25N: Dia internacional para a eliminação da violência contra as mulheres
Declaração do Birô Internacional de Mulheres da ASI e do ROSA Internacional
2021 tem sido mais um ano de luta contra o machismo, a LGBTQfobia e o racismo, incluindo protestos e greves de massas, exemplos inspiradores de solidariedade que estão sendo construídos entre trabalhadores de todos os gêneros. Na fábrica da Mercedes no País Basco, houve uma greve de 3500 trabalhadores após o assassinato da colega de trabalho Erika Tavares exigindo o fim da violência de gênero. Em resposta aos projetos de lei contra o aborto discutidos pela Suprema Corte dos Estados Unidos e à chocante proibição do aborto no Texas, dezenas de milhares de mulheres se manifestaram em 2 de outubro pedindo #BansOffOurBodies (#TireProibiçõesDeNossosCorpos) para proteger o direito ao aborto a nível nacional. Mais de 100 mil trabalhadores nos Estados Unidos estão negociando contratos de trabalho desde a indústria cinematográfica até fábricas, o que está sendo chamado de “Striketober” (“outubro das greves”). As lutas ganharam o direito ao aborto na Argentina e no México. Mais de 5 mil mulheres indígenas marcharam por Brasília contra as tentativas do presidente brasileiro Bolsonaro de entregar terras nativas à empresas mineradoras. Este é o contexto em que marcamos o 25 de novembro – organizando para que seja um dia de luta, em vez de palavras vazias do establishment.
Desde os primeiros meses da pandemia, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, pediu “um cessar-fogo global” para acabar com a pandemia oculta de violência contra mulheres e meninas, apelando à paz no lar e ao fim de toda a violência em todos os lugares – Declaração da ONU para o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher.
Quando se consideram os níveis de violência contra as mulheres em todo o mundo, um cessar-fogo é definitivamente algo necessário. Os próprios números da ONU estimam que 1 em cada 4 mulheres sofre violência física ou sexual durante a gravidez, 603 milhões de mulheres vivem em países onde a violência doméstica não é considerada um crime e 80% das pessoas traficadas são mulheres e meninas, 79% destas para exploração sexual. Mulheres negras e mulheres imigrantes são confrontadas com níveis ainda mais altos de violência. O US Institute for Women’s Policy Research descobriu em 2017 que mais de 4 em cada 10 mulheres negras sofrem violência física de um parceiro íntimo durante suas vidas e citou estudos que mostram que as mulheres negras tinham duas vezes e meia mais probabilidade de serem assassinadas por homens do que brancas.
No entanto, será preciso mais do que um desejo e um apelo à paz para acabar com a violência. Particularmente quando se trata de uma instituição capitalista internacional que defende um sistema que é responsável pela violência misógina.
Indo além das palavras vazias de instituições como a ONU ou qualquer governo “progressista”, as próprias mulheres agiram, entendendo que são elas que organizam a luta que alcança vitórias e concessões. Foi assim que o direito ao aborto foi obtido na Argentina e no México este ano, uma luta fundamental contra a violência de gênero por parte do Estado.
O capitalismo está sendo cada vez mais desafiado em todo o mundo. Desde o ressurgimento das greves da juventude pelo clima, às greves dos trabalhadores que se recusam a pagar pela nova crise econômica, às revoltas revolucionárias na Colômbia e em Mianmar nos últimos meses, e à luta dos povos indígenas contra a destruição da floresta tropical amazônica. As mulheres estão na linha de frente destas lutas, até porque o capitalismo está se mostrando cada vez mais incapaz de nos proporcionar uma vida segura.
