Uma visão feminista socialista da crise do corona vírus

As mulheres estão entre os que sofrem os piores efeitos

“A saúde em luta”, “hospital não é empresa”, “paciente não é mercadoria”.

A pandemia do Covid-19 atingiu duramente o mundo. Trabalhadores da saúde, cujas vozes nunca foram ouvidas quando gritaram em movimentos e greves por todo o mundo nos últimos anos, clamando por mais contratações e recursos, são agora o principal trunfo no combate a essa pandemia. Eles pagam um preço pesado por isso: daqueles que foram testados positivos na Itália, 10% são trabalhadores da saúde. E enquanto os ricos podem se submeter a testes, a maioria dos trabalhadores da saúde não podem! Esta é uma característica da crise em todos os lugares, não apenas na Itália. Dos Estados Unidos à Grã-Bretanha ou Bélgica, médicos e enfermeiras estão se perguntando publicamente se estão infectando seus pacientes, colegas e familiares. Duas enfermeiras italianas cometeram suicídio após terem sido testadas positivo para o vírus. 

A vida de milhões de pessoas mudou drasticamente nas últimas semanas, à medida que um número cada vez maior de países entra em isolamento (parcial), confinando cada vez mais pessoas em casa. Existe obviamente uma enorme diferença entre estar confinado num pequeno apartamento com os seus filhos, ao invés de estar confinado numa enorme mansão com um grande espaço ao ar livre como o antigo governador da Califórnia e o ator Arnold Schwarzenegger – a maioria das pessoas não teria espaço para um burro e um mini pónei dentro ou fora de casa! Sem esquecer os milhões de pessoas sem teto no mundo, os milhões de refugiados encurralados em campos com quase nenhum acesso a água e sabão e serviços médicos ou as inúmeras comunidades do mundo que não têm acesso fácil a água e instalações sanitárias. No Brasil, por exemplo, 60% da população não tem acesso a serviços sanitários adequados.

A pandemia de Covid-19 não tem, obviamente, o mesmo efeito em toda população. Enquanto qualquer pessoa pode ser infectada, as hipóteses de sobrevivência são muito menores para as pessoas pobres, que geralmente já têm uma saúde pior, o que leva a uma menor resistência aos vírus. Em países como a África do Sul, onde a tuberculose é generalizada entre as camadas pobres da população, este vírus pode ter um efeito muito mais devastador. No Brasil, não é por acaso que a primeira pessoa que morreu do vírus foi uma mulher negra que trabalhava como empregada doméstica – as mulheres negras estão entre as mais pobres.

Mas há também um aspecto de gênero: as mulheres estão claramente entre as que sofrem os piores efeitos do vírus. “As consequências do coronavírus podem ser piores para as mulheres do que para os homens”, afirma o Fórum Econômico Mundial. Embora os dados chineses sugiram que morrem mais homens do que mulheres devido à doença, as mulheres suportam o peso de serem a maioria dos profissionais de saúde, bem como as que prestam a maioria dos cuidados no seio das famílias e das comunidades, o que as torna mais vulneráveis a serem infectadas, como ficou demonstrado pela experiência de epidemias no passado.

O surto de ebola em 2014-16 na África Ocidental mostrou como a posição predominante das mulheres no trabalho de prestação de cuidados significava que elas eram mais susceptíveis de serem infectadas, sem poder para influenciar a tomada de decisões. Os poucos recursos no setor da saúde que existiam concentraram-se na luta contra o vírus, o que levou a uma degradação adicional dos serviços para outras questões de saúde. O resultado foi, entre outros, um elevado aumento da mortalidade materna. É provável que isso se venha a reproduzir na presente crise, uma vez que o vírus atinge o mundo neocolonial.

Com o fechamento das escolas e outros serviços, a maioria do trabalho doméstico suplementar recai sobre os ombros das mulheres. Espera-se também que o confinamento provoque um pico na violência doméstica – física, sexual, psicológica – tanto em relação às mulheres como às crianças e aos jovens LGBTQI+. Como as mulheres estão geralmente em contratos temporários e precários em locais de trabalho fechados, como bares e restaurantes, ou em lojas de produtos não alimentares, muitas delas não se beneficiarão das medidas tomadas para proteger os empregos e os rendimentos, terão simplesmente perdido o seu emprego.

Esta crise põe em evidência a posição vulnerável das mulheres no mercado de trabalho e na sociedade capitalista em geral, bem como o importante papel das mulheres como cuidadoras não remuneradas na família e nas comunidades e como trabalhadoras remuneradas em setores que sempre foram subvalorizados, com salários baixos, contratos precários e más condições de trabalho, mas que agora mostram como são realmente indispensáveis. Esta crise mostrou também muito claramente a incapacidade do establishment capitalista de lidar com este risco para a saúde, com a maioria das medidas que finalmente tomaram – sempre demasiado pouco, demasiado tarde – aplicadas a partir de pressão de baixo, com os trabalhadores comuns tomando e aplicando medidas, com governos e patrões correndo atrás.

A austeridade deixou os trabalhadores da saúde para lutarem como soldados sem armas adequadas.

As mulheres constituem a maioria dos trabalhadores do setor da saúde e da assistência social, com 70% em 104 países analisados pela Organização Mundial de Saúde. Na região de Hubei, onde o vírus surgiu pela primeira vez, 90% do pessoal é constituído por mulheres. Na Bélgica, é 80% nos hospitais, indo até mais de 90% nos lares de repouso.

O trabalho no setor da saúde e da assistência social é visto em grande parte como uma extensão das competências “naturais” das mulheres, para as quais não é necessário proporcionar salários dignos. Em geral, os seus salários ficam abaixo da média. Agora estas funções são claramente vitais, não só as das enfermeiras e os médicos altamente qualificados, mas também os trabalhadores com salários mais baixos, como os trabalhadores da limpeza, sem os quais todo o setor teria de fechar as portas. É agora evidente que os empregos mais mal remunerados se encontram frequentemente entre os mais úteis e valiosos.

Em cada país, as pessoas aplaudem os trabalhadores do setor da saúde a partir das suas janelas e varandas. O grupo de ação de saúde La Santé en Lutte (Saúde em Luta) respondeu a este ato de solidariedade e de apoio dizendo: “Obrigado pelos aplausos, mas nós pedimos-lhe que não esqueça o que acontece agora e que nos apoie em futuras mobilizações”. Assim que o confinamento terminar, temos algo a dizer e a fazer. E vamos precisar de vocês!”.

O número de mortos pelo vírus é muito influenciado pelos pontos fracos dos cuidados em saúde. Em todos os países capitalistas desenvolvidos, décadas de cortes na saúde criaram uma situação em que não existem leitos hospitalares suficientes, em que o pessoal está sobrecarregado de trabalho e é atingido por uma epidemia de doenças relacionadas com o trabalho muito antes do início desta crise, em que as instalações de testes são largamente insuficientes. Isto não foi feito apenas para reduzir os orçamentos, mas fez também, parte de um esforço consciente de mercantilização e privatização por parte dos sucessivos governos neoliberais, criando um setor privado de saúde com fins lucrativos ao lado de um setor público sangrando. Países como a Itália reduziram o número de leitos hospitalares de 10,6 camas por 1000 pessoas em 1975 para 2,6 atualmente; na França passou de 11,1 camas por 1000 em 1981 para 6,5 em 2013. Nos países em desenvolvimento nunca houve serviço de saúde adequado a lista dos países que têm menos de 1 leito hospitalar por 1000 pessoas resume-se à lista do mundo neocolonial. Quando este vírus se propagar em continentes como a África, os resultados serão catastróficos.

A Coreia do Sul parece ter sido o único país que manteve as suas estruturas de testes em número suficiente para evitar um bloqueio para conter a infecção, enquanto os países europeus e os EUA entraram nesta crise totalmente despreparados. Um exemplo disso foi a destruição na Bélgica, em 2019, da reserva estratégica de 6 milhões de máscaras cirúrgicas, após um mau armazenamento pelo departamento de defesa as ter tornado inutilizáveis. Por considerações orçamentais, o governo de direita decidiu não renovar as reservas, o que deixou até os próprios profissionais de saúde sem proteção nas primeiras semanas do surto.

Fotos de enfermeiros exaustos, com marcas das suas máscaras e óculos de proteção impressos nos seus rostos, irão converter-se em imagens simbólicas relacionadas com esta crise – temos de ter a certeza de que não serão esquecidas depois. Porque não é verdade que o establishment não soubesse da falta de pessoal no setor da saúde: em todo o mundo assistimos a movimentos de greve em massa nos últimos anos. Na França, no ano passado, houve uma greve maciça que se propagou por quase todas as unidades de emergência, mas, tal como noutros locais, a resposta do governo foi a continuação da austeridade, incluindo uma maior mercantilização do setor.

