmente ganham a indicação de seu partido, o verdadeiro motivo para apoiar Biden e evitar as primárias era afastar até mesmo a possibilidade de um desafio progressista que ameaçaria expor a total submissão corporativa de Biden. Quando tiveram Biden como única opção, mais de 650 mil eleitores optaram por permanecer “não comprometidos”, enquanto outros apresentaram votos de protesto por meio de indicações escritas a mão ou deixando suas cédulas em branco. Em muitos estados, o principal concorrente de Biden era essencialmente um espaço vazio.

O Partido Republicano está ainda mais energizado e unificado em torno de Donald Trump após sua convenção nacional e a tentativa de assassinato. Enquanto isso, os democratas têm se esforçado para convencer seu líder de 81 anos a se afastar e encontrar um candidato a menos de um mês de sua própria convenção. Mas quem escolherá esse novo candidato? Como sempre, o partido é movido por muito dinheiro e doadores corporativos que querem exercer seu controle sobre o processo político.

Depois do debate fracassado de Biden, as pesquisas imediatamente mostraram outros candidatos se saindo melhor contra Trump. Mas foi só quando alguns dos maiores doadores dos democratas começaram a reter cheques que Biden finalmente jogou a toalha, entendendo que, na visão deles, uma campanha viável é aquela que consegue convencer os doadores. Em um exemplo nauseante da influência que os megadoadores têm sobre o processo político, o Super PAC [os Super PACs são fundos de campanha eleitoral que são isentos do teto de doações] Future Forward suspendeu US$ 90 milhões em financiamento, incluindo várias promessas de mais de US$ 10 milhões, até que Biden desistisse.

Depois de receber o endosso de Biden, Kamala Harris imediatamente começou a trabalhar para angariar apoio, mantendo várias conversas particulares com pessoas ricas, incluindo executivos do Vale do Silício, o cofundador do LinkedIn, Reid Hoffman, e os megafilantropos de Wall Street, George e Alex Soros. A campanha de Harris já está apontando enfaticamente para a arrecadação recorde de fundos de um grande número de pequenos doadores que doaram para a campanha em seu primeiro dia. Mas quando ela diz que planeja “conquistar e ganhar a indicação”, a vice-presidente sabe que isso significa cortejar os megaricos. Em 2019, Kamala Harris obteve sucesso logo no início de sua participação nas primárias dos democratas, ao recorrer aos antigos financiadores de Obama e Clinton, indivíduos altamente ricos que arrecadam fundos de suas redes para repassar grandes doações de seis ou sete dígitos. É a essas pessoas que Harris realmente deve prestar contas, não aos eleitores democratas da classe trabalhadora.

Harris é melhor do que Biden?

Embora possa ser um alívio para alguns ver que o Partido Democrata não está mais depositando suas esperanças em um “homem idoso com memória fraca”, a idade de Biden nunca foi o principal problema. O verdadeiro problema é seu histórico pró-corporativo e pró-guerra como presidente, e o Partido Democrata totalmente falido. O atual governo financiou uma ofensiva genocida de um governo israelense de direita, não conseguiu lidar com uma crise histórica de custo de vida, deu continuidade à política de imigração da era Trump e intensificou o conflito interimperialista com a China, ao mesmo tempo em que abandonou completamente qualquer pretensão de lutar por ações climáticas ou reforma do sistema de saúde. Eles violaram o direito de greve dos trabalhadores ferroviários pouco antes de um descarrilamento de trem causar um desastre químico em Ohio e aumentaram a exploração de petróleo em terras públicas. É isso que os democratas – e Kamala Harris – defendem.

Uma parte da base do Partido Democrata está energizada com a mudança para Harris, pronta para dedicar tempo e dinheiro para que ela seja eleita. Os democratas agora têm a chance de reiniciar sua campanha fracassada e podem ter algum sucesso com isso entre os eleitores que não gostam de Trump, mas que não se dariam ao trabalho de ir às urnas para votar em um Joe Biden em evidente declínio. A questão é: será que esse entusiasmo inicial se traduzirá em uma chapa presidencial capaz de superar os fracassos do governo Biden e a capacidade de Trump de se apresentar como um candidato de fora de Washington que irá romper o sistema?

O verdadeiro problema com Kamala Harris é que, assim como Biden, ela é uma democrata corporativa por completo, com um histórico de políticas que são contra os trabalhadores e a favor dos bilionários.

Autodenominada “policial de ponta” na Califórnia de 2011 a 2017, Harris teve um mandato controverso e muitas vezes contraditório como Procuradora Geral. Ela sempre se apresentou como uma progressista, defendendo o direito ao aborto e o fim da pena de morte. Mas, na prática, ela foi uma aliada das elites em detrimento das necessidades das pessoas comuns. Apesar de liderar programas para levar os infratores a empregos em vez da prisão, seu gabinete manteve pessoas inocentes presas por questões técnicas.