Afeganistão – fracassos imperialistas levam a um grande revés para as mulheres e o povo LGBTQ+
O fim desastroso da intervenção imperialista no Afeganistão levou ao retorno do Talibã e a um regime baseado na sistemática violência de gênero. Muitas pessoas em desespero já fugiram, buscando asilo em outros países. Enquanto o apoio às mulheres e pessoas LGBTQ+, que fugiram deste regime reacionário, foi evidente em protestos de solidariedade em vários países, a maioria destas/es refugiadas/os encontrará, na melhor das hipóteses, refúgio em campos que são tudo menos seguros para elas/es, com a maioria dos países mantendo suas fronteiras fechadas para elas/es. Os governos desses países não estão preocupados com sua situação, pois também não estavam preocupados com essas pessoas enquanto sustentavam o governo corrupto de Ghani. A guerra no próprio Afeganistão causou dezenas de milhares de mortes, sendo 43% de mulheres e crianças, e a violência contra as mulheres não desapareceu com a expulsão do Talibã em 2001.
As promessas do Talibã de permitir às mulheres algumas liberdades não podem ser acreditadas. Embora o fato de o Talibã ter que fazer estas promessas verbais mostre o impacto do movimento feminista global nos últimos anos, ele tem que ser reconhecido pelo revés que é. A Lei Sharia foi promulgada, o que significa que as mulheres não podem sair de casa desacompanhadas de um homem e os códigos de vestuário foram aplicados. Para o Talibã, as mulheres são propriedade dos homens. É um exemplo extremo da posição da mulher na sociedade de classes – durante milhares de anos sendo considerada como propriedade aos olhos do establishment, da lei e da religião. As pessoas LGBTQ também estão enfrentando ameaças físicas sem precedentes à sua própria existência, agora empurradas para uma vida oculta, feita de medo constante.
Não importa o quanto as coisas possam parecer difíceis, há sempre a luz da resistência. Já ocorreram manifestações contra as tentativas de empurrar as mulheres de volta para dentro de casa e para fora das instituições educacionais. A luta contra a violência de gênero deve ser internacional e devemos construir solidariedade com todas as pessoas que lutam no Afeganistão e em todos os países contra regimes e leis arcaicas que firmam as mulheres como cidadãs de segunda classe.
O direito ao aborto é um campo de batalha
Os direitos ao aborto também são um campo de batalha em todo o mundo. Este direito fundamental de decidir sobre o próprio corpo ainda é negado a milhões de mulheres e outras pessoas que podem engravidar, por meio de leis repressivas ou da total ausência de cuidados básicos de saúde acessíveis a todas as pessoas. Enquanto em alguns países a luta determinada levou à passos a frente na obtenção deste direito, em outros países os ataques ao direito ao aborto existente estão em pleno andamento. Nos últimos anos, houve protestos e greves na Polônia contra o governo reacionário do partido Lei e Justiça implementando mais restrições ao direito ao aborto, e houve vitórias conquistadas na Argentina e no México. Na Argentina, após anos do movimento feminista de massas, o governo legalizou o aborto. No México, este ano, o Supremo Tribunal de Justiça da Nação declarou ‘inconstitucional’ a criminalização do aborto em Coahuila, juntando-se a decisões similares em Oaxaca, Hidalgo, Veracruz e Cidade do México. Isto não é o fim da luta, ainda é preciso lutar pelo direito ao aborto e pelo sistema de saúde para proporcioná-lo. Mas é uma indicação dos ganhos que o movimento feminista pode alcançar por meio da luta. A luta para obter tais direitos, e para protegê-los contra novos ataques que sempre podem vir enquanto existir o sistema capitalista, é muito mais forte se o movimento feminista se juntar com outros movimentos contra a opressão e com organizações da classe trabalhadora.
Nos EUA, apesar da promessa do presidente Biden de fazer de Roe v Wade [a decisão da Suprema Corte que legalizou o aborto] “lei da nação”, o aborto tem sido efetivamente banido no Texas e está sob ameaça em outros estados. A nova lei no Texas, o Projeto de Lei 8 do Senado, proíbe todos os abortos, mesmo em caso de estupro, após um batimento cardíaco fetal ser detectado, porém o fato é que até 95% dos abortos ocorrem após este período. Mais do que isso, a aplicação desta proibição depende inteiramente de indivíduos para entrar com ações judiciais contra qualquer pessoa por “ajudar e incentivar” o aborto. Tais processos, com a ameaça de devastação econômica, destinam-se a acabar com abortos seguros através do medo e, se bem-sucedidos, serão um modelo para a ofensiva da ala direita contra o acesso ao aborto nos EUA. E isso coloca em destaque um ponto importante para o movimento de mulheres e trabalhadores em todo mundo: não podemos contar com os tribunais para garantidos os nossos direitos, nem com os supostos partidos do establishment, que evidentemente não estão preparados a travar uma luta real sobre esse tema. Roe v Wade foi conquistado em 1973 sob pressão do movimento de mulheres nos EUA nos anos 60, um poderoso movimento de massas que coexistiu com outras lutas no contexto da onda revolucionária que empurrou a política para a esquerda, mas décadas de ataques da direita restringiram severamente o acesso ao aborto em uma grande parte do país, com políticos democratas oferecendo resistência simbólica. Agora os políticos de direita atacam o próprio direito, mostrando como precisamos permanecer sempre vigilantes, pois qualquer direito conquistado sob o capitalismo pode ser revertido.
Sob o capitalismo, a luta pelos direitos reprodutivos luta é constante por causa da centralidade do controle estatal sobre os corpos para a opressão de mulheres. Historicamente, a necessidade de conhecer a paternidade dos/as filhos/as e, portanto, controlar a sexualidade das mulheres, foi uma das pedras angulares no desenvolvimento do machismo e da subjugação das mulheres. A experiência mostra que a proibição do aborto não reduz os índices de realização do aborto, mas torna o acesso ao aborto seguro muito mais difícil, principalmente para as pessoas pobres e a classe trabalhadora, o que leva à consequências mortais. Também afeta mais a classe trabalhadora e as mulheres pobres, pois na maioria dos países não há uma escolha real sobre quando e se devem ter filhos/as, devido ao alto custo dos cuidados das crianças, o alto custo de vida enquanto os salários são mantidos baixos e a preocupação com o que o futuro reserva à essas crianças, incluindo o impacto das mudanças climáticas. As mulheres também podem estar sujeitas a pressões para ter filhos/as quando simplesmente não querem, devido à ideia de que seu papel principal é a reprodução. O controle sancionado pelo Estado sobre o corpo das mulheres representa violência quando consideramos que 7 milhões de mulheres são hospitalizadas a cada ano por abortos inseguros e as inúmeras mais que são policiadas pelo Estado e têm negado o mais básico dos direitos – o controle sobre seu próprio corpo.
Além disso, os direitos reprodutivos das mulheres podem ser desativados repetidamente de acordo com as necessidades do capitalismo. Nos EUA, o aborto é um futebol político, usado pela direita para fortalecer seu apoio no eleitorado cristão reacionário. Na China, após décadas da política de ter apenas uma criança porque o sistema não conseguia lidar com a crescente população, o que levou à abortos ilegais e seletivos de gênero porque ter um filho do sexo masculino era favorecido, agora o regime removeu esta política e está fazendo campanha para que as mulheres tenham mais filhos devido ao medo de uma diminuição da força de trabalho, que tem declinado nos últimos 8 anos. Isto é respaldado pela dificuldade para realizar o divórcio, por uma campanha repressiva de censura contra os grupos feministas e por propagandas sobre o papel das famílias “tradicionais” e os papéis de gênero. Este antifeminismo está ligado à histeria nacionalista geral do regime chinês enquanto tentam fortalecer o apoio à ditadura. Um futebol político é também aquilo a que os direitos das mulheres são reduzidos no contexto da escalada da batalha pela hegemonia mundial entre as duas superpotências imperialistas dominantes, EUA e China. Os meios de comunicação estatais chineses têm publicado histórias tentando desacreditar o movimento nascente #MeToo, nas quais culpam algumas conspirações inspiradas nos EUA por usarem questões de gênero para provocar o caos na China. Em paralelo, o governo de Biden está exibindo suas credenciais feministas como uma arma nesta nova “Guerra Fria”, apesar do establishment do Partido Democrata ter um longo histórico de oferecer escassa resistência a ataques reacionários às mulheres em seu próprio quintal.
Violência do Estado contra as mulheres
No ano passado, fizemos campanha de solidariedade contra a violência sexual sistemática do Tatmadaw (forças armadas) para reprimir a revolta contra o golpe militar em Mianmar. Todo regime reacionário usa a violência sistemática baseada no gênero como arma para reprimir a maioria da população, mas a realidade mostra que a violência estatal contra as mulheres é uma característica também no mundo capitalista avançado, como foi demonstrado enfaticamente na Grã-Bretanha com os assassinatos de Sarah Everard e Sabina Nessa. Sarah foi assassinada por um policial em serviço, que usou sua identificação policial para prendê-la enquanto caminhava para casa, sob o pretexto de quebrar as restrições de lockdown da Covid. Sabina foi assassinada ao mesmo tempo em que os detalhes repugnantes do assassinato de Sarah estavam sendo ouvidos no tribunal. O fato de nos 6 meses entre os assassinatos dessas duas mulheres outras 80 mulheres terem sido mortas por homens no Reino Unido enfureceu amplas camadas da população. Mas, o que mais irritou as pessoas foi a resposta da polícia que inicialmente recorreu à culpabilização da vítima, afirmando que as mulheres não deveriam sair sozinhas à noite, apesar da maioria dessas mulheres terem sido mortas em suas próprias casas por alguém conhecido delas. Não apenas a polícia atacou violentamente a vigília pacífica por Sarah Everard, mas seguiu a culpabilização dessas vítimas quando aconselharam as pessoas que não confiavam em um policial a “sinalizar para um ônibus” ou mesmo ligar para a linha da polícia para verificar se o policial era genuíno. Isto não só não teria salvado Sarah – seu assassino era um policial “genuíno” – como também é uma acusação completa da força policial e da violência misógina institucionalizada dentro dela. Números recentes mostram que 666 policiais no Reino Unido tiveram acusações de violência de gênero em um período de três anos, mas apenas 3,9% foram condenados. Sarah Everard foi a 16ª mulher a ser morta por um policial desde 2009.
A força policial em uma sociedade capitalista não está voltada para defender as pessoas comuns, mas principalmente para a proteção da propriedade privada e do Estado. Há muitos exemplos da polícia sendo usada para atacar violentamente protestos e piquetes de trabalhadores, bem como infiltrar-se em grupos políticos de esquerda, desenvolvendo relações com seus membros do sexo feminino como forma de espioná-los. Qualquer investigação sobre a conduta da polícia deve ser realizada por inquéritos genuinamente independentes, incluindo representantes das famílias das vítimas, sindicatos, organizações antirracistas e em defesa dos direitos das mulheres etc. Também precisamos de controle democrático sobre onde a polícia é destacada, como ela realiza investigações, e sobre a contratação e demissão de policiais para poder expulsar policiais machistas, racistas, homofóbicos e transfóbicos.
As ideias machistas são nitidamente dominantes dentro da própria força policial. O assassino de Sarah Everard também fazia parte de um grupo WhatsApp com outros policiais que enviavam mensagens misóginas, homofóbicas e racistas uns aos outros. Ele foi denunciado por ter realizado várias exposições indecentes já em 2015, mas a polícia nunca o investigou seriamente. Estes atos de envio de mensagens machistas, fazendo com que as colegas se sentissem desconfortáveis e outros comportamentos são frequentemente considerados de “baixa gravidade” e, como tal, não são levados a sério. No entanto, ao não serem contestados nos locais de trabalho, comunidades e estabelecimentos de ensino de todos os lugares, juntos formam uma sociedade que perpetua e reforça atitudes problemáticas em relação às mulheres, particularmente sobre a sexualidade feminina, e em relação às ideias sobre o direito dos homens ao corpo das mulheres. De forma extrema, isto pode levar ao assassinato de mulheres aparentemente aleatórias nas ruas, como foi o caso de Sarah Everard e Sabina Nessa. O assassino de Nicole Smallman e Bibaa Henry, mortas em junho de 2020 em Londres por Danyal Hussein, fazia parte de um programa de “desradicalização” do governo e acreditava que ele precisava “sacrificar mulheres” para ter sucesso, incluindo que ele poderia lançar feitiços para se tornar mais atraente para as mulheres. Jake Davidson, que atirou e matou 5 pessoas em Plymouth em agosto, fazia parte do movimento misógino ‘incel’ (“celibato involuntário”), que culpa as mulheres por seus considerados fracassos.
Estes exemplos brutais da Grã-Bretanha são infelizmente replicados em todo o mundo. A prevalência da violência contra as mulheres está enraizada nas condições de uma sociedade profundamente desigual, originada no topo, nas instituições do Estado, mas que permeia toda a sociedade.
O entendimento marxista sobre de onde vem a violência
Vladimir Lenin, um dos líderes da Revolução Russa, descreveu o Estado como sendo composto por “corpos especiais de homens armados”, com base na análise do Estado feita por Frederich Engels, parceiro próximo de Karl Marx. As ideias marxistas se baseiam neste entendimento, de que porque o capitalismo é uma sociedade na qual uma minoria minúscula de pessoas – a classe capitalista – detém o poder sobre a grande maioria – a classe trabalhadora – isto só é possível com base na imposição e repressão. As crescentes convulsões sociais e a instabilidade com que o capitalismo mundial é confrontado fizeram com que a força bruta do Estado, como ferramenta para a classe dominante manter relações de exploração e opressão no lugar, tenha sido trazida mais à tona.
Isto foi mais uma vez ilustrado enfaticamente pelo recente golpe militar no Sudão, contra o qual se desenvolveu uma resistência de massas, envolvendo uma grande onda de greves. As mulheres têm estado na linha de frente desta heroica resistência. Na Índia, as mulheres e demais minorias – especialmente as de origem Dalit, castas baixas e Adivasi – têm sido as mais afetadas por um padrão de violência patrocinado pelo Estado que cresceu dramaticamente sob o atual governo nacionalista hindu de direita de Narendra Modi e o BJP. Mas os eventos também impulsionaram as mulheres trabalhadoras, pobres e oprimidas indianas para a vanguarda de lutas muito importantes, mais notadamente nos protestos contínuos de um ano de camponeses, uma rebelião histórica contra a agenda neoliberal da BJP e suas leis agrícolas pró-corporativas.
Em todo o mundo, as mulheres, juntamente com as populações mais oprimidas e marginalizadas, têm sofrido mais sobre as formas mais autoritárias de governo capitalista. De forma extrema, em lugares como Mianmar, Etiópia ou Caxemira ocupada, o estupro e a violência sexual de forma generalizada têm sido usados como arma para subjugar as mulheres e esmagar a resistência à ocupação e ao domínio militar. Isso não significa que o Estado sempre assume a forma de um estado policial ou de uma ditadura militar. O Estado capitalista – a “superestrutura” como Engels a descreveu – também é composto pelo sistema educacional, instituições religiosas, mídia, etc., que reforçam a ideologia capitalista. Principalmente para reforçar a ideia de que a classe trabalhadora é impotente para mudar a sociedade e que competir uns contra os outros pelas migalhas das mesas dos ricos é tudo o que podemos esperar.
Isto também envolve promover divisões entre a classe trabalhadora, como por exemplo com base no gênero, raça, religião, sexualidade e assim por diante. Para alimentar sua máquina de lucro, a classe capitalista requer o fornecimento e a regeneração de um fluxo contínuo de trabalhadores disciplinados e obedientes, com o menor custo possível para o próprio sistema. Nesse sentido, a unidade familiar patriarcal desempenha um papel central para o capitalismo, tanto econômica quanto ideologicamente. Os papéis de gênero e a família servem para “manter as pessoas na linha” como ferramentas úteis para o controle social. Promover a ideia do papel da mulher na família como criadora e cuidadora de crianças é útil também para economizar enormes somas de dinheiro para o Estado. Além dos 10 trilhões de dólares (de acordo com estimativas da Oxfam) em trabalho não remunerado que as mulheres fazem globalmente em casa, estas ideias existem também no mercado de trabalho como justificativa para uma remuneração mais baixa do “trabalho tradicional das mulheres”, como no setor de cuidados. Não é apenas na família, mas na sociedade como um todo, que os papéis de gênero são reforçados. Por exemplo, a mercantilização das mulheres e do corpo das pessoas LGBTQ+ é usada na publicidade para vender produtos, mas também reforça as ideias de direitos masculinos sobre o corpo das mulheres, retratando as mulheres como objetos sexuais para os homens, em vez de pessoas plenas.
Tudo isso significa que não só existe violência estatal contra as mulheres e a classe trabalhadora em geral, como também o uso da violência existe em todos os níveis da sociedade. O sexismo, embora originado na divisão de classes da sociedade e enraizado no Estado, também existe dentro da classe trabalhadora. A causa raiz da violência contra as mulheres está especialmente na estrutura familiar patriarcal, uma base econômica e social na sociedade de classes desde sua criação. A maior parte da violência vivenciada vem de um indivíduo, geralmente um parceiro íntimo masculino ou um membro da família. Esta violência é, em sua essência, para o controle da sexualidade e do corpo das mulheres. A base doméstica para esta violência de gênero em particular é notavelmente muito íntima em seu caráter, geralmente surgindo gradualmente, misturada com manipulação psicológica, o que muitas vezes é muito destrutivo para a vítima.
O capitalismo distorce as relações humanas – longe de poder formá-las livremente, as pessoas podem ser forçadas a permanecer em relações infelizes ou mesmo violentas por razões financeiras ou por estarem preocupadas com o estigma do divórcio, por serem mães solos, etc. O colapso ou a inexistência do Estado social pode contribuir para isso e pode significar que os membros da família dependam uns dos outros para o cuidado, e não do Estado. As pressões da vida cotidiana podem ser desencadeadoras de violência à medida que as pessoas lutam com dinheiro, problemas de saúde mental e problemas no trabalho, ilustrados pelo aumento do abuso doméstico durante os lockdowns da Covid nos últimos dois anos.
A crise econômica mundial desencadeada no ano passado pela pandemia teve efeitos devastadores sobre milhões de mulheres, provocando um aumento desproporcional de perda de empregos e da pobreza entre as mulheres, e aumentando a disparidade da pobreza entre gêneros. As mulheres foram as mais duramente atingidas pela perda de empregos e renda, e isso é ainda maior no caso das mulheres negras, mulheres não-brancas, mulheres de origem imigrante, que agora também estão beneficiando menos com a recuperação relativa. O emprego total das mulheres negras nos EUA é 9,7% menor do que em fevereiro de 2020, antes da Covid-19 atingir os EUA, sendo que para as mulheres hispânicas esse número se aproxima de 8,6% menor. O emprego para homens brancos, mulheres brancas e homens negros diminuiu 5%, 5,4% e 5,9%, respectivamente, desde fevereiro de 2020. De acordo com um estudo recente, as mulheres que perderam seus empregos durante a pandemia na Índia são agora 11 vezes mais propensas que os homens a não voltar ao trabalho. Apesar de toda a conversa sobre uma “recuperação”, a crise deixou um impacto duradouro na situação enfrentada pelas mulheres em todo o mundo, colocando-as em maior risco de violência de gênero, de serem incapazes de escapar de parceiros abusivos, ou de serem ameaçadas pelos flagelos da exploração sexual e do tráfico de pessoas.
As ideias e comportamentos machistas não caem do céu, ou têm origem apenas na mente de um indivíduo, mas refletem o tipo de sociedade em que vivemos. O capitalismo é baseado em relações de poder desiguais e como resultado existem divisões dentro da classe trabalhadora, incluindo o machismo que às vezes pode dar a ilusão de poder aos perpetradores de violência de gênero. Isto significa que, embora devamos desafiar cada instância individual de comportamento machista, isso não será suficiente para mudar fundamentalmente a posição das mulheres dentro da sociedade. Será necessária uma mudança nas raízes da sociedade para remover completamente o sexismo e a violência de gênero. Uma característica importante dos protestos e movimentos dos últimos anos tem sido apontar a culpa da violência para o sistema. Casos individuais de violência de gênero podem desencadear um movimento de protesto, mas as demandas se desenvolvem rapidamente além da justiça para a vítima individual, para exigir justiça para todas. Começando com as Marcha das Vadias em 2011, depois a abertura das comportas através do #MeToo, movimentos da Colômbia e do Chile à Mianmar e Austrália colocaram em primeiro plano a ideia de que “todo o sistema é culpado” diante da culpa da vítima e da violência do Estado.
O ROSA e a ASI promovem, apoiam e investem ativamente nestes movimentos, ajudando-os a construir onde pudermos, mas argumentam que precisamos ir mais além. Não apenas declarando o que está errado, mas apresentando uma alternativa a este sistema doentio. O feminismo socialista oferece uma visão da transformação da sociedade de que precisamos. Mas também pode nos ajudar a construir o tipo de movimento que é necessário para alcançar isto de uma forma concreta. Levantamos a necessidade de uma luta unificada da classe trabalhadora, porque é a classe trabalhadora na sua diversidade que tem o poder de mudar a sociedade. A posição dos trabalhadores – como produtores de riqueza – significa que quando entram em greve, ela tem o poder de paralisar todo o país (ou o mundo). Mais do que isso, a classe trabalhadora são as pessoas que são realmente necessárias para fazer a sociedade funcionar e têm um papel vital a desempenhar na construção de uma nova sociedade socialista. A tomada de poder pela classe trabalhadora é a ideia chave por trás do socialismo. Para conseguirmos isso, precisamos de um movimento unificado. Através da luta coletiva, as atitudes mudam quando se revela que temos mais em comum uns com os outros do que com pessoas do mesmo sexo, raça, sexualidade ou nacionalidade na classe dominante. A luta unificada também revela o quanto somos mais fortes quando nos unimos do que quando lutamos sozinhos.
A última década tem mostrado que limitar nossos objetivos em colocar mais mulheres na política ou nos negócios é completamente um beco sem saída. Nosso movimento precisa dar atenção especial às opressões triplas e quádruplas vivenciadas, por exemplo, por mulheres da classe trabalhadora que também são negras e/ou gays e/ou trans. Precisamos lutar por um movimento que seja representativo de todas, que assuma os direitos de cada grupo oprimido e onde todas as pessoas possam participar. Mas precisamos olhar o que nos une e não o que nos torna diferentes – nossa posição como parte da classe trabalhadora. Este tipo de movimento só pode ser construído democraticamente com o envolvimento em massa de todos aqueles que são oprimidos participando não apenas de ações, mas também de discussões sobre pelo que o movimento está lutando. É a partir dessas bases que podemos ver como somos capazes de vencer não apenas nossas demandas imediatas, mas um novo tipo de sociedade livre de opressão, desigualdade e violência: uma sociedade socialista.
Uma sociedade socialista é aquela em que a classe trabalhadora está democraticamente no controle do que acontece. Através da nacionalização das grandes empresas e dos bancos, poderíamos usar a riqueza que existe na sociedade para beneficiar a maioria. Poderíamos aumentar massivamente os salários e diminuir as horas de trabalho para que todos tivessem um padrão de vida decente. A liberação econômica para as mulheres significaria que não haveria necessidade de escolha entre ter filhos e poder trabalhar e haveria a liberdade de deixar um relacionamento se fosse infeliz ou violento. O financiamento pleno dos serviços públicos significaria acesso à saúde que as mulheres necessitam, incluindo o aborto e método contraceptivo gratuitos de acordo com a necessidade, bem como outros serviços para garantir a nossa segurança e tornar boa parte do trabalho reprodutivo não remunerado que a maioria das mulheres faz em casa em serviços públicos gratuitos. Este é apenas um lado da questão. Ao mudar o sistema econômico, poderíamos também mudar fundamentalmente as atitudes em relação às mulheres, que têm suas raízes na sociedade de classes.
O ROSA e a ASI estão construindo um movimento feminista socialista contra a violência de gênero. Isto significa um movimento unificado que liga as demandas para acabar com a violência contra as mulheres com a luta mais ampla da classe trabalhadora que está em curso. Diante da crise desencadeada pela pandemia, os governos estão forçando os trabalhadores e os pobres a pagar o preço – com seus empregos, meios de subsistência e até mesmo suas vidas. Estamos construindo ativamente greves, protestos e outras ações dos trabalhadores para ganhar aumentos salariais, salvar empregos, salvar serviços e pôr fim à violência e à culpabilização das vítimas. Junte-se a nós nesta luta!
- Ni Una Menos – nenhuma vida deve ser perdida devido à violência de gênero; nenhuma saúde mental ou física deve ser prejudicada. Lutamos para acabar com a violência de gênero, abuso e assédio em todas as suas formas e em todos os lugares onde ela ocorre: no local de trabalho, no lar, escolas e universidades, instituições estatais, nas ruas e online.
- O Coronavírus destacou a necessidade fundamental de colocar o bem-estar de todas como a primeira prioridade. Precisamos apropriar-nos da riqueza da elite capitalista para financiar uma expansão maciça dos serviços públicos; da assistência médica gratuita (incluindo vacinas para todas as pessoas, liberando a patente e o conhecimento técnico, transformando a indústria farmacêutica em propriedade pública, para produzir vacinas e instalações de testes em todos os cantos do mundo) ao cuidado infantil gratuito. Não há razão alguma para o desemprego em massa quando há tanta coisa a ser feita. Com jornadas de trabalho reduzidas sem redução de salários, com aumento do auxílio social e criação de empregos sustentáveis e socialmente úteis, o desemprego pode ser reduzido a zero.
- As trabalhadoras e os trabalhadores devem ter locais de trabalho seguros contra a propagação de infecções, assédio sexual e estresse. Isso exige emprego seguro, controle das(os) trabalhadoras(es) sobre questões de saúde e segurança e um aumento do pessoal para reduzir o estresse no trabalho.
- Por uma educação gratuita, de qualidade, pública, laica com educação progressiva; adequada à idade, LGBT-inclusiva, por uma educação sexual e de relacionamento que tenha um foco no consentimento.
- Os sindicatos e representantes sindicais devem liderar uma verdadeira luta pela sindicalização, para lutar pelo fim do trabalho precário, por um salário digno para todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores e contra o assédio sexual no local de trabalho – tal movimento poderia assumir a liderança na luta contra todas as formas de machismo, misoginia, racismo, LGBT-fobia para construir uma luta unida da classe trabalhadora.
- Lutamos por um Estado que seja governado democraticamente pela classe trabalhadora a partir de baixo, eliminando o enviesamento atual em favor das classes dirigentes, bem como eliminando as bases de racismo, machismo e discriminação no Estado e nos sistemas judiciais de uma vez por todas.
- Lutamos contra a objetivação dos corpos das mulheres e o fim dos anúncios sexistas – a mídia precisa ser tomada sob controle democrático.
- A riqueza que todos nós produzimos não deve ser consumida e controlada por uma pequena minoria. Tirar a riqueza e as empresas das mãos da elite e administrá-la para o benefício da maioria da população – o que significa mais pessoas e melhor remuneração nos trabalhos socialmente úteis realizados principalmente por mulheres como cuidado de crianças, educação e saúde. Em tal sociedade o cuidado de jovens, doentes e idosos seria uma responsabilidade coletiva em vez de uma responsabilidade individual das mulheres na família, libertando as mulheres do trabalho de reprodução não remunerado.
- Lutamos pelo pão e lutamos também pelas rosas – por uma sociedade socialista em que o machismo e a violência contra as mulheres sejam realmente uma coisa do passado – por um mundo socialista livre de divisão de classes, opressão, guerra e violência em que cada pessoa tenha direito a um bom padrão de vida, e tenha a liberdade de desfrutar da vida!