A construção do feminismo socialista no mundo: um relato sobre a Conferência de mulheres da ASI
Aconteceu, nos dias 10 e 11 de abril de 2021, a Conferência Internacional de Mulheres da Alternativa Socialista Internacional (ASI), na qual participaram cerca de 80 mulheres representando o trabalho de mais de 20 países de todo o mundo. A LSR, seção brasileira da ASI, participou com 7 delegadas.
A conferência reuniu companheiras para compartilharem suas experiências no trabalho do feminismo socialista; pensarem as políticas e os métodos necessários para combater o sexismo, inclusive nas fileiras das organizações da esquerda socialista e no movimento dos trabalhadores mais amplo.
Principais temas e discussões
A conferência abordou temas do Marxismo e a luta contra opressões a partir das revisões e da atualidade. Foi explicitado o papel central das mulheres no contexto de pandemia e a sua situação: tanto no sentido do maior fardo carregado pelas mulheres, quanto o papel essencial que as mulheres têm nas lutas da classe trabalhadora. Como já abordado em “Uma visão feminista socialista da crise do coronavírus” (https://lsr-asi.org/?p=4085), há o aumento de violência doméstica, feminicídio e desemprego, em um momento em que, pelo papel das mulheres como principais cuidadoras de crianças e idosos, sofremos ainda mais – o que se agrava por sermos a maioria entre profissionais de saúde e de limpeza, entre outros. A plenária destacou que nossas perspectivas, no ano passado, estavam corretas e se basearam nas condições concretas da vida no sistema capitalista.
A conferência também serviu para avaliar a história da nossa Internacional em relação à luta de mulheres, pois esta é uma discussão que deve fazer parte da luta revolucionária. Hoje podemos observar facilmente a mudança: o trabalho de mulheres é prioridade na ASI. Enfrentamos de frente a existência da opressão de mulheres e observamos como isso se manifesta inclusive na nossa internacional. Também reconhecemos a importância de aprendermos com experiências internacionais e avançarmos numa luta coletiva. Devemos nos preparar para um novo momento crucial da história e observar que o relançamento da ASI veio junto com uma maior ênfase no trabalho de mulheres, a partir das lutas e radicalização.
Outro tema que ganhou espaço importante na conferência foi a análise sobre pressões identitárias nas lutas contra opressões. A burguesia se apropriou da pauta identitária em seu favor. Essa situação foi apontada por uma companheira dos EUA que colocou o exemplo das lutas das mulheres contra a exploração pela Amazon foram respondidas com ofertas para mulheres ascenderem a cargos como gerentes e executivas, mas sem resolver os problemas da classe trabalhadora.
A camarada Kshama Sawant, vereadora da Alternativa Socialista em Seattle nos EUA, destacou que as grandes corporações têm se apropriado das políticas identitárias e cooptado setores do Black Lives Matter. Figuras proeminentes deste, contrárias à organização da classe trabalhadora e guiadas por políticas identitárias, passaram a defender bandeiras importantes para o projeto corporativo de empresas como a Amazon, mas fragilizando o movimento de massas.
Uma companheira do Chipre sinalizou que as pressões da política identitária afetam as mulheres e fortalece o neoliberalismo e o conservadorismo. É comum, nestes casos, que mulheres passem a restringir suas ações centralmente à conquistar espaços em parlamentos, gestões ou governos – algo potencializado pelo feminismo liberal. A companheira citou como o governo do Chipre tentou se apresentar como progressista por nomear uma mulher como Ministra da Justiça enterrando sérias denúncias de corrupção.
Toda a discussão partiu do reconhecimento de que temos uma maior abertura para ideias socialistas no movimento feminista, e que para uma camada importante, sobretudo de jovens mulheres, as lutas identitárias são o primeiro passo, podendo desenvolver a partir delas conclusões anticapitalistas e socialistas, ao passo que o feminismo burguês tem produzido uma frustração por não oferecer perspectivas para mulheres trabalhadoras vencerem em sua luta contra as opressões.
