O capitalismo corre para reabrir à medida que a pandemia cresce

Em todo o mundo, os países estão levantando as restrições que foram introduzidas para conter a pandemia da Covid-19. As pessoas estão sendo autorizadas a sair de suas casas, e os locais de trabalho, bares e lojas estão reabrindo.

Os fechamentos incisivos da sociedade e da economia foram necessários para reduzir o nível de infecção e morte pelo vírus, apenas devido à resposta nos primeiros momentos inadequada ou inexistente dos governos e patrões. Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para a Covid-19 em janeiro, a maioria dos governos de todo o mundo nada fizeram. Alguns, como Trump e Bolsonaro, rejeitaram-na. Em 7 de março, Trump disse: “Não, não estou nada preocupado. Não, não estou nada. Não, fizemos um grande trabalho”. Em 24 de março, Bolsonaro comparou o coronavírus a uma “gripezinha”, acrescentando que “os brasileiros não apanham nada … já têm os anticorpos para impedir a sua propagação”. Os EUA, seguidos pelo Brasil, têm agora o maior número de infecções e mortes.

Outros governos como da Suécia e Grã-Bretanha falaram em permitir a “imunidade de rebanho” para lidar com a pandemia, uma ideia sem base científica sólida e uma receita para mortes em massa. Mas mesmo governos com uma abordagem menos escandalosa, como o do Canadá, responderam muito pouco e demasiado tarde. Alguns governos como Taiwan, Cuba, Islândia e Coreia do Sul tomaram medidas rápidas e evitaram tanto bloqueios severos como grandes fatalidades, embora possam ocorrer novos surtos também nesses lugares.

Não surpreende que governos populistas de direita, hostis à ciência, tenham tido os piores casos do mundo. Metade de todos os casos e mortes no mundo tem sido sob o controle de Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Putin na Rússia, Johnson na Grã-Bretanha e Modi na Índia.

Condições pré-existentes, como poluição atmosférica, sistemas de saúde pública ruins e alterações climáticas, tornaram o impacto da Covid-19 muito pior do que era necessário. O capitalismo comprometeu o sistema imunitário da humanidade, enfraquecendo a resposta ao vírus. A falta de reservas de equipamento de proteção pessoal (EPI), habitações superlotadas, e casas de idosos com falta de pessoal e mal preparadas, contribuíram para as mortes.

Richard Horton, editor-chefe do The Lancet descreveu as mortes como não “infelizes”, nem “desafortunadas, inadequadas, ou mesmo lamentáveis”, como muitas vezes descrito pelos governos. “Cada morte foi prova de má conduta do governo – atos imprudentes de omissão que constituíram violações dos deveres dos cargos públicos… Oportunidades perdidas e decisões erradas apavorantes estavam levando à morte evitável de dezenas de milhares de cidadãos”.

Abertura

A pandemia de Covid-19 está longe de estar sob controle, está se alastrando e o número de casos está aumentando. A OMS informou que domingo, 21 de junho, foi o pior aumento em um único dia de casos de coronavírus, com mais de 183 mil novos casos confirmados em 24 horas, o que foi sem dúvida uma subestimação. No entanto, os governos de todo o mundo estão suspendendo as restrições à circulação de pessoas e pondo fim aos fechamentos de serviços. Isto é largamente apresentado de forma positiva: as pessoas podem cortar o cabelo, ir a um parque ou encontrar alguns amigos. No entanto, por detrás desta narrativa encontra-se uma pressão de grandes corporações.

As grandes empresas e seus governos estão fazendo uma aposta calculada com a vida das pessoas. Muitos países estão reabrindo mesmo enquanto os casos da Covid-19 continuam aumentando. Em estados estadunidenses como o Arizona, Texas e Alabama, que reabriram em maio, o número de novos casos está crescendo rapidamente.

Não só a Covid-19 não está sob controle, como a maioria dos países ainda carece de recursos adequados para testar e localizar novos casos e a escassez de equipamento de proteção continua generalizada. A reabertura é baseada num cálculo frio de lucros e perdas, lucros para os negócios e perdas de vidas humanas.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico declarou que o mundo enfrenta a pior recessão global em quase um século. O Banco da Inglaterra afirma que a economia britânica está a caminho do seu pior colapso em mais de 300 anos, desde 1706!

