Haiti: presidente assassinado em meio a uma crise profunda
Imperialismo e capitalismo dos EUA por trás da miséria do Haiti
Em 7 de julho, o presidente haitiano Jovenal Moïse foi cercado em sua casa por 28 “guarda-costas” / mercenários pertencentes à “CTU Security” sediada em Miami. Vários deles entraram em sua casa e atiraram nele mais de 12 vezes. De imediato, o assassinato ter sido realizado de forma tão descarada causou um choque em muitos haitianos. Moradores perto da casa de Moïse viram “comandos” com máscaras pretas e armamento pesado e alguns relataram ter ouvido tiros de metralhadora.
A morte do presidente Moïse não é enfeitada por qualquer ilusão em seu legado deixado para a maioria das massas do Haiti. Moïse se engajou na constante repressão contra a classe trabalhadora haitiana e aos pobres. Ele e sua turma roubaram milhões do fundo PetroCaribe, além de ter se recusado a renunciar ao cargo de presidente para governar, essencialmente, por decreto. Moïse empregou quadrilhas paramilitares armadas que, juntamente com a polícia, mataram e reprimiram manifestantes durante as manifestações de massas, algo que muitos ativistas e jovens haitianos sabem muito bem.
Mas, a morte de Moïse claramente despertou o medo em muitos haitianos. A segurança no Haiti é uma preocupação constante à medida em que a violência das gangues cresce, dado o agravamento da situação econômica para a maioria do Haiti. Se o presidente pode ser morto facilmente em sua própria casa, isso significa que ninguém no Haiti pode estar seguro em sua própria casa. Além disso, muitos haitianos estão corretamente desconfiados das atuais investigações em torno do assassinato de Moïse.
A investigação do assassinato de Moïse tem sido confusa para muitos haitianos comuns. Christian Emmanuel Sanon, um médico haitiano de 65 anos de idade, “chamado por Deus” para assumir o Haiti, foi preso e acusado como o suposto mandante. No entanto, Sanon é desconhecido no Haiti e no passado declarou falência, o que impossibilitaria ele financiar sozinho uma tentativa de golpe custando milhões de dólares. Poucos dias depois, o chefe da segurança presidencial foi preso pela polícia haitiana, o que suscitou ainda mais dúvidas sobre a profundidade da conspiração do assassinato. Testemunhas desaparecidas, provas destruídas e ameaças de morte aos investigadores mostram claramente que aqueles que estão no poder político estão escondendo a verdade sobre o que aconteceu.
Assassinato de Moïse vinculado às divisões da classe dominante
Enquanto isso, a classe dominante haitiana batalhou pela vaga vazia da presidência. O ministro das relações exteriores e ex-primeiro ministro, Claude Joseph, apressou-se em assumir o controle, declarando-se imediatamente presidente em exercício, apesar, de acordo com a constituição haitiana, do primeiro ministro Ariel Henry ser o próximo na linha de sucessão. Desde então, Joseph cedeu sua reivindicação à presidência após o “grupo central”, um grupo de embaixadores que inclui os Estados Unidos, ter falado a favor de Ariel Henry. Isto se deu, apesar de, apenas alguns dias antes, o governo Biden ter reconhecido Claude Joseph como primeiro ministro e presidente em exercício!
Tudo isso apenas confirma o que os haitianos comuns sabem muito bem: que a classe dominante haitiana não é confiável e que ela dança ao som de potências imperialistas estrangeiras, particularmente os Estados Unidos. Isto pode ser visto na ação de manifestantes haitianos que confrontaram uma delegação estadunidense no funeral de Moïse exigindo que revelem quem é verdadeiramente responsável e que os forçaram a fugir do Haiti.
O assassinato de Moïse abre uma janela direta para uma divisão na elite governante haitiana. A maioria dos cargos eleitos está vazia por causa da recente falta de eleições e a fraude eleitoral é prática comum. As lutas internas tomaram a forma de quadrilhas sendo usadas para assassinar e/ou intimidar. Moïse estava ultrapassando seu mandato, recusando-se a renunciar ao cargo de presidente, o que muitos na classe dominante haitiana viam como uma ameaça ao seu próprio poder. Nenhum deles tem as respostas para a crise acelerada que o Haiti está enfrentando e se preocupam unicamente em usar o Estado para seu enriquecimento pessoal pela corrupção flagrante ou pela aproximação ao imperialismo estadunidense e corporações transnacionais como a Coca-Cola.
A violência das gangues e a crise econômica devastam a sociedade
As constantes lutas internas da classe dominante haitiana em meio à crise econômica e social são responsáveis por acelerar a devastação enfrentada por muitos trabalhadores e pobres haitianos.
Cerca de 7 milhões de haitianos vivem abaixo da linha de pobreza, ganhando menos de US$ 2,41 por dia. A COVID-19 impactou o país com o fechamento da economia haitiana à medida que a cadeia de suprimentos se deteriorava. Mais de 10 mil trabalhadores do setor têxtil haitiano estavam sem trabalho antes da pandemia, por conta da redução da força total de trabalho do setor têxtil de 50 mil para 36 mil. Cerca de 69% dos lares relataram um declínio na renda, com mais da metade deles enfrentando um declínio de mais de 79%! A escassez de alimentos e gasolina é, agora, algo constante em todo o Haiti, particularmente na capital, Porto Príncipe.
Isto trouxe consequências terríveis para a juventude do Haiti. Mais da metade da população, 11 milhões, tem menos de 25 anos de idade. Muitos não conseguem encontrar trabalho e são forçados a assumir trabalhos informais inseguros e/ou atividades criminosas para não passar fome. Alguns se juntam a gangues armadas que participam de sequestros por dinheiro em troca de resgate. Desde 2020, houve um aumento de 200% nos sequestros ocorridos no Haiti.
A devastação que a presente crise econômica está trazendo também radicalizou uma geração inteira de jovens haitianos, algo que pode ser visto até mesmo no comportamento de algumas das gangues. A mais proeminente é a G9 Fanmi ak Alye (“Família e Aliados”), originalmente uma coalizão de 9 gangues que, desde sua criação, cresceu de tem como líder o ex-policial haitiano Jimmy “Barbecue” Chérizier. Recentemente, este afirmou ter lançado uma luta “revolucionária” contra a burguesia e as elites políticas haitianas. Obviamente não é o caso, pois o G9 e Chérizier ficaram conhecidos por sua violenta repressão aos manifestantes contra Moïse. Chérizier liderava outras gangues armadas mesmo quando era um policial haitiano. No entanto, o fato de Chérizier sentir a necessidade de usar uma retórica contra a elite governante mostra a extensão da intensa raiva da juventude contra o governo.
Imperialismo e capitalismo dos EUA por trás da miséria do Haiti
O atual domínio político e econômico dos Estados Unidos sobre o Haiti provocou as crises que o Haiti enfrenta. Os EUA são o maior parceiro comercial do Haiti. O primeiro inunda os mercados haitianos com produtos agrícolas baratos ou com demandas de energia e ferramentas. As empresas estadunidenses ganham bilhões de dólares enquanto fazem o Haiti depender das empresas estadunidenses para as necessidades básicas. O Haiti, antes um exportador de arroz, agora importa arroz que 80% da população consome. Os agricultores rurais não são capazes de competir e são empurrados a abandonar suas terras e a entrar em Porto Príncipe como trabalhadores desempregados.
Em “troca”, o Haiti exporta prioritariamente para os Estados Unidos, totalizando até US$ 1,6 bilhões, apesar de ser retratado como uma nação “pobre”. As zonas de livre comércio espalhadas pelo Haiti permitem que as empresas que operam nelas não paguem quaisquer impostos sobre sua renda por até 15 anos. A indústria têxtil produz milhões de peças de vestuário (que compõem 90% das receitas de exportação haitianas em 2015) que são enviadas principalmente para os EUA, renunciando a quaisquer tarifas. O Haiti é tratado como uma galinha de ovos de ouro, com empresas estadunidenses inundando o mercado com mercadorias baratas, e uma reserva de mão de obra barata para realizar trabalhos pesados. O Haiti está preso na subjugação neocolonial para com os Estados Unidos.