Luta das mulheres pelo mundo, ROSA e 8 de março
A luta das mulheres contra a violência, a discriminação e a opressão ganha amplitude ao redor do mundo. Durante o mês de março aconteceram várias movimentações, ainda que adaptadas ao contexto da pandemia. O ROSA Internacional é a frente de atuação por um feminismo socialista internacionalista, fundado pelas mulheres da ASI em 2020, com o objetivo de contribuir para a mobilização contra o sistema capitalista e para uma luta internacional contra a opressão das mulheres (Declaração Fundacional do ROSA https://lsr-asi.org/?p=3900). O ROSA já vinha num processo de construção em alguns países, na conferência foram dados informes da luta e organização das mulheres em diversos locais. A seguir, alguns processos ao redor do mundo que foram destacados no evento:
Houve um aumento de 22% no número de mulheres vivendo abaixo da linha da pobreza na América Latina. No Brasil, hoje são cerca de 11 milhões de mães solo em situação de extrema miséria. A política conservadora do governo Bolsonaro colabora para o aumento de violência de gênero, por exemplo o feminicídio aumentou em cerca de 22%. Projetos que atacam os direitos reprodutivos, como o “Bolsa estupro” ou que visam a flexibilização do porte de armas têm sido lançados por conservadores no congresso nacional e sabemos que ambos afetam a situação de violência contra as mulheres. Também aumentou a violência política de gênero. Especialmente mulheres negras, trans e indígenas sofrem com o alto nível de violência pelo Estado.
No Brasil, temos construído espaços como o setorial de mulheres do PSOL desde a sua criação. No 8 de março deste ano o foco foi principalmente em atividades online e atos simbólicos descentralizados e devemos nos preparar para o 25 de julho, dia Internacional de luta da mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha.
Ainda na América Latina, foi lembrado o exemplo das lutas pelo direito ao aborto na Argentina. A criação da campanha nacional surgiu em 2003, com formação de comitês em bairros para enraizar o movimento que continham diferentes setores buscando a defesa da política de saúde pública e lutando por aborto legal e gratuito dentro dos hospitais. Essa conquista deixa para nós a lição da capacidade da Frente Única em massificar, com a superação do sectarismo, dentro do movimento feminista.
No Quebec, o governo implantou uma contrarreforma fazendo cortes nos serviços públicos, principalmente na saúde. Lá, os serviços de saúde incluem trabalhadores da educação e serviços como creches. A reforma afeta diretamente as mulheres e trabalhadoras da saúde que lutaram em negociações que perduraram mais de um ano. Infelizmente, não houve reação alguma das burocracias sindicais. Há ainda uma nova onda de feminicídios, o que gerou uma manifestação que, apesar de positiva, ocorreu em uma região elitizada e foi dominada por um clima despolitizado. Isto aponta a necessidade da denúncia que mostra como a luta contra o capitalismo é parte da luta feminista, pois envolve temas como habitação, serviços públicos etc. Na luta, houve intervenções do ROSA junto a sindicatos, partindo de demandas feministas vinculadas com trabalhadoras e povos indígenas.
No Canadá, uma pesquisa realizada entre 2006 e 2009, revelou uma situação para as populações originárias e indígenas marcada por pobreza, violência e assassinato massivo de mulheres. Sobre essa situação houve uma ausência de investigações e lentidão do sistema de justiça, além da criminalização e marginalização de mulheres que vivem as consequências de um genocídio de Estado. A denúncia do colonialismo no Canadá também indica como é necessária a luta contra o Estado e o poder da polícia.
Na Grã Bretanha, houve, recentemente, reação ao assassinato de uma mulher, Sarah Everard, por um policial, o que gerou um surto de protestos, que foram duramente reprimidos pela polícia, o que gerou novos protestos. O movimento mostrou que é necessário trabalhar as raízes da violência doméstica, pois as mulheres que sofrem esse tipo de violência possuem poucas possibilidades de enfrentamento e de recursos materiais. O movimento também mostrou que é urgente enfrentar o papel do Estado e da polícia na culpabilização das vítimas da violência de gênero.
Na Irlanda do Norte o assassinato de Sarah Everard também gerou protestos. Em 2 dias foi organizado um protesto que contou com 160 pessoas, um número considerável para a pandemia. Nesse protesto, 5 camaradas foram multadas por desrespeitarem regras da pandemia. Isto ocorreu após um homem matar a mãe de fome e sua companheira, a mesma polícia que estava reprimindo os protestos, ter sido avisada sobre as agressões à mulher e não realizou investigações. O número de feminicídios no país dobrou durante a pandemia O governo emitiu uma decisão que limita o direito ao aborto a partir de uma lei disfarçada como garantia de direitos às pessoas com deficiência.
Na Austrália houve um grande movimento, que partiu de um caso de estupro pelo procurador geral (a polícia encerrou escandalosamente a investigação após a vítima se suicidar), contra a cultura do estupro com manifestações contra a culpabilização da vítima.