A concorrência brutal entre empresas e economias nacionais está impulsionando a reabertura. Os primeiros a abrir esperam ganhar vantagem sobre outros e assim obter uma cota maior do mercado menor que tem sido devastado pela depressão mundial.

As pessoas que são enviadas de volta ao trabalho não são executivos, banqueiros e os outros membros do 1%. Muitos trabalhadores essenciais e outros em setores “essenciais” menos imediatos, tais como construção, nunca deixaram de trabalhar. Justo a eles irão se somar trabalhadores da manufatura, varejo, etc. Como Tim Bray, recentemente demitido do cargo de executivo da Amazon, explicou: “As pessoas que falam da necessidade urgente de reiniciar a economia não estão elas próprias se oferecendo para sair e trabalhar. Estão dizendo: “Vocês, abelhas operárias, voltem e enfrentem a Covid-19, e vamos ver como isso funciona”.

Muitas pessoas estão compreensivelmente relutantes em voltar ao trabalho, ir a restaurantes ou mandar seus filhos à escola, a menos que a realidade econômica os obrigue a isso. O governo canadense, geralmente visto como estando no campo que mais leva enconta a questão sanitária do espectro internacional, introduziu auxílio emergencial para a maioria das pessoas. Agora procura coagir as pessoas a voltar ao trabalho, com planos para cortar os pagamentos se uma pessoa não voltar ao trabalho quando “é razoável fazê-lo” ou se forem capazes de trabalhar, mas se recusarem uma oferta de emprego razoável.

Lockdown: um alerta do que está por vir

Uma mulher, recentemente despedida do trabalho devido à Covid-19, foi multada em Otawa em 880 dólares por se sentar num banco durante as restrições da Covid-19. Um homem na mesma cidade recebeu a mesma multa por passear com seu cão. Entretanto, agentes de saúde governamentais em Alberta facilitaram a reabertura de um local de trabalho que deu origem a 1,5 mil casos de Covid-19 e três mortes. A empresa, Cargill, não foi sequer multada.

Em outros países, as coisas são ainda piores. Na Itália, mais de 100 mil pessoas foram multadas por estarem na rua. Os locais de trabalho foram autorizados a permanecer abertos e ajudaram a alimentar o desastre da Covid-19 na Itália. Em vários países, incluindo as Filipinas e o Quênia, a polícia matou pessoas inocentes.

A aplicação dos lockdowns, reprimindo os trabalhadores e o público enquanto se dá um livre-trânsito às grandes empresas, será repetida durante a reabertura.

Os trabalhadores que se recusarem a trabalhar devido a preocupações de segurança, terão de enfrentar uma redução de seu auxílio emergencial. Todas as empresas serão obrigadas por lei a ajustar o local de trabalho para um distanciamento seguro, fornecer vestuário de proteção, álcool em gel e haverá testes regulares de infecção? Estão previstas poderosas ações de segurança para as principais ligas desportivas, então porque não a mesma proteção para os trabalhadores? Estas proteções não foram aplicadas durante a primeira onda da pandemia, e é muito pouco provável que sejam aplicadas na reabertura.

Policiais vs enfermeiras

As ruas de todo o mundo têm sido preenchidas com polícias com armadura de corpo inteiro. A classe dominante preparou-se claramente para alguns eventos, gastando grandes somas de dinheiro para equipar a polícia com coletes, gás lacrimogêneo e carros blindados. No entanto, mesmo agora, meses após o início da pandemia da Covid-19, os trabalhadores da saúde ainda não dispõem de equipamento de proteção. A prioridade dos capitalistas é claramente a repressão e não a proteção. Os trabalhadores da saúde podem ser “heróis”, mas são “heróis” descartáveis. A polícia totalmente blindada atacou um protesto de enfermeiras na França em 16 de junho.

Trump mobilizou a guarda nacional em poucos dias para atacar comícios pacíficos exigindo o fim dos assassinatos policiais. Em contraste, a resposta do governo dos EUA à Covid-19 continua a ser um desastre lamentável.

Novo jogo da culpa

As classes dirigentes já estão preparando sua narrativa para a segunda onda da Covid-19, que sabem que está chegando, à medida que reabrem a sociedade sem proteção, teste ou rastreio adequados.

Culparão o público irresponsável por não manter dois (ou um) metros de distância. Ao longo da Covid-19 houve sempre uma lei para os ricos e outra para os pobres e a classe trabalhadora. “Nós” nunca “estivemos juntos nisto”.

É claro que a maioria das pessoas dará boas vindas à reabertura. Nos países pobres, onde o governo não providenciou uma rede de segurança, ir trabalhar é essencial para ganhar salários para pagar comida e abrigo. Ficar em casa é muito mais fácil para os ricos do que para as pessoas pobres. Se a mesa da cozinha é agora a mesa de jantar, o local de trabalho e a sala de aula, as coisas podem ser muito mais difíceis do que em casas com mais espaço. Para outros, ser forçado a ficar em casa é um pesadelo, especialmente pessoas em situações abusivas, como foi visto no mundo inteiro com o aumento de casos de violência contra mulheres. 

Para os adolescentes, pode ser miserável ficar preso em casa com pais que não os compreendem. Estar preso num pequeno apartamento sem qualquer acesso ao ar livre é como uma prisão, em comparação com uma casa com algum espaço exterior. Muitas das políticas relacionadas com a Covid-19 foram escritas por pessoas sem qualquer compreensão da realidade da vida de milhões; e depois quebram frequentemente as próprias regras que são impostas aos outros. Um exemplo é Dominic Cummings, o conselheiro de Boris Johnson, que viajou por toda a Inglaterra durante o lockdown, desafiando as regras do governo.

O público será acusado para esconder as verdadeiras causas, o que inclui a reabertura prematura dos locais de trabalho em condições em que os trabalhadores não podem manter dois metros de distância, a falta de testes rápidos em massa e, em seguida, o rastreio dos contatos e o fornecimento universal de máscaras e equipamento de proteção. 

A maioria dos países que estão reabrindo têm tido algum nível de fechamento do trabalho, lockdown ou políticas de permanência em casa durante vários meses. Durante esse tempo, um governo responsável teria trabalhado a todo o vapor para desenvolver e produzir em massa um teste de alta qualidade para que houvesse testes gratuitos em cada comunidade, bairro, local de trabalho, etc. A Coreia do Sul desenvolveu um teste e produziu em massa os kits de teste em meados de fevereiro. Meses mais tarde, o Canadá, e muitos outros países, ainda carecem da capacidade de realizar testes em massa. Da mesma forma, as máscaras, mesmo as de grau elevado N95, não são caras de fazer. No entanto, os bombeiros no Ontário não têm máscaras e usarão máscaras respiratórias ligadas a tanques de oxigénio – pesando 15 quilos – a quaisquer chamadas que representem um risco de infecção por Covid-19.

Os países estão se abrindo totalmente despreparados e plenamente conscientes de que haverá uma segunda onda. Muitos países ainda estão tentando lidar com a primeira onda e abrem-se sabendo que a primeira onda irá subir mais alto. Uma segunda onda ou uma subida acelerada da primeira onda, será muito mais difícil de suportar. Muitas mais pequenas empresas serão forçadas a fechar. As pessoas ficarão zangadas porque todo o sacrifício de distanciamento físico e isolamento durante meses foi em vão e foi desperdiçado na pressa de obter lucros sem os testes adequados e equipamento de proteção.

Reconstruir a economia sobre novas bases

Enquanto os políticos falam em reabrir a economia, as empresas estão deixando claro que isto significa um regresso ao mundo antes da Covid-19. Durante meses, muitos trabalhadores do comércio varejista têm sido chamados de “heróis” e, no Canadá, receberam 2 dólares adicionais por hora. Agora, os super-ricos estão cortando isto. O homem mais rico do mundo quer mais dinheiro para si mesmo, então a Amazon cortou o salário dos seus trabalhadores. A família Weston, a segunda família mais rica do Canadá e a família mais rica da Irlanda, proprietária do Loblaws, também cortou o salário dos trabalhadores.