Ela presidiu uma onda de condenações por crimes não violentos relacionados a drogas, alimentando o encarceramento em massa (cujo arquiteto, Bill Clinton, já apoiou Harris). Ela também liderou uma campanha de anos para penalizar os pais pela evasão escolar dos filhos, prometendo que eles “enfrentariam toda a força e as consequências da lei” com multas ou pena de prisão. A evasão escolar e o absenteísmo são essencialmente “crimes de pobreza”, que afetam desproporcionalmente as famílias de baixa renda da classe trabalhadora e, muitas vezes, estão ligados a problemas de moradia, cuidados infantis, transporte ou saúde física e mental. 

Os advogados de sua equipe argumentaram fortemente contra a libertação de prisioneiros não violentos que recebiam salários de 8 a 37 centavos de dólar por hora, afirmando que isso esgotaria uma importante fonte de trabalho. Harris introduziu o treinamento contra preconceitos raciais, mas também defendeu policiais acusados de má conduta e não investigou assassinatos cometidos pela polícia. Notavelmente, ela conseguiu indenizações mais altas de bancos culpados pela crise hipotecária, mas se recusou a processar bancos culpados, como o OneWest, cujo CEO Steven Mnuchin mais tarde se tornaria Secretário do Tesouro [ministro de finanças] de Donald Trump.

Esses exemplos não servem apenas para manchar o histórico de Harris. As mesmas contradições presentes décadas atrás ainda mancham Harris e o Partido Democrata como um todo, que demonstrou repetidas vezes que não está disposto a lutar pelos trabalhadores. Como vice-presidente, Harris foi encarregada principalmente de supervisionar a reforma da imigração, mas isso não aconteceu por meio de medidas legislativas progressistas ou enfrentando a direita.

Em vez disso, Harris se concentrou em garantir o investimento do setor privado nos países da América Central, enquanto notoriamente dizia simplesmente “não venham” aos migrantes guatemaltecos que buscavam condições mais seguras e estáveis. Essa atitude é ainda mais grotesca se levarmos em conta o papel que o imperialismo dos EUA desempenhou na criação dessas terríveis condições econômicas e sociais na América Central por meio de décadas de acordos comerciais, da “guerra às drogas” e do apoio direto a golpes para minar governos de esquerda. De modo geral, o governo Biden prometeu uma abordagem mais humana, mas deu continuidade às políticas da era Trump, como o Título 42, e depois conduziu os imigrantes a um sistema legal fundamentalmente falido, aumentando drasticamente as prisões e deportações na fronteira. 

Se Kamala Harris ganhar a indicação e derrotar Trump em novembro, os EUA terão eleito não apenas a primeira mulher, mas também a primeira pessoa de ascendência negra caribenha e indiana para a Casa Branca. Embora isso seja um marco histórico, seria suficiente para criar a mudança de que os trabalhadores precisam ou conter a direita crescente? Vimos repetidamente os limites da política de representação, e que o fato de ser mais jovem ou uma pessoa racializada não significa, por si só, que alguém tenha em mente os interesses dos trabalhadores.

Podemos tirar lições da atual ala esquerda do Partido Democrata para ilustrar isso. Alexandra Ocasio-Cortez [AOC] e o Squad [“esquadrão”, como é conhecido a banca da ala de esquerda dos democratas] foram eleitos em uma onda de organização da classe trabalhadora para “reformar o Partido Democrata” com uma imagem mais jovem e diversificada. Mas, até o momento, eles foram completamente corrompidos, buscando uma estratégia sem saída de mudar o sistema por dentro. Isso os afastou de uma abordagem de construção de movimento e os levou a negociar nos bastidores, dando cobertura ao establishment do partido. 

Apenas dois dias antes de Biden anunciar que estava desistindo, a AOC fez um monólogo de uma hora no Instagram ao vivo apoiando totalmente o presidente, baseando-se em argumentos legalistas e de medo para explicar por que ele não deveria ser substituído. Enquanto isso, Bernie Sanders escreveu um artigo de opinião no New York Times intitulado “Biden for President”. Eles estavam apoiando Biden quando nem mesmo os doadores ricos o fariam! A situação em que Bernie e o Squad chegaram é a conclusão lógica de sua tentativa de reformar o Partido Democrata. Não é você que muda o Partido Democrata, mas o Partido Democrata que muda você. Essa onda de curta duração de democratas reformistas de esquerda chegou ao fim de forma decisiva, deixando milhões de eleitores insatisfeitos que se sentem traídos e vulneráveis à postura “pró-trabalhador” da direita.

Harris pode derrotar a ala direita?

Com Kamala Harris provavelmente no topo da chapa, os democratas provavelmente se sairão melhor em novembro, mas ainda será extremamente difícil para eles derrotarem Trump. Harris não mudará a abordagem geral da campanha de Biden e terá de defender seu governo altamente impopular.

Trump é uma ameaça real e aterrorizante, basta olharmos para o conteúdo do Projeto 2025 para percebermos isso. Essa proposta, criada pela Heritage Foundation, pede a expansão dos poderes do presidente para criar um regime autoritário, além do desmantelamento do Departamento de Educação, do direito ao aborto e da substituição de milhares de funcionários públicos por conservadores linha-dura. Os democratas estão contando com esse medo para impulsionar sua campanha.