Os Estados Unidos têm uma longa história de invasão e interferência no Haiti. Em 1915-1935, os EUA invadiram o Haiti e colocaram-no sob ocupação militar para proteger os lucros dos investidores estadunidenses. Posteriormente, os EUA assumiram o Banco Nacional Haitiano, reescrevendo a constituição para permitir que estrangeiros possuíssem terras privadas e cedendo enormes terras agrícolas das classes nativas (muitos descendentes de generais haitianos durante a revolução haitiana) para enormes empresas estadunidenses como a United Fruit.
Desde então, tanto a elite política haitiana quanto os oligarcas olham para os Estados Unidos como o verdadeiro patrão do Haiti. Isto foi mostrado novamente quando Aristide, antigo líder de Lavalas e presidente do Haiti, foi deposto com a ajuda da classe dominante dos Estados Unidos em 1991. Aristide foi então reinstalado em 1994 pelo presidente Clinton, quem cercou o Haiti com 15 mil soldados! O terrível terremoto de 2010 viu Bill e Hillary Clinton e suas múltiplas fundações despejarem quase US$ 600 milhões no Haiti, tornando-se as figuras políticas mais importantes do Haiti por vários anos. A maior parte do dinheiro para “reconstruir o Haiti”, aproximadamente US$ 16,1 bilhões, não foi vista pela maioria do povo trabalhador e pobre do Haiti. Mais recentemente, Biden escreveu no Twitter a respeito da crise do Haiti “Mwen ka di sa byen kle: pa vini”, ou seja, “posso dizer muito claramente, não venha”, para desestimular qualquer tentativa de emigrar para os EUA.
O imperialismo estadunidense está enraizado na lógica básica do capitalismo: gerar o maior lucro possível para os patrões. A miséria pela qual muitos haitianos são obrigados a passar no dia-a-dia está enraizada nas más condições de vida, nas reduzidas ou inexistentes oportunidades de trabalho decente, nas más condições de moradia e na subnutrição. Os capitalistas sabem disso e, na verdade, este é um argumento de venda para muitas empresas: um site do governo dos EUA, Trade.gov, observa como “a população que se qualifica para trabalhar tem um forte desejo de trabalho… com gerentes de fábrica relatando baixos níveis de absenteísmo (2%) e rotatividade entre 4% e 6% ao ano”. O objetivo de toda a miséria que o Haiti está passando é criar uma força de trabalho barata para explorar, transformando o Haiti em um gigantesco armazém com milhões de haitianos desempregados esperando fora de seus portões por uma chance de uma vida decente. Isto deixa a balança em favor dos capitalistas, que não querem lidar com a luta contra uma classe trabalhadora confiante e organizada que reconhece seu poder e se recusa a abrir mão de sua dignidade. O imperialismo estadunidense impõe essas condições às massas, usando a elite política e os oligarcas como instrumentos.
Revolução permanente, o papel da classe trabalhadora e o caminho para o futuro
O Haiti é descrito constantemente como um lugar sem futuro ou esperança, mas não é o caso. Isso só mostra que a elite governante capitalista do Haiti é completamente incapaz de criar até mesmo uma democracia funcional para as massas haitianas. As massas do Haiti, lideradas pela classe trabalhadora, lutaram constantemente contra ditadores e o imperialismo estadunidense.