Um conhecido jornalista canadense de direita, Andrew Coyne, escreveu que, em vez de uma jornada de trabalho mais curta para pôr a economia para funcionar, “vamos precisar de todos trabalhando a todo momento – não apenas cinco dias [por semana], mas seis ou sete – apenas para pagar as contas do governo”. Ele refere-se certamente aos trabalhadores, não aos patrões, e sem uma sugestão de impostos mais elevados sobre os super-ricos.

No entanto, grande parte da economia não será reaberta. O mundo está agora sob o efeito de uma depressão. A Covid-19 desencadeou esta depressão, mas o mundo já estava à beira, pelo menos, de uma profunda recessão no início deste ano.

Os capitalistas só empregam trabalhadores se os patrões estiverem confiantes de que podem ter lucro. Com milhões enfrentando o desemprego de longa duração e muitos mais preocupados com o futuro, os consumidores, muitos já sobrecarregados com enormes dívidas, não gastarão tanto como no passado. 

O outro motor do capitalismo é o investimento por parte das empresas. Em muitos setores de produção já existia um excesso de capacidade, a capacidade de fazer mais do que é utilizado. A sobrecapacidade de aço está estimada em mais de 500 milhões de toneladas. Isto é cinco vezes mais do que o Japão, o segundo maior produtor mundial depois da China, produz. Em 2019, fábricas de automóveis de todo o mundo construíram 89 milhões de veículos com uma capacidade de construção de 148 milhões. Existem números semelhantes para muitas áreas de produção. Nestas circunstâncias, não importa quanto dinheiro os governos entregam aos bancos e à indústria, não investirão significativamente na produção. Em face de uma queda acentuada da procura por parte dos consumidores e para investimento, o que irá reiniciar a economia?

O capitalismo não estava funcionando antes da Covid-19 e se mostrou falho na pandemia. Em vez de uma reabertura prematura e orientada para o lucro, a economia precisa de reconstrução. O setor público terá de ser um poderoso motor da atividade econômica e de emprego, através de políticas socialistas.

As principais características da reconstrução incluiriam:

  • Grande taxação das grandes fortunas e empresas super-ricas e encerramento de todos os paraísos fiscais para angariar os fundos necessários.
  • Transformar setores-chave da economia em propriedade pública, incluindo o financeiro, a internet, a indústria energética, os transportes e os serviços públicos privados, sob controle democrático.
  • Um sistema de saúde pública abrangente, universal, integrado com a assistência social.
  • Um programa de emprego para proporcionar empregos sindicalizados bem remunerados que se concentrem na satisfação das necessidades humanas e do meio ambiente, incluindo uma mudança para energias renováveis, um programa de construção e remodelação de casas em massa, e a modernização da rede ferroviária para passageiros e carga.
  • Controle democrático do trabalho e da sociedade.

Naomi Klein em “A doutrina de choque” argumentou que a classe dominante utiliza choques e desastres para fazer avançar a sua agenda. O mundo certamente já passou e enfrenta múltiplos choques – Covid-19, depressão mundial e mudanças climáticas. No entanto, os resultados dos choques nem sempre favorecem a classe dirigente. Estamos assistindo uma luta de classes. A raiva que se instalou abaixo da superfície tem explodido, com revoltas maciças em resposta aos assassinatos policiais de negros estadunidenses e outros assassinatos policiais em todo o mundo.A Primeira Guerra Mundial foi um grande choque e inicialmente a classe dominante se beneficiou com a unidade nacional e os líderes dos trabalhadores abandonaram a luta. Contudo, três anos mais tarde, a classe operária russa derrubou a monarquia e depois tomou o poder. Isto proporcionou uma centelha inspiradora para a raiva que se instalou após quatro anos de massacre da guerra e de fome e sofrimento em massa.

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