Isolamento, estresse e pobreza: capitalismo e o declínio de nossa saúde mental

Milhões de pessoas comuns estão passando por um furacão de crises cada vez mais intensas: COVID-19, isolamento social, desemprego, despejos, colapso climático e insegurança alimentar. Por isso não é surpreendente que as pessoas estejam lutando para enfrentar esta realidade.

Em agosto, o Centro de Controle de Doenças dos EUA publicou um relatório afirmando que uma entre cada quatro pessoas jovens considerou se suicidar nos últimos 30 dias. Em junho, 10% de toda a população dos EUA considerou seriamente se suicidar.

O capitalismo é uma ameaça direta ao bem-estar físico e mental de bilhões de trabalhadores e jovens que fazem a nossa sociedade e nossa economia funcionarem. A pandemia intensificou e acelerou esta realidade.

A crise de saúde mental

Por anos, os números de diagnósticos de depressão grave estão crescendo. Aproximadamente 1 entre cada 5 adultos nos EUA vive com uma doença mental. As mortes por suicídio cresceram aceleradamente desde os anos 2000, especialmente entre mulheres, e esta é a segunda maior causa de mortes entre pessoas que têm entre 10 e 34 anos.

Sintomas de problemas de ansiedade e depressão, assim como abuso de substâncias químicas cresceram dramaticamente entre abril e junho deste ano. Entre estudantes do ensino médio ocorreram mais mortes por suicídios e overdose de drogas do que por COVID-19 – um dado que revela não o fato de que o contágio por COVID-19 esteve contido, mas sim a gravidade das doenças mentais graves. 

Nos últimos três anos, a expectativa de vida média nos EUA decresceu, especialmente por causa de mortes por suicídio, overdose de drogas e doenças associadas ao consumo de álcool. Uma redução na expectativa de vida não ocorria desde a I Guerra Mundial e a epidemia de gripe que a sucedeu.

A crise na saúde mental é de uma escala incomensurável e está piorando exponencialmente. Porém, menos da metade das pessoas com doença mental recebem apoio. Em um estudo de 2018, 74% das pessoas não acreditavam que os serviços de saúde mental eram acessíveis e uma a cada quatro pessoas relatavam que precisava escolher entre tratamentos de saúde mental e pagar por necessidades cