Construindo um Novembro Negro rumo a uma vida livre de exploração
O fim da presidência de Bolsonaro e o legado que deixou para o povo negro
A presidência de Jair Bolsonaro foi um verdadeiro pesadelo para qualquer pessoa negra com o mínimo de consciência racial e de classe neste país. Dentre as pioras nas condições de vida durante seu mandato, tivemos a prevalência de mortes de negras e negros pela pandemia do Covid-19 (que morreram 1,5 vezes mais que a população branca), o desemprego chegou a atingir 14,9% da população em idade de trabalho e tivemos retrocessos históricos que nos colocaram de volta no mapa da fome, com mais da metade da população sendo atingida por algum nível de insegurança alimentar, os lares que mais sentiram esse agravamento foram os chefiados por mulheres negras.
Apesar de Bolsonaro se vangloriar pela diminuição da violência, ela na verdade aumentou, assim como aumentaram os cortes dos órgãos de estatística e dados. De acordo com o Atlas da Violência, embora os homicídios tenham diminuído, houve um salto de 69,9% no número de mortes violentas por causa indeterminada em 2019. Ao todo, 16.648 pessoas morreram de forma violenta sem que o Estado fosse capaz de indicar como; quase 2 mil delas foram causadas por arma de fogo e 78% das vítimas eram negras. Números esses que só cresceram nos anos seguintes de governo.
Os apoiadores do atual presidente o livram da culpa por todos esses índices, alegam que ele nunca atacou diretamente negras e negros, mas combinando as ações nos âmbitos institucionais e ideológicos, Bolsonaro:
• Indicou e nomeou Sérgio Camargo para a presidência da Fundação Palmares – figura que nega o Brasil como um país racista e se opõe explicitamente à própria existência de movimentos sociais negros e políticas de ações afirmativas – como as cotas;
• Mentiu sobre quilombolas, os tratando como um fardo para os cofres públicos, os chamando de preguiçosos e inúteis.
• Mostrou indiferença e disse que as manifestações contra o assassinato do povo negro, como nos casos de João Alberto Freitas, João Pedro, Moïse Kabagambe eram apenas uma importação de conflitos estrangeiros (leia-se dos EUA, visto que houve sim solidariedade entre os brasileiros, assim como dos trabalhadores do mundo todo, em apoio aos protestos do Black Lives Matter contra o assassinato de George Floyd);
• Aprovou um pacote “anticrime” que aumenta o poder da polícia e o tempo de pena máxima, logo após o massacre de Paraisópolis. Parabenizou a PM após a chacina do Jacarezinho. Declarou no debate que quem vive no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, é bandido.
Fez essas canalhices tentando nos convencer de que o racismo estrutural e a piora das condições de vida das pessoas negras dentro do sistema capitalista não existem. Fez isso conscientemente para fortalecer a ideologia racista entre sua base de apoiadores e dando aval para o combate aos movimentos negros. Com suas falas deploráveis e com o desprezo por políticas para garantir o mínimo de justiça social para o povo que construiu este país, Bolsonaro se provou uma ameaça para as nossas vidas. Um mal que ainda precisa ser derrotado pela raiz.
A luta contra o racismo e o bolsonarismo
Precisa, no presente, porque apesar da derrota nas urnas, Bolsonaro segue usando seus discursos vagos, ambíguos e autoritários para encorajar sua base de apoiadores a seguir com ataques à democracia, ataques de caráter racista, elitista, nacionalista e que flertam explicitamente com o nazismo e o facismo. E esse deve ser o cenário até o início de 2023. Só no último mês de eleições tivemos os casos do ex-vereador Zezinho (PT), assassinado ao chegar em casa em Jandira, SP; do humorista Eddy Jr. hostilizado pela vizinha em um condomínio de classe alta em São Paulo; do cantor Seu Jorge que foi alvo também de ofensas racistas em seu show em Porto Alegre; do jornalista Luan Araújo que foi perseguido pela deputada federal Carla Zambelli (PL) junto ao segurança com armas em mãos, e da adolescente Luana Rafaela baleada por comemorar a vitória de Lula na frente de casa em Minas Gerais. O que todas as vítimas têm em comum é que são negras e, de alguma forma, se posicionam contra a opressão racista.
O aumento das investidas da extrema-direita por meio de bloqueios de rodovias e protestos organizados por pequenos grupos crescem como uma demonstração de que não pretendem aceitar o resultado das urnas e como uma tentativa de botar medo, vencer no berro e atrair mais gente para sua ideologia nojenta. Em partes, conseguem. Têm o apoio da polícia autoritária e de instituições burguesas falidas que reprimem o direito ao voto, permitem que o segurança de Carla Zambelli pague uma fiança e esteja solto e que um presidente que comete crimes eleitorais desde 2018 siga governando. Assim foi quando a PRF montou blitz intimidando e atrasando eleitores em estradas do interior do nordeste brasileiro durante segundo turno das eleições, e desobedecendo determinações do STF. Essa mesma polícia, no interior de Sergipe, torturou e assassinou Genivaldo numa câmara de gás improvisada em uma viatura.
Os bolsonaristas fazem protestos e gritam tentando crescer porque apesar de serem barulhentos e de terem conseguido uma votação expressiva, sabem que não são a maioria. A verdade é que muitos votos foram comprados, muitos trabalhos foram ameaçados para que Bolsonaro atingisse o resultado que teve e ainda assim, muitos de seus eleitores são oposição ao PT ao mesmo tempo que também não estão convencidos da ideologia bolsonarista facista.
Por outro lado, existe uma classe trabalhadora determinada a fazer com que sua escolha pelo fim do pesadelo seja respeitada. Trabalhadores da Brasfels e torcidas organizadas estão dando o exemplo a ser seguido de que somente o enfrentamento organizado pode barrar o crescimento do bolsonarismo. Somando-se a isso, segundo pesquisa do Atlas Político, 90% dos brasileiros reconhecem que existe racismo no país. Esse é um dado que mesmo que tenha suas limitações, nos mostra como houve o avanço na consciência geral quanto a existência do racismo, avanço esse que foi conquista do movimento negro radical que não cedeu a negação que é o mito da “democracia racial”. Superar esse mito é o primeiro passo de uma longa luta pela superação e extermínio do racismo.
Percebemos tal avanço na consciência racial quando observamos a repercussão e o repúdio que os ataques racistas têm recebido, tal como quando uma mulher ao proferir injúrias sobre o cabelo crespo de uma outra passageira, foi expulsa do metrô de São Paulo. Mesmo os protestos contra os casos de violência contra negros hoje causem grande comoção, movimentam as lutas por direito (como vimos na pandemia) e recebem apoio da classe trabalhadora – não só nacionalmente.
A ilusão que alguns setores de esquerda ainda têm de confiar somente nas instituições para resolver esses conflitos de forma “civilizada” se mostra ineficiente, o que precisamos agora é dar resposta às demandas que a própria classe trabalhadora reconhece hoje: pedindo justiça para as vítimas de opressão racista e barrando os ataques ao resultado das urnas para que Lula de fato assuma em janeiro e isso só será possível através da organização e luta coletiva.
A insuficiência do PT
Se a população negra corretamente comemora o fim do governo racista de Bolsonaro, o mesmo setor também precisa estar atento ao que essa vitória significa e os limites que o cenário eleitoral terá. Por um lado, entendemos sim que as políticas sociais estabelecidas por Lula em seus primeiros governos garantiram principalmente para o nosso povo, mais vulnerável socialmente, muito mais estabilidade e melhora de vida. Por outro, precisamos ser realistas sobre os limites que um novo governo Lula terá agora: o cenário mundial é de agravamento de crise econômica, a Guerra na Ucrânia continua como parte da nova Guerra Fria entre as grandes potências capitalistas, e apesar de Bolsonaro ter congelado alguns dos preços como tática eleitoral, as altas provavelmente voltam no próximo período.
Não bastasse a instabilidade econômica que está por vir, a campanha de Lula esteve cheia de alianças com a direita que agora vai cobrar por poder político. O vice, Alckmin, foi responsável pelo aumento em 96% no nível de letalidade da polícia de São Paulo de 2011 a 2017, segundo dados da Secretária Pública de Segurança. Ainda segundo levantamento da Folha, de 2014 a 2016, 67% dos homens mortos de 18 a 29 anos pela polícia de São Paulo eram negros. É inevitável pensar que Lula não está imune ao golpe que trouxe Temer ao poder na interrupção do governo Dilma. Em caso de golpe. é o inimigo da luta dos professores e estudantes, ladrão de merenda que teremos como aliado e presidente? Márcio França, que teve sua campanha ao senado este ano apoiada também pelo PT, já falou explicitamente sobre ser contra as câmeras nos uniformes da polícia, ferramenta que foi responsável por uma queda em 80% no número de mortos em conflitos com a polícia militar de São Paulo.
Sendo ainda mais realista quanto às expectativas com o novo governo, o próprio Lula já decepcionou os movimentos que o levaram ao poder quando sancionou uma Lei de Drogas em 2006 sem definir quem seriam as pessoas consideradas traficantes e usuárias de drogas, sem definir a quantidade de drogas que caracterizaria cada um. O resultado da isenção de Lula é a manutenção do cenário em que a polícia militar racista que atira antes de perguntar quando sobe nas favelas tem, com a concordância dos juízes, a palavra final na hora de definir quem deve ser punido ou não por portar drogas, aumentando assim, o encarceramento em massa da juventude negra.
Além disso, mesmo agora em 2022, Lula foi ao podcast de Mano Brown onde disse que negras e negros que conseguiram se inserir na política institucional foram aqueles que não se vitimizaram. Também se referiu a si mesmo como “branco, negro, de todas as cores” fazendo alusão a um discurso de democracia racial que só enfraquece o combate ao racismo e que demonstra sua cooptação. Mesmo se analisamos o programa de Lula, as promessas que fez, o quanto se esquivou de se comprometer com a classe trabalhadora, tudo isso vai contra a luta pela melhora de vida da população negra.
A democracia burguesa branca não basta
A verdade é que todos os exemplos já mencionados de conciliação de classe estão contra nós e as nossas vidas. A democracia em que precisamos confiar e que devemos lutar para defender não é a democracia burguesa branca machista mantida pelo teatro institucional. Que democracia é essa em que candidatos negros socialistas que têm o mesmo percentual que a queridinha da Globo (Simone Tebet) tinha no início das pesquisas não são convidados para o debate?
Nós não queremos dançar conforme a música pela manutenção de uma suposta democracia em que duas a cada três pessoas encarceradas são negras (dados de 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), ao mesmo tempo em que negros ainda são sub-representados nos cargos legislativos, executivos e, principalmente, judiciários. Não queremos lutar pela manutenção de uma falsa democracia em que Marielle Franco, a 5ª vereadora mais votada do Rio de Janeiro, é assassinada a céu aberto e a justiça não procede com as investigações, é obstruída e permite a eleição de candidatos envolvidos no crime. O mesmo esquema de milícias que matou nossa camarada de luta, agora ameaça chegar a São Paulo com a eleição de Tarcísio.
É preciso termos em mente que a maneira como a nossa política é estruturada hoje é insuficiente para fins verdadeiramente democráticos. Veja, teoricamente são proibidas doações de empresas para candidatos no Brasil desde 2018, mas o que acontece na prática é que super-ricos doam dinheiro para que seus interesses prevaleçam. Até existe um limite, os empresários “só” podem doar 10% de sua renda bruta anual, que já é milionária. Apenas nestas eleições, Marcos Emírios de Moraes da Votorantim doou 3 milhões de reais ao MDB e mais milhares de reais ao PT, evidenciando como o projeto petista está em harmonia com os interesses da direita.
Oscar Cervi, empresário do agronegócio de soja, milho e algodão, doou um milhão de reais diretamente à campanha de Bolsonaro, outros 8 ruralistas se juntaram à lista dos top 10 doadores. Enquanto desse lado o agro negocia seus interesses com Bolsonaro, do outro, quilombolas e indígenas sofrem com a ausência de políticas para proteger seu direito a terra, com a falta de defesa contra os ataques por garimpeiros e ruralistas e com a queima de suas casas e de suas fontes de subsistência. Segundo a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras, desde 2018, foram emitidas 32 autorizações de “pesquisa” minerária dentro de territórios indígenas.