Leon Trotsky, um dos líderes do partido bolchevique que levou a classe trabalhadora russa a derrubar o capitalismo em outubro de 1917, descreve este processo dinâmico como um processo de “revolução permanente”. A burguesia dos países subdesenvolvidos pelo imperialismo e pelo capitalismo não consegue oferecer direitos democráticos para as massas trabalhadoras e pobres; ao invés disso, usa instituições antidemocráticas, tais como aquelas herdadas do feudalismo ou como as ditaduras militares ligadas ao capitalismo e que têm o apoio das potências imperialistas. Para derrubar estes regimes é necessário então remover sua base: o capitalismo. Isto coloca a classe trabalhadora na posição de ser a única classe que pode completar estas tarefas, pois é a única que pode lutar contra os patrões e a elite política através da ação no local de trabalho e de manifestações de massas. A luta pelos direitos democráticos torna-se a luta pelo socialismo, inspirando pessoas da classe trabalhadora em todo o mundo a lutar contra seus próprios exploradores capitalistas e regimes antidemocráticos.
O Haiti, desde a revolução de 1804, tem mostrado a possibilidade de uma revolução vitoriosa dos oprimidos se espalhar por todo o mundo. Muitos ainda escrevem sobre a revolução haitiana e a criação da primeira “República Negra”. Um vitorioso movimento de massas no Haiti pode se espalhar como fogo para América Latina, Caribe e, particularmente, os Estados Unidos – é isso que a classe capitalista teme. É por isso que a Colômbia está apelando para que a Organização dos Estados Americanos realize uma intervenção militar no Haiti sob o pretexto de “manter a estabilidade”, quando na realidade é para esmagar qualquer movimento de classe trabalhadora haitiana.
A classe trabalhadora haitiana é um gigante que tem sido muitas vezes negligenciado. Liderou o caminho durante a revolução de 1946 com uma greve geral que derrubou o então ditador Elie Lescot depois que a polícia reprimiu uma greve estudantil. Jean-Claude Duvalier, também conhecido como “Baby Doc”, foi derrubado em 1986 através de uma greve geral e mobilizações de massad. O governo Moïse ficou atolado em um impasse devido às greves gerais constantes de 2018-2021. Porém, as vitórias não foram consolidadas pela classe trabalhadora, devido à ausência de um partido revolucionário que apontasse para a necessidade de liquidar o capitalismo e os oligarcas, apelando para que os trabalhadores haitianos tomassem o poder político.
O que é necessário agora é a união de ativistas, sindicalistas, trabalhadores e pobres do Haiti em um partido político de massas que se engaja em uma luta ativa contra a elite política, o imperialismo estadunidense e os patrões capitalistas. Todos os políticos ligados a tal partido devem aceitar somente o salário médio dos trabalhadores e estar sujeitos à revogação imediata, medidas que asseguram que os representantes da classe trabalhadora não se dissolvam no oceano de oportunismo dos políticos haitianos. O dinheiro das ONGs não tem lugar no movimento, já que vemos as empresas e os políticos estadunidenses usarem esse dinheiro para controlar os movimentos no Haiti. Um partido assim poderia lutar no Haiti pela nacionalização de porto e da indústria têxtil, aumentando o salário mínimo, garantindo o direito à sindicalização, eliminando as zonas de livre comércio, acabando com pactos comerciais injustos e fornecendo subsídios aos trabalhadores rurais com dificuldades.
Os jovens haitianos que são seduzidos pela atividade de gangues não podem ser abandonados. Um partido de trabalhadores de massas no Haiti pode contribuir para que os jovens assumam seu lugar na luta para obter uma vida decente ao invés de aterrorizarem sua comunidade. Manifestantes e ativistas podem criar assembleias de massas nas comunidades para discutir como estabelecer a autodefesa comunitária contra gangues paramilitares contratadas pelo governo que atacam organizadores, ativistas e manifestantes.
Para acabar com a miséria das massas haitianas, é preciso uma direção socialista revolucionária que esteja à frente de qualquer forma de organização de massas da classe trabalhadora. Uma abordagem internacionalista, lutando por uma federação socialista voluntária e igualitária do Caribe para enfrentar as potências imperialistas e para lutar pela libertação da humanidade através da revolução socialista internacional.