A América Latina se levanta novamente!

A América Latina ingressou em uma nova etapa histórica marcada por crises profundas, lutas de massas e extrema polarização política e social. 

Elementos de revolução e contrarrevolução surgem em vários países a partir da ação das massas e da resposta violenta e desesperada das classes dominantes. Essa nova relação de forças se reflete também, ainda que de forma distorcida, nos processos eleitorais em vários países.

Embora com ritmos e profundidades desiguais, a tendência é que esse processo se dê de forma relativamente sincronizada como historicamente costuma acontecer na região. Além dos fatores em comum nos diferentes países, como a gravidade da crise econômica, social, sanitária e das instituições políticas, vemos como o exemplo de luta e resistência em um país serve de exemplo para os demais e provoca temor nas classes dominantes.

Uma nova fase

No período anterior, principalmente a partir de 2015, vimos como a incapacidade dos governos ‘progressistas’ em oferecer saídas consequentes à crise do capitalismo permitiu uma retomada da iniciativa da direita e do imperialismo na região. Isso incluiu vitórias eleitorais da direita neoliberal (Argentina, Chile, Assembleia Nacional da Venezuela, Equador, Uruguai etc.) e iniciativas golpistas (Brasil, Bolívia e há mais tempo em Honduras e Paraguai). 

Mas a direita que avançou na região foi incapaz de sustentar sua posição e apenas agravou o cenário de crise e ataques para as massas latino-americanas. A resposta de massas não tardou a aparecer.

O marco principal da fase atual da luta de classes na região se manifestou mais explicitamente em 2019, quando levantes sociais com características revolucionárias explodiram no Equador e no Chile, junto com outros processos de lutas de massas significativos em vários países, com destaque para a Colômbia.

A reação das classes dominantes locais e do imperialismo se deu através da intensa repressão no Chile, Equador e Colômbia e de forma ainda mais explícita através do violento golpe de Estado preventivo desferido na Bolívia. 

A falta de uma estratégia e direção consequentes para o movimento de massas também impediu que muitas dessas lutas fossem até as últimas consequências. Essas direções acabaram negociando e firmando acordos com os governos. Nem Piñera (Chile) nem Lenín Moreno (Equador) foram derrubados, apesar da enorme força dos movimentos de massas. 

Epicentro da pandemia

O novo cenário criado pela pandemia a partir de março de 2020 também criou grandes dificuldades para a resistência e luta de massas. Durante meses a América Latina tornou-se epicentro da pandemia com altíssimo número de contágios e de mortes atingindo principalmente os mais pobres e os setores já estruturalmente discriminados, como negros e negras, indígenas etc. 

Até o início de junho de 2021, 31% das mortes por Covid-19 no mundo se deram na América Latina, que possui apenas 8,4% da população mundial. O número de mortos na região ultrapassou a marca de 1,2 milhão de pessoas e, ao contrário das demais regiões do mundo, mantém uma dinâmica ascendente. 

Isso se dá devido à precariedade dos sistemas de saúde bombardeados por anos pelas políticas neoliberais, os efeitos da terrível desigualdade social, a falta de vacinas, o impacto das novas cepas do vírus e a ausência de uma gestão sanitária adequada por parte dos governos.

A pandemia agravou enormemente as contradições sociais, políticas e econômicas que já se acumulavam antes. O desemprego, a pobreza, a fome e a deterioração das condições de vida passaram a atingir uma parcela ainda maior da população. 

Segundo relatório da CEPAL, durante o ano de 2020, quando o PIB da América Latina caiu 7,7%, a região registrou os maiores indicadores de extrema pobreza em 20 anos. Agravada pelo impacto da pandemia, a extrema pobreza chegou a 78 milhões de pessoas (12,5% da população da região) e a pobreza em geral passou a atingir 209 milhões de pessoas (33,7%). 

Covid não impediu a luta

Apesar do cenário da pandemia, da intensa repressão e do papel de freio de muitas direções sindicais e políticas, nenhum desses fatores impediu que a luta fosse retomada em 2020 e, em alguns casos, com força ainda maior do que em 2019.

As manifestações de raiva e indignação que foram represadas pela pandemia acabaram por tornarem-se ainda mais fulminantes quando explodiram. Ao colocar a nu e agravar a injustiça social estrutural e os efeitos das políticas neoliberais na região, a pandemia acabou por aprofundar a radicalização na consciência e na ação de amplos setores da classe trabalhadora e dos oprimidos em geral. 

No final de 2020 e início de 2021 novas mobilizações de massas voltaram a acontecer em vários países apesar da pandemia. O marco dessa retomada das lutas foi a greve geral com manifestações massivas e centenas de bloqueios de rodovias promovidos pelas organizações de trabalhadores, camponesas e indígenas da Bolívia no mês de agosto de 2020.

Foi essa luta que derrotou o governo golpista e assassino de Jeanine Áñez e conseguiu garantir a realização de eleições no país. A partir desse processo o MAS volta ao poder com Luis Arce Catacora na presidência com uma expressiva votação.

Na Guatemala, no mês de novembro, uma multidão tomou as ruas portando guilhotinas como símbolo de sua revolta. Manifestantes chegaram a colocar fogo no parlamento que dias antes havia votado um orçamento com cortes de gastos em educação e saúde e um aumento nas concessões ao setor privado e nos privilégios da casta política. O governo e o parlamento foram obrigados a recuar.

No Peru, no mesmo período, um movimento de massas nas ruas, encabeçado pela juventude, conseguiu derrubar o presidente Manuel Merino que havia tomado posse há poucos dias em meio a uma longa e profunda crise política no país. Foi essa luta de massas e a profunda crise no sistema político que abriu caminho para a surpreendente vitória eleitoral de Pedro Castillo, um dirigente sindical grevista dos professores identificado com a esquerda, no último dia 6 de junho. 

Em vários outros países também aconteceram protestos de massa. No Paraguai também, a pandemia deixou de ser um fator limitador das lutas sociais para transformar-se em um estopim dessas lutas. Em março, manifestações de massas aconteceram em protesto contra o colapso do sistema hospitalar, e falta de vacinas e a gestão da pandemia por parte do governo direitista de Mario Abdo Benitez. 

Apesar da gravíssima situação da pandemia no Brasil, também nesse país, sinais evidentes do potencial para uma retomada da luta de massas nas ruas contra Bolsonaro podem ser vistos, principalmente a partir das manifestações do dia 29 de maio e 19 de junho em todo o país.

Em meio ao processo constituinte chileno também vimos como a força do levante de outubro de 2019 ainda se mantém viva. Isso se refletiu tanto nos resultados do plebiscito e das eleições como na greve geral sanitária do dia 30 de abril, convocada pela CUT e outros movimentos. 

Colômbia

Foi na Colômbia, porém, que o nível das mobilizações atingiu seu patamar mais amplo e radicalizado. As mobilizações de massas no país em 2019 não conseguiram derrotar Ivan Duque. Em setembro de 2020, novos protestos aconteceram como reação ao assassinato do advogado Javier Ordoñez nas mãos da polícia. Mas, foi a partir de abril de 2021 que o processo de lutas se aprofundou e radicalizou.

A paralisação nacional convocada pelas centrais sindicais para o dia 28 de abril acabou, contra as expectativas dos próprios dirigentes sindicais, transformando-se em uma verdadeira rebelião popular. Milhares de pontos de bloqueios de rodovias permanentes se espalharam pelo país, barricadas foram montadas em várias cidades, multidões tomaram as ruas.

A resposta extremamente violenta e assassina do governo e dos grupos paramilitares auxiliares na repressão serviu apenas para gerar mais ódio e inflamar as mobilizações. Assim como no Chile e Equador, o governo do direitista Iván Duque teve que ceder e fazer concessões ao povo mobilizado. Também passou a combinar repressão com apelos à negociação. Tudo com o objetivo de impedir a continuidade das mobilizações nas ruas.

O movimento de massas obrigou Duque (um dos presidentes mais identificados com o neoliberalismo e a direita truculenta na América Latina) a retirar seu projeto de reforma tributária, o que levou à queda do ministro da Fazenda. Outros ministros também caíram, assim como outras contrarreformas neoliberais, como aquela referente ao sistema de saúde. 

Mas, a mesa de diálogo instaurada pelo governo junto com o ‘Comité Nacional de Paro’ e outros movimentos não passou de uma grande farsa. Ela serviu apenas para que os dirigentes sindicais enfraquecessem o movimento ao apelarem para que os bloqueios de rodovias fossem retirados como sinal de boa vontade. 

O governo Duque segue apostando na repressão, dessa vez alegando estar visando apenas os “vândalos” e manifestantes violentos, verdadeiros “terroristas urbanos”, nas palavras de Duque e seu padrinho Uribe. Aposta também no desgaste do movimento nas ruas e busca canalizá-lo para vias institucionais mais passíveis de controle. Foi exatamente isso que fizeram Piñera e Lenin Moreno. 

Debates necessários

Diante disso, é fundamental que a esquerda latino-americana e os movimentos sociais debatam qual a estratégia necessária para que os levantes de massas resultem em transformações profundas e radicais e não “morram na praia”.  

O caso do Equador é emblemático. O levante de massas de 2019 teve como protagonistas o movimento indígena, organizado na CONAIE, a juventude e os trabalhadores urbanos que promoveram a greve geral em meio à tomada de Quito que obrigou o presidente Lenin Moreno a fugir para Guayaquil. O movimento derrotou o pacote neoliberal do governo, mas, a partir daí, seus dirigentes aceitaram negociar com o governo ao invés de lutar para derrubá-lo e estabelecer as bases para um novo governo baseado nas forças sociais que se levantaram. Acabaram por apostar em uma mudança de governo pela via institucional regular através das eleições que aconteceram em fevereiro (1º turno) e abril (2º turno) de 2021.

De fato, a força do levante de 2019 se refletiu nas eleições, embora de forma distorcida. O candidato do “progressismo” equatoriano, André Arauz, apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa, chegou ao segundo turno. O candidato do movimento indígena Pachakutik, Yaku Pérez, teve uma excelente e surpreendente votação e quase conseguiu garantir sua posição no segundo turno. 

Yaku recebeu apoio do movimento indígena e de amplos setores da juventude para sua postura crítica ao modelo agro-extrativista exportador, danoso ao meio ambiente, que foi mantido pelos governos “progressistas” de Rafael Correa. Isso o colocou como um crítico à esquerda do “Correísmo”, mas Yaku também tinha muitas confusões políticas e não se diferenciou o suficiente da própria oposição de direita ao “Correísmo”. O resultado oficial, questionado com razão por Yaku Pérez, conferiu uma vantagem de apenas 0,3% dos votos para o banqueiro neoliberal Guillermo Lasso. 

Arauz e o “Correísmo” pensavam que seria mais fácil vencer Lasso do que Yaku no segundo turno. Mas, não foi isso que aconteceu. O nível de abstenção e voto nulo cresceu no segundo turno e o desgaste do “Correísmo” – resultado da sua política de concessões à direita e colaboração de classes durante mais de uma década no governo – acabaram permitindo que Lasso vencesse as eleições.

É evidente que Guillermo Lasso não terá como encabeçar um governo estável e com força para adotar medidas neoliberais. A resistência popular, indígena, camponesa e dos trabalhadores segue viva. Ainda assim, sua vitória representou uma derrota da estratégia de negociações e disputas meramente institucionais. 

Trata-se de uma lição fundamental para a esquerda e o movimento dos trabalhadores em vários outros países. No Brasil, o PT e Lula não jogam peso nas mobilizações pelo “Fora Bolsonaro” porque preferem evitar maiores turbulências achando que assim poderão vencer com mais tranquilidade as eleições de outubro de 2022.

O PT teve a mesma ilusão na normalidade democrática em 2018 e o resultado foi a prisão ilegítima de Lula, a impossibilidade de que disputasse o pleito e a consequente vitória do ultradireitista Jair Bolsonaro.

O exemplo boliviano de 2020 mostra que só com a luta e mobilização dos trabalhadores e demais setores oprimidos pode barrar a direita e sua postura golpista e garantir eleições minimamente democráticas.

No Peru, a vitória de Pedro Castillo diante de Keiko Fujimori se deu contra uma colossal campanha de difamação contra ele que uniu toda a burguesia, o imperialismo, os meios de comunicação, intelectuais etc. Ela se deu porque se impôs ao país uma correlação de forças construída a partir das lutas desde o final do ano passado. Mas, será necessário intensificar o nível de lutas no próximo período.

Na Colômbia, será um erro apostar na desmobilização hoje na expectativa de que em maio de 2022 se possa eleger finalmente um candidato do campo chamado “progressista”, como é o caso de Gustavo Petro. A Colômbia é um bastião do imperialismo estadunidense na América do Sul e joga um papel geopolítico importante, em particular diante do conflito com a Venezuela. 

Assim como aconteceu no Chile a partir de 2019, a força do movimento de massas colombiano fez nascer várias iniciativas de organização de base nos bairros e territórios, um poder popular embrionário que pode desenvolver-se uma vez que se unifique de forma democrática e adote um programa de caráter anticapitalista e socialista.

No Chile, a aprovação por plebiscito da abertura de um processo constituinte com uma Convenção exclusivamente eleita para isso, ainda mais com paridade de gênero e representação indígena garantida, representou uma vitória histórica do movimento de massas. 

Mas, um acordo ainda em 2019 envolvendo os partidos tradicionais (de direita e de centro-esquerda) estabelecia claros limites a essa Convenção Constitucional, tais como: não poder legislar sobre tratados internacionais, a necessidade de dois terços para se aprovar qualquer coisa, a manutenção de Piñera no governo etc. Além disso, o próprio sistema eleitoral funcionava para favorecer os partidos tradicionais quando da eleição dos representantes à Convenção Constitucional.

Ainda assim, a força das lutas desde 2019 se fez expressar na votação de 15 e 16 de maio. A direita saiu derrotada e os partidos tradicionais da ex-Concertación (que governou o país por duas décadas após a queda da ditadura) também se viram enfraquecidos. A importante votação de listas com candidatos independentes, como a Lista del Pueblo, foi a marca do processo eleitoral. 

Mas, mesmo nesse caso, para que o processo constituinte possa garantir avanços efetivos na mudança radical do sistema político, econômico e social do Chile numa direção anticapitalista e socialista, será necessário apostar na organização de base nos bairros e locais de trabalho e estudo, na mobilização popular que imponha suas demandas.

Não é possível que se estabeleça uma nova constituição que reflita os interesses dos trabalhadores e do povo enquanto o assassino Piñera continue no poder e milhares de presos políticos do levante social ainda estejam nos cárceres.

Os e as militantes da Alternativa Socialista Internacional (ASI) se organizam na América Latina para defender uma estratégia e um programa anticapitalista e socialista para todos esses movimentos, lutas e disputas políticas.

Nossa revista “América Latina Socialista” será mais um instrumento dessa luta. Se você concorda com essas ideias, colabore conosco e junte-se a nós nessa luta.

Editorial da América Latina Socialista n°01, publicada em julho de 2021

Você pode gostar...