Em Israel/Palestina houve um aumento na violência de gênero, mas também um aumento significativo de consciência na última década. A primeira greve feminista da história ocorreu em 2018, a segunda em 2020 e a última ocorreu neste ano. Esta durou apenas 10 minutos, porém representou uma luta travada e dirigida totalmente pela classe trabalhadora. Os movimentos do 8 de março foram pequenos, mas as mobilizações têm atraído a juventude, garotas de 14-15 anos, que estão entrando nesses espaços pela primeira vez.
Na Rússia houve protestos em várias cidades no 8 de março, apesar do aumento da repressão do governo Putin. A polícia prendeu ativistas só pelo fato de distribuir panfletos chamando o 8 de março, incluindo militantes nossos, da ASI, que levou a uma campanha de solidariedade internacional.
Na Polônia o Rosa surgiu como parte da onda de protestos contra os ataques ao direito ao aborto pelo governo conservador. Se refletiu que não devemos esperar os avanços para nos movimentar, pois nesses momentos existe uma camada que não vê necessidade de organizar a luta. Porém, a construção de uma manifestação para o 8M foi uma excelente atividade que atraiu mais de 200 mulheres. Isto mostra que a ideia de feminismo socialista ganhou uma boa ressonância.
A camarada da Áustria apontou a importância da nossa seção no país, construindo um ato nas últimas semanas. Os atos deste ano foram o dobro em tamanho comparado com o ano passado. Na Suécia nas preparações de luta para o 8M foram feitos pequenos atos de rua, mas também boas iniciativas de formação.
Na Bélgica, o lançamento do ROSA se deu em um contexto de mudança na consciência, antes da nova onda de luta feminista, permitindo que a organização estivesse preparada, com mais espaço para discussões mais profundas sobre análise marxista e opressão de gênero. O ROSA tem se espalhado para novas cidades.
Nos EUA, a seção da ASI conseguiu, nos últimos anos, construir uma camada de quadros mulheres que realizou intervenções significativas desde as eleições de Trump. As mulheres têm liderado lutas centrais, como contra o racismo e por aumento do salário mínimo.
Em vários países temos exemplos recentes de construção da organização de mulheres como no México, África do Sul, Alemanha, entre outros. Na Tunísia houve intervenções com o ROSA no 25 de novembro e atividades contra violência, enquanto na Costa do Marfim houve a realização de uma oficina em uma escola no dia 8 de março. Existe uma radicalização de mulheres ao redor do mundo que faz com que, em muitos países, o lançamento de um movimento internacional de mulheres socialistas seja importante. O ROSA hoje está sendo construído nos 5 continentes do mundo, apontando para o sucesso do internacionalismo na luta.
As tarefas do feminismo socialista em uma era de desordem
Ocorre um aumento da luta de massas no mundo, muitas delas são feministas e têm como foco a violência de gênero. Podemos observar a ampliação de consciência da juventude, o que se acelerou com a pandemia. Há mais raiva e menos aceitação da realidade capitalista e, com isso, surge a possibilidade de mais aceitação para o feminismo socialista. Também precisamos incorporar mais as experiências das lutas contra outras opressões.
Temos que canalizar a indignação para uma luta consciente contra o sistema, com uma política orientada para a aproximação e consolidação de mulheres no partido. É preciso, também, estabelecer vínculos com o dia a dia das mulheres trabalhadoras, intervindo nos locais de trabalho e nas escolas buscando acumular forças, fazer avançar sua consciência e estar ombro a ombro nas lutas. Não menos importante, temos de nos preparar para novas explosões de lutas das mulheres e nos preparar com ação consistente e debate ideológico.
Apesar de conquistas importantes no último período, temos muito o que avançar e cada vez mais fica explícito os limites do que o sistema capitalista pode oferecer a nós mulheres. O Fórum Econômico Mundial aponta em relatório que pelo menos nos próximos 136 anos a igualdade de gênero não será alcançada.
Devemos superar os limites do feminismo burguês e o “feminismo radical”, que exclui e discrimina mulheres trans. Por isso, devemos apresentar os métodos das mulheres trabalhadoras, como por exemplo as greves, e explicar quem, de fato, é o inimigo a partir de uma análise cuidadosa sobre a origem das opressões das mulheres.
As articulações de mulheres em luta por meio de plenárias nacionais ou internacionais são importantes para as mulheres sentirem que fazem parte de algo maior e que não estão isoladas e é preciso estimular iniciativas conjuntas e de solidariedade internacional, pois somos parte de uma mesma classe. A situação atual pode levar a uma radicalização e por isso temos que nos preparar. O silêncio das mulheres trabalhadoras não será a marca do próximo período e nosso chamado é para que mais mulheres se somem na construção da LSR, da ASI e do ROSA. O caminho para o fim das opressões é a luta e o socialismo!