Mas foi o programa pró-corporativo dos democratas que deixou espaço para o crescimento da direita em primeiro lugar, desde que Obama socorreu Wall Street enquanto as famílias trabalhadoras perdiam suas casas na esteira da recessão de 2008. A direita finge apresentar respostas para os problemas muito reais que os trabalhadores enfrentam hoje – são respostas erradas, mas para milhões de estadunidenses podem parecer melhores do que as que estão recebendo dos democratas, que dizem repetidamente que a economia está indo muito bem, mas que você é burro demais para ver isso.

Um candidato para derrotar Trump de forma decisiva precisaria romper de forma decisiva com as políticas capitalistas dos democratas e oferecer soluções reais aos trabalhadores e aos jovens. Isso significaria ir contra os interesses dos doadores bilionários do Partido Democrata e contra os interesses do próprio sistema capitalista, que exige que o restante de nós trabalhe longas horas para manter uma pequena minoria obscenamente rica no topo.

Os democratas não conseguem deter a direita justamente por causa de sua política corporativa e de sua incapacidade de romper com o capitalismo, como um dos dois principais partidos capitalistas. Não se trata apenas do fato de que eles não lutarão contra a direita, eles são fundamentalmente incapazes. E isso significa que os trabalhadores e as pessoas comuns não podem continuar votando nos democratas como o mal “menor” e esperar que isso seja suficiente. Até mesmo uma vitória de Harris baseada no medo de Trump daria à direita populista novas oportunidades baseadas na continuidade das políticas democratas. 

Como o Alternativa Socialista descreveu em artigos anteriores, o fato de os democratas não apresentarem soluções reais para os trabalhadores não é apenas insuficiente, mas também encoraja e faz crescer a direita. Harris pode falar sobre o apoio ao direito ao aborto, mas as pessoas comuns testemunharam sua relutância – e a do seu partido – em legislar sobre o tema ou fazer literalmente qualquer coisa para recuperar os direitos desde a sua derrubada. Apesar das declarações vazias de solidariedade, os democratas não tomaram nenhuma medida real para conter o ataque de projetos de lei anti-LGBTQ propostos em todo o país, incluindo as centenas de projetos de lei antitrans propostos somente em 2023. O Partido Democrata está em crise, frouxamente unido pelo medo de Trump, mas incapaz de propor uma estratégia eficaz para derrotá-lo e resolver as inúmeras crises enfrentadas pelos trabalhadores.

Precisamos de um novo partido, não de um novo democrata

A ala esquerda do Partido Democrata não está vindo para salvar os trabalhadores e os jovens. É hora de abandonar completamente esse partido e construir algo novo. Os Estados Unidos são o único país capitalista avançado do mundo que nunca teve um partido de trabalhadores.

À medida que a sociedade passa de uma catástrofe para outra, os trabalhadores podem ver mais claramente que os ultraricos e seus servos políticos não têm respostas para as constantes crises do capitalismo. O crescimento da direita não é um fenômeno arbitrário que podemos esperar passar, nem é um pêndulo proverbial que automaticamente se voltará para a esquerda. É uma expressão de trabalhadores e jovens descontentes e insatisfeitos com a ausência de uma força organizada que possa apontar o caminho para o que é necessário para erradicar esse sistema podre e construir um futuro baseado nas necessidades das pessoas, não no lucro.

Os trabalhadores e os jovens precisam se organizar com urgência para criar um partido independente de trabalhadores e jovens que realmente lute por nossas necessidades, em uma base de classe contra os capitalistas. Isso significa um rompimento definitivo com o Partido Democrata e, em vez disso, concentrar-se na construção de movimentos em torno de sindicatos, contra a guerra em Gaza e apoiar e iniciar lutas em torno de outras questões importantes para os trabalhadores. Poderíamos usar as campanhas eleitorais desse novo partido com candidatos genuinamente de esquerda e antiguerra para construir esses movimentos, em vez de sustentar o sistema bipartidário falido.

Um novo partido esbarrará nos limites do que é possível na estrutura do capitalismo e precisará adotar um programa socialista para atender às necessidades de nossa classe. O capitalismo inevitavelmente criará crises que darão à extrema direita um terreno fértil para crescer, se a esquerda não oferecer um caminho a seguir. Em última análise, precisamos erradicar o sistema do capitalismo que nos leva infinitamente a desastres após desastres.

O que defendemos:

  • Luta de massas contra o trumpismo e a direita, não apenas contra Trump, e isso significa construir uma alternativa viável de esquerda nas ruas, nas escolas e nos locais de trabalho.
  • Nenhum voto para os democratas! Registre um voto de protesto para os candidatos independentes de esquerda e antiguerra, Jill Stein ou Cornel West.
  • Em vez de flertar com os megadoadores republicanos ou endossar os democratas, líderes sindicais como Sean O’Brien e Shawn Fain deveriam convocar uma conferência neste outono para lançar um novo partido pró-trabalhadores e antiguerra!
  • A Alternativa Socialista participará dos protestos na Convenção Nacional Democrata em Chicago – junte-see a nós!

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