Aqui o que acontece na realidade é bem diferente do discurso social-democrata, não são as instituições, os três poderes, que regulam a sociedade. São os capitalistas que regulam as instituições e que as mantêm a seu favor para o controle social.
Porque o “capitalismo negro” não é suficiente
Assim como têm crescido as discussões acerca do racismo, também têm surgido discussões sobre como responder a ele. Um exemplo curioso foi como o Carrefour se posicionou após o assassinato de João Alberto em um dos mercados da rede. Naquele ano de 2020, representantes do Carrefour no Brasil pediram desculpas pelo ocorrido e anunciaram que investiriam um fundo de R$25 milhões para o combate ao racismo na empresa. Antes do anúncio já haviam perdido R$2 bilhões em valor de mercado na bolsa. Um ano depois, o lucro líquido da empresa francesa (ou seja, desconsiderando todos os custos) foi de mais de 1 bilhão de euros.
Dentre as iniciativas tomadas no combate ao racismo, foram mencionadas a educação racial aos trabalhadores, sem que fosse mencionada como ela seria aplicada, e a priorização da contratação de trabalhadores negros. Mas em que vagas estão estes trabalhadores? Com que remuneração? Essas remunerações são proporcionais aos lucros exorbitantes gerados pelos seus trabalhos?
Para conseguirmos verdadeiramente responder à opressão racista, precisamos entender que ela nasce, da maneira como conhecemos hoje, como justificativa para a exploração capitalista dos povos de todo um continente para enriquecimento de outro. E apesar de ter se modernizado e aprimorado, ele ainda é um dos alicerces do capitalismo e se consolidou com a elite usando dele para manter seu privilégio e exploração. É por isso que dizemos sempre: não existe capitalismo sem racismo. Portanto, nossa luta contra a opressão racista precisa estar intrínseca à luta pelo fim do capitalismo e vice-versa.
Por um Novembro Negro de lutas
É por isso que chamamos o povo negro e todos com solidariedade a nossa causa a construir ombro a ombro um Novembro Negro que não esvazie a história de lutas da nossa classe. Um Novembro Negro inspirado nas lutas e na resistência do nosso povo, bem como do próprio Zumbi dos Palmares, que morreu no dia 20 de novembro lutando para que tivessemos dias melhores. Vamos relembrar a vida de Mestre Moa do Katende, capoeirista baiano, assassinado em 2018 quando a ameaça bolsonarista vencia. Hoje sabe-se que ele foi morto por perseguição política, porque eles sabem que a nossa resistência é sim historicamente forte e decisiva. Não nos contentemos com o mínimo de reformas e conciliação, lutemos pelo fim da exploração racista e capitalista que andam juntas para extrair todo o lucro possível às custas das nossas vidas.
O que defendemos:
- Por um Bolsa-família de um salário-mínimo! Controle dos preços da cesta básica, água, luz, gás e combustível!
- Combate ao desemprego com redução da jornada de trabalho e investimentos públicos em saúde, educação, moradia e transporte.
- Fim dos despejos! Pela retomada e ampliação do Minha Casa Minha Vida nas faixas mais populares!
- Reforma agrária já! Pelo avanço nas desapropriações de terras no campo para fins de reforma agrária e por aumento dos investimentos no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)!
- Contra o genocídio da população preta! Vidas negras importam! Basta de violência policial racista nas periferias! Câmeras nos uniformes dos policiais de todo o país. Pela desmilitarização e controle social das polícias via comitês populares para que ninguém tenha medo da polícia!
- Fim da guerra às drogas! Pela descriminalização das drogas! Pelo fim do encarceramento da juventude negra! Por uma abordagem às drogas como uma questão de saúde pública, não de polícia!
- Revogação imediata do teto de gastos, das reformas trabalhistas e da previdência!
- Pela defesa do direito e proteção das terras indígenas e quilombolas aliadas a programas de defesa do meio-ambiente e dos pequenos produtores.
- Em defesa de uma educação antirracista! Investimento em recursos e formação na educação pública para o ensino sobre história e cultura afro-brasileira e indígena!
- Pelo fim da intolerância religiosa. Por uma política que deixe de ser pautada pelo fundamentalismo religioso e que respeite e defenda a diversidade cultural.
- Por uma alternativa antirracista e socialista para combater o racismo, a exploração e toda forma opressão.