Os trabalhadores do setor da saúde em todo o mundo enfrentam agora uma situação em que fazer dupla jornada de trabalho se tornou a nova norma. Se o setor resistir a esta crise, não será graças ao establishment, mas graças aos enormes sacrifícios dos trabalhadores, incluindo os de limpeza e desinfecção dos hospitais e outras instituições de saúde.

Direito ao aborto sob ataque

No combate a esta pandemia, o setor não será capaz de manter também os serviços normais. Todos os cuidados não essenciais e não urgentes são adiados, sendo que alguns estados dos EUA os utilizam para incluir o aborto nos cuidados não essenciais. Com as restrições às viagens, isto equivale ao retrocesso dos direitos ao aborto nos EUA. Obviamente, isto tem de ser combatido. A pressão tem de ser construída imediatamente, como as organizações de mulheres brasileiras fizeram em maio do ano passado, quando o governador de São Paulo decretou o encerramento de um dos raros hospitais que realizam abortos nos casos em que a lei o permite – apenas alguns dias depois reabriu.

As mulheres que desejam fazer um aborto precoce devem poder obter receitas de pílulas abortivas online ou através de um simples telefonema, para serem tomadas em casa, os abortos tardios devem ser incluídos nos cuidados urgentes. Da mesma forma, as mulheres em tratamento de fertilidade devem poder mantê-los.

No Reino Unido, estes direitos estão sendo negados, completamente desnecessariamente. De fato, na Irlanda, foram tomadas medidas para permitir o acesso a comprimidos de aborto por telefone, devido a pressões vindas de baixo, o que mostra que tal poderia ser o caso em tempos “normais”. Devemos exigir que isto continue depois de a pandemia acabar!

As medidas de proteção instaladas nos hospitais conduzem a uma situação em que as mulheres têm de dar à luz sozinhas, não sendo permitida a entrada do seu parceiro. Entretanto, as maternidades estão sendo fechadas, uma vez que as parteiras são destacadas para outro local, ou estão isoladas em consequência do Coronavírus. Ao mesmo tempo, as doentes idosas morrem sozinhas em casas de repouso e nas suas casas, uma vez que não são permitidas visitas. Só o acesso aos testes pode ajudar a evitar estas experiências traumáticas. Na situação atual, em que os testes são muitas vezes realizados em laboratórios privados, aqueles que têm prioridade não são aqueles que mais precisam, mas aqueles que têm dinheiro para pagar por eles!

Em muitos países, os idosos infectados com o vírus nem sequer são levados para o hospital, pois há pouca esperança de sobrevivência e os hospitais lotam. O fato de a sociedade ser obrigada a fazer um julgamento tão brutal e desumano é, por si só, uma acusação contra o capitalismo!

Os “soldados” que mantêm a sociedade em funcionamento nestes tempos difíceis não são apenas os trabalhadores da saúde. Os trabalhadores da distribuição de alimentos, da limpeza de locais de trabalho essenciais, dos transportes públicos, da assistência social, são todos lançados ao trabalho, muitos deles também com cargas de trabalho acrescidas, trabalhando em duplas jornadas. Todas as medidas que foram tomadas para os proteger contra infecções geralmente não foram tomadas pelas autoridades ou pelos patrões, mas tiveram de ser aplicadas a partir de baixo pelos sindicatos e pelos trabalhadores comuns.

Quando o primeiro surto ficar para trás e os governos passarem de enormes injeções de fundos para a apresentação da conta à maioria da população, o que é inevitável agora devido à crise econômica mundial que se avizinha, teremos de intensificar a luta. Precisamos exigir mais recursos públicos investidos na área da saúde, contratos de trabalho decentes e estáveis, um salário mínimo para erradicar os baixos salários e acabar com a lógica neoliberal de que os únicos empregos que valem salários decentes são aqueles que produzem lucros para os super ricos.

A presença excessiva de mulheres trabalhadoras com contratos precários fará com que muitas delas percam os seus empregos

Está em curso uma luta nos locais de trabalho “não essenciais”, uma vez que os trabalhadores não estão preparados para correr o risco de serem infectados ou de infectarem as suas famílias, para manterem os lucros e exigirem esquemas técnicos de auxílio desemprego. Mas em muitos dos postos de trabalho fechados – setores fortemente feminizados, como o da hotelaria e o das lojas de produtos não-alimentares – os trabalhadores não têm contratos estáveis e foram expulsos do mercado de trabalho. Estão, na melhor das hipóteses, submetidos aos regimes de seguridade social e assistência social que têm sido esvaziados por décadas de subinvestimento e de dura austeridade, na sequência da crise financeira e econômica de 2008.

Em países como a Bélgica, os benefícios de desemprego ou de assistência social estarão bem abaixo do limiar da pobreza, sobretudo quando vivem em conjunto com um parceiro assalariado. As mulheres de todo o mundo têm sido as maiores vítimas da caça às bruxas dos desempregados, deixando-as sem direito a auxílio ou apenas com direito a uma ninharia. Um ataque maciço aos rendimentos das famílias da classe trabalhadora, deixou-as também mais dependentes dos seus parceiros, se os tiverem. As famílias monoparentais – 22% das famílias com filhos nos Países Baixos – estão condenadas à pobreza devido aos baixos salários e baixos subsídios, combinados com os elevados custos da habitação. As mulheres são a esmagadora maioria dos chefes de família monoparentais (90% na Grã-Bretanha, por exemplo).

Como a crise do Covid-19 conduz ao desenvolvimento mais rápido da crise econômica, muitas delas não encontrarão novos empregos, uma vez que um número significativo destas empresas fechadas, especialmente as pequenas empresas, irá à falência nos próximos meses.

Trabalhar em casa com as crianças presentes introduz o conceito de “esgotamento parental”

Com uma mudança maciça para o trabalho remoto para aqueles que são capazes de o fazer, muitos trabalhadores, na sua maioria mulheres, são agora confrontados com a necessidade de trabalhar em casa com os seus filhos presentes. Quando, em tempos normais, as mulheres enfrentam o trabalho doméstico depois do trabalho remunerado, recolhendo as crianças na escola, fazendo compras, preparando comida, lavando louça e roupa, ajudando as crianças com os trabalhos de casa, etc., muitos dos pais com filhos pequenos enfrentam agora ter de trabalhar nas suas horas de trabalho remunerado antes ou depois de longos dias cuidando dos seus filhos. Como mãe belga de duas crianças pequenas relatada na imprensa: “Eu coloco o alarme para às 4 da manhã para poder fazer algum trabalho”. Os blogues mostram muitas mulheres desesperadas sob a pressão, sentindo que já não conseguem fazer nada bem: não têmum bom desempenho no seu trabalho, sentindo-se ao mesmo tempo que são péssimas mães.

Segundo os números do Fórum Econômico Mundial, em tempos normais as mulheres desempenham 76,2% dos cuidados e serviços não remunerados na família. Isto faz parte de uma tradição de séculos: a opressão das mulheres começou com o afastamento das mulheres da esfera produtiva, colocando-as sob tutela e tornando-as dependentes do chefe de família masculino, como parte das sociedades de primeira classe, há dezenas de milhares de anos. Mas a sociedade capitalista adaptou a opressão das mulheres e o sexismo institucionalizado às suas próprias necessidades, recriando-a e reforçando-a todos os dias e em todos os campos da vida. Isso acontece pela falta de serviços acessíveis e de qualidade que permitam às mulheres trabalhadoras combinar trabalho e família. Também o faz quando os baixos salários das mulheres tornam lógico que seja a mulher no domicílio familiar a dar um passo atrás no trabalho remunerado quando os cuidados com os filhos exigem que um dos pais esteja mais em casa. Tradição e realidade material combinam-se para manter as mulheres nesta posição de trabalho não remunerado no âmbito doméstico.

O fechamento de escolas em muitos países aumentou enormemente o número de horas despendidas nesta parte da ” dupla jornada ” de trabalho das mulheres. Os sindicatos têm agora de aumentar a pressão para contestar a ideia de que os trabalhadores podem trabalhar simultaneamente as suas horas normais enquanto cuidam dos seus filhos em tempo integral. Como primeiro passo, o seu horário de trabalho tem de ser reduzido através da aplicação de um número de dias livres por semana sem perda de remuneração (e sem perda do usufruto das suas férias normais), reduzindo a produtividade que se espera deles. A longo prazo, esta maior consciência da responsabilidade parental deve ser utilizada para lutar pelo direito dos pais de estarem em casa sem perda de remuneração quando os seus filhos estão doentes ou não podem ir à escola, por estruturas de acolhimento de crianças gratuitas e de recreio público para crianças e jovens durante as férias escolares de verão.

O fato de a educação ser um desses setores da sociedade que tem sido devastado pela austeridade, com recordes de falta de pessoal batido ano após ano, torna os esquemas de ensino em casa que não esperam que os pais sejam os únicos professores dos seus filhos difíceis de pôr em prática, mesmo que os meios tecnológicos para o fazer estejam muito mais presentes do que alguma vez estiveram. Um setor altamente feminizado, muitas professoras encontram-se em casa com os seus filhos e não conseguem concentrar-se no desenvolvimento desses métodos durante o período de confinamento.

Os professores estão agora dando o sinal de alarme a grupos maciços de alunos e estudantes que são deixados para trás, os mais pobres entre eles não dispõem das ferramentas necessárias – computadores, conexão à Internet – para acompanharem e/ou não terem pais capazes de os ajudarem devido ao seu horário de trabalho, devido ao fato de não possuírem as competências necessárias, ou barreiras linguísticas. Enquanto nas décadas de 1960 e 1970 a democratização da educação nos países capitalistas avançados permitiu a muitos jovens da classe trabalhadora obter qualificações mais elevadas do que a geração dos seus pais, o sistema educativo reduzido dos dias de hoje não obtém tais resultados, enfatizando mais as diferenças sociais do que ajudando a superá-las. Esta crise vai agravar ainda mais as coisas.

Em muitos países, enquanto as aulas são canceladas, as escolas continuam abertas aos filhos dos trabalhadores essenciais. Mas muitas famílias recusam-se a colocar lá os seus filhos, devido à enorme insegurança que existe devido à falta de testes de coronavírus. As escolas terão de ser reabertas a dada altura, mas será necessário resistir à reabertura das escolas pelos governos de direita no interesse das empresas. A reabertura só poderá acontecer se puder ser feita em segurança, com testes em massa e repetitivos e proteção contra infecções, tanto para o quadro de funcionários como para os alunos. Deve ser desenvolvido um plano de reabertura com representantes dos trabalhadores, sindicatos, organizações de pais e estudantes – são eles que podem gerir a situação no interesse da sociedade e nãopara garantir lucros privados.

Enquanto eles não reabrem, um “Burnout parental” está em curso, com pais exaustos que desenvolvem um “esgotamento parental” generalizado, realizando pelo menos dois trabalhos em tempo integral durante semanas a fio. A Liga da Família, na Bélgica, escreve: “se esta situação durar muitos pais irão entrar em colapso e é preferível assegurar imediatamente um número de dias livres a serem tomados alternadamente pelos pais quando for possível, em vez de ser confrontado com uma série de esgotamentos dentro de algumas semanas (…) com os pais arriscando tanto o risco profissional como o de esgotamento parental”. (20 de março, Le Ligueur)

Ao lado dos riscos para a saúde mental dos pais, as instituições voltadas para atendimento infantil temem o aumento das tensões em muitas famílias, colocando as crianças em situação de risco. Para as famílias que já eram acompanhadas por serviços sociais devido a situações problemáticas, muitos desses serviços fecharam ou têm que trabalhar em circunstâncias muito difíceis. Vemos também os primeiros relatos de tensões crescentes vindas de jovens LGBTQI+, agora confinados com seus pais que não os aceitam.

A situação não é melhor para aqueles pais que trabalham em setores que ainda estão abertos. Não só no setor de saúde, mas também, por exemplo, no setor de distribuição de alimentos ou em serviços de limpeza, os trabalhadores estão hoje em dupla jornada, voltando para casa para ainda ter que cumprir suas tarefas domésticas com crianças que já estiveram na escola, mas sem ter tido aulas e precisando de atenção.

A violência doméstica atinge o auge quando as mulheres estão isoladas em suas casas com seus agressores

Já antes da eclosão da crise, a China Worker relatou uma pesquisa da Federação das Mulheres da China, controlada pelo regime, que constatou que 24,7% das mulheres casadas entre 24 e 60 anos de idade sofreram violência doméstica por parte dos cônjuges. “Menos de 4% das queixas de violência doméstica foram atendidas e menos de 20% dessas vítimas tiveram sucesso com a aplicação de uma medida cautelar”.

O isolamento em casa agora significa que elas estão trancadas com seus agressores. “As ONGs têm relatado um aumento da violência doméstica. A senhora Cao, uma mulher espancada pelo namorado na cidade sulista de Shenzhen, enviou para Weibo sua conversa com um mediador da polícia depois que ele a incitou a desistir do caso: “Ele tem um bom emprego”, diz ele. “Você quer mesmo arruiná-lo?” segundo a The Economist, 07 de março. Protesto de todos os tipos é fortemente reprimido pela ditadura, mas as mulheres chinesas são massivamente fulminantes on-line.

Em apenas um dos exemplos, a Blue Sky, uma ONG de combate à violência doméstica no município de Hubei, Lijian, recebeu um total de 175 denúncias de violência doméstica em fevereiro, três vezes o número de queixas recebidas em fevereiro de 2019. As restrições de viagem tornam ainda mais difícil do que em tempos normais escapar de seus agressores. Tribunais, aconselhamento e serviços jurídicos tornaram-se em grande parte inacessíveis e enquanto as vítimas podem apresentar queixas de violência doméstica online, aqueles que não estão familiarizados com a internet estão em desvantagem. Com a assistência às vítimas sendo em grande parte deixada para as ONGs, estas organizações expressam preocupação de que na presente crise, seguida pela crise econômica que já começou, é difícil conseguir os fundos necessários para ajudar as vítimas.

Não é diferente em outros países que se deparam com o surto do vírus. Nos EUA, a National Domestic Violence Hotline viu um número crescente de ligações de vítimas mesmo antes das medidas de confinamento. Katie Ray-Jones, chefe executiva da linha direta, relatou na revista Time que abusadores usam o surto do vírus para isolar suas vítimas ainda mais do que o normal. No estado brasileiro do Rio de Janeiro, a Justiça informou em 24 de março que houve um aumento de 50% nas denúncias de violência doméstica. Em um país que já tem uma taxa muito alta de violência doméstica, 33,46% de acordo com a OCDE, isso é um aumento muito alarmante.

No Estado espanhol, que tem visto movimentos maciços e greves contra a violência sexista nos últimos anos, as organizações e instituições de mulheres que lidam com o problema da violência doméstica estão extremamente preocupadas. A pressão dos movimentos dos últimos anos levou o governo das Canárias a lançar uma campanha para ajudar as vítimas, chamada Mascarilla-19. Os abrigos permanecem abertos, mas na situação atual é ainda mais difícil entrar em contato com as vítimas. Mascarilla-19 é um código que as vítimas podem usar quando vão à farmácia: você pede e deixa seu endereço para que os farmacêuticos entrem em contato com os serviços de ajuda. Em toda a Espanha, os tribunais permanecerão abertos e tratarão os relatórios de violência doméstica como uma prioridade.

Relatórios diferentes de vários países mostram como os abrigos para mulheres, na maioria dos países baseados em ONGs e não em instituições estatais, geralmente já estavam cheios antes de a pandemia se instalar. Na Bélgica, existem listas de espera em situações normais, o que significa que pode levar semanas e até meses até que um lugar esteja disponível. Não só elas estão cheias, mas em todo o mundo elas têm enormes dificuldades para manter o distanciamento social e tornar seus abrigos seguros.

Enquanto em alguns países os relatórios aumentaram, como nos EUA antes das medidas de fechamento, em muitos países os relatórios realmente diminuíram. Como muitas ONGs francesas envolvidas em ajudar vítimas de violência doméstica relatam que não é porque o problema diminuiu, mas porque seus abusadores estão em casa dia e noite, tornando extremamente difícil para as vítimas pedirem ajuda, como em tempos normais as vítimas geralmente chamariam serviços quando seus abusadores estão fora para trabalhar. Solfa, uma associação de mulheres em Lille, França, relatou no Le Monde (25 de março) que elas “não ousam telefonar para as mulheres que normalmente seguem por medo de correr o risco de expô-las”, agora seus abusadores podem estar em casa a qualquer momento. As associações de mulheres na França estão exigindo a identificação urgente de hotéis e outras instalações para ajudar as vítimas.

Será preciso pressionar para que sejam tomadas medidas de emergência para lidar com esta crise. O enorme estresse e insegurança em que grandes números de pessoas se encontram não só agravará a situação de mulheres e crianças em relacionamentos abusivos já existentes, como também corre o risco de criar problemas em relacionamentos que antes não eram abusivos.

Preparando para uma luta sobre quem irá pagar por essa crise!

No passado recente enfermeiros e outros funcionários do setor de saúde, trabalhadores do setor de distribuição, faxineiros, empregados de mercearia foram subvalorizados. Eles se depararam com uma pesada carga de trabalho, pois foram obrigados ano após ano a fazer mais trabalho com menos mão de obra. Esses setores tradicionalmente feminizados da força de trabalho são todos mal remunerados e enfrentam contratos precários. Hoje elas estão entre os heróis do país diante desta enorme crise de saúde. Políticos que hoje aplaudem hipocritamente os trabalhadores da saúde, amanhã, depois do primeiro pico do vírus, serão confrontados com as demandas dos trabalhadores por um salário digno, por maiores salários e melhores condições de trabalho nesses setores, incluindo mais trabalhadores, por um investimento público maciço em saúde com muito mais apoio de toda a classe trabalhadora.

O bombeamento maciço de dinheiro na economia para evitar o colapso total que agora começou em todo o mundo tem como objetivo principal manter a economia funcionando, em vez de reforçar o tecido social indispensável que estes setores proporcionam. Uma vez que o primeiro pico tenha passado, os pacotes de estímulo terão levado a dívida estatal a níveis novos e sem precedentes. A crise econômica já é mais profunda que a crise de 2008, assemelhando-se um pouco à depressão econômica da década de 1930. Por toda parte os trabalhadores, e especialmente os dos serviços públicos e de saúde, ainda estão pagando o preço da crise de 2008 e da dura austeridade que se seguiu.

establishment capitalista vai apresentar a conta desta nova crise à classe trabalhadora e às camadas mais pobres da população. Em muitos estados os governos obtiveram poderes especiais, medidas restritivas especiais foram introduzidas para impor distanciamento social, incluindo a proibição de protestos, manifestações e greves. Teremos que combater essas restrições quando elas forem usadas não para conter a disseminação do vírus, mas para conter protestos e raiva que se desenvolvem contra seus novos pacotes de austeridade.

Os trabalhadores dos setores altamente feminizados de saúde, educação e varejo estiveram na vanguarda das lutas da classe trabalhadora contra a austeridade que se seguiu à crise de 2008, o movimento de mulheres esteve na vanguarda de uma luta generalizada contra as políticas neoliberais em muitos países latino-americanos, no Oriente Médio e no Norte da África. A luta contra a Covid-19 vai empurrar temporariamente essas lutas para segundo plano, pois as pessoas comuns agora têm que reorganizar suas vidas no combate à disseminação do vírus. Mas essas lutas voltarão com intensidade assim que o primeiro período de caos tiver terminado.

As feministas socialistas terão que se organizar para defender as demandas das trabalhadoras por investimentos maciços nesses empregos não-lucrativos, mas absolutamente indispensáveis. A mensagem deve ser clara: o trabalho de cuidado não pode ser mercantilizado nem colocado em um regime em que ele perca grande parte de sua eficiência para as amplas camadas da população! Elas terão que apresentar demandas e estratégias para as lutas com base nessa nova consciência sobre o papel do trabalho feminino – remunerado e não remunerado – nos locais de trabalho, na família e nas comunidades, pois todos os relatórios mostram que nos muitos grupos de assistência espontânea que estão sendo criados as mulheres constituem a maioria das ajudantes, elas terão que ajudar a ampliar a compreensão da situação de dupla opressão (como mulheres e como trabalhadoras) e violência a que as trabalhadoras estão sujeitas sob o capitalismo.

Os partidos capitalistas e suas figuras públicas feministas não terão respostas, pois o reforço e uma maior valorização do trabalho feminino cortariam os lucros para a minúscula minoria de bilionários que elas defendem e representam. Precisamos fazer passar a mensagem de que só um mundo em que as necessidades da população sejam atendidas coletivamente será capaz de lidar eficientemente com tais crises de saúde. Somente uma sociedade assim será capaz de emancipar a maioria das mulheres. Tal sociedade só pode ser uma sociedade socialista, na qual a classe trabalhadora une todas as camadas oprimidas por trás de uma luta para tirar o controle das mãos da classe bilionária, para planejar a produção mundial para satisfazer as demandas do mundo. Esse é o mundo pelo qual lutamos – hoje muitas vezes isolados em nossas casas, amanhã de volta às ruas!

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