“Precisamos resgatar o perfil de luta do Orgulho”
Entrevista com a transfeminista e socialista Hailey Kaas
Hailey Kaas é mulher trans, transfeminista, tradutora, escritora, pesquisadora, bissexual, socialista e cofundadora do blog Transfeminismo. Foi candidata a deputada estadual pelo PSOL-SP em 2018. Integrante da LSR, sua trajetória militante é marcada pela defesa das questões de gênero e sexualidades. Nessa entrevista, ela comenta sobre a importância de conectar a luta LGBTQIAP+ com as demandas da classe trabalhadora, e aponta caminhos para tornar o movimento mais combativo.
Os debates sobre sexualidade têm crescido na mídia e na sociedade em geral, levando a uma certa apropriação da bandeira LGBTQIAP+ por marcas capitalistas, que defendem uma visão simplista de representatividade, mantendo as estruturas de opressão das pessoas marginalizadas. Como resgatar o perfil combativo e revolucionário dessa luta?
A esquerda, no geral, precisa ter um pouco mais de pernas para poder intervir em alguns espaços que estão sendo tomados pelas empresas. Por exemplo, a organização da Marcha do Orgulho Trans da Cidade de São Paulo foi tomada pelo grupo capitalista [SSEX BBOX]. Seus membros atuam nos Estados Unidos, com o patrocínio da Ben & Jerry’s. A Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo, por sua vez, sempre teve uma organização independente, nunca com intervenção de empresa, e o evento tem um caráter mais combativo.
Para resgatar esse perfil combativo, a gente tem que estar a todo momento lembrando as pessoas que a nossa qualidade de vida enquanto trans, enquanto LGBTQIAP+, também diz respeito a ter um trabalho, ganhar um salário digno, ter uma vida digna, conseguir morar e comprar as coisas. E a gente vê que não é bem assim. Não adianta a empresa ter uma bandeira colorida e não pagar um salário adequado. Uber e iFood geralmente colocam as cores do arco íris nos seus logos, mas a gente sabe que as condições de trabalho dos entregadores e motoristas é precária. Então lembrar que LGBTQIAP+ tem classe é muito importante!
O movimento de libertação sexual no Brasil tem uma origem muito marcada por um cruzamento de raça e classe. A luta contra a ditadura também foi marcada por uma coalizão de sindicatos de trabalhadores e levantes sociais. Porque é importante conectar as pautas da classe trabalhadora com o movimento LGBTQIAP+?
É muito importante fazer essa coalizão dos sindicatos com os movimentos sociais. Os próprios sindicatos são movimentos sociais, são ferramentas de luta da classe trabalhadora. Temos que, cada vez mais, dentro da nossa atuação sindical, convencer os sindicatos a abraçar a pauta LGBTQIAP+, para que a gente consiga ganhos reais na sociedade através da união entre a luta sindical e a luta pelos direitos de viver, da forma com a qual a gente se sente mais confortável.
Existe o argumento do “nasci assim”, que diz que a pessoa é uma vítima por ter nascido gay, lésbica, trans, e não ter escolhido ser assim. Como se fosse algo ruim, e as pessoas precisam aceitar. O que está por trás desse argumento é uma homofobia internalizada. Afinal, mesmo se fosse uma escolha ser gay, lésbica ou trans, qual o problema de escolher essa vida? Poder viver da forma com a qual a gente mais se sente bem é uma questão de vida digna e plena, algo que queremos com o socialismo. Então para fazermos essa luta contra as opressões, precisamos dessa coalizão com os sindicatos.
O número de mortes violentas de pessoas LGBTQIAP+ cresceu nos últimos anos, sendo as travestis e mulheres trans as principais vítimas. Cresce também o número de projetos de leis que atacam essa população, principalmente relacionado ao uso de linguagem neutra no ensino e na administração pública, instalação de banheiros unissex e participação de pessoas trans em competições esportivas. Como podemos combater esses ataques aos direitos de pessoas trans?
Combatemos esses ataques através de muita informação em relação à questão trans. Eu acho que as pessoas ainda são muito ignorantes em relação a isso. E muitos vão ser levados nesse discurso de que as pessoas trans vão violentar crianças nos banheiros, o que acaba criando um pânico em relação à população trans. Quanto mais a gente for visível e presente no dia a dia das pessoas, e quanto mais a gente falar sobre essas questões, em todos os lugares, seja nas escolas, nos sindicatos, e até nas empresas. Embora a gente saiba que fazer trabalho dentro das empresas é limitado pela questão capitalista, eu acho que é melhor ter do que não ter. Além de que para pessoas trans tem sido uma forma de sobrevivência, inclusive econômica. A concorrência já é difícil para as pessoas cis, porque a exigência de graduação, pós-graduação etcétera não garante um salário digno.
Como que a gente une as lutas sabe? Eu acredito que só conseguimos combater esses ataques quando a gente consegue convencer as pessoas de que os direitos trans também são direitos humanos, e que as pessoas trans também têm direito a uma vida digna, também são pessoas trabalhadoras. Isso é difícil, mas não é impossível.
Tivemos um bom avanço nos últimos anos em relação à visibilidade trans, mas isso vem sendo ameaçado pela extrema direita. O problema é que os setores mais moderados da esquerda são os primeiros a rifar os direitos LGBTQIAP+, ou os direitos dos povos indígenas, quando a coisa não vai bem, como temos visto.
Quebrar a barreira do preconceito pode ser uma tarefa difícil. Como militante socialista que acredita na força da classe trabalhadora para a transformação do mundo, quais os caminhos você indica para gerar solidariedade a pessoas LGBTQIAP+?
É preciso convencer as pessoas, inclusive LGBTQIAP+, de que a luta contra a LGBTfobia e a luta contra o capitalismo são duas faces da mesma moeda. É importante incluir a luta contra o racismo também. E dai vem o significado da nova bandeira LGBTQIAP+, que une a luta LGB, com a luta trans, com a luta intersexo e com a luta antirracista.
Quanto mais a gente conseguir unir as as lutas, mais a gente consegue gerar solidariedade. Quanto mais a gente conseguir sair um pouco do isolamento que às vezes temos dos nossos próprios grupos, e circular entre outros grupos, fazer parte de outras lutas, mais a gente consegue convencer as pessoas da solidariedade de classe, e solidariedade para pessoas minorizadas. Porque se não fizermos isso, quem vai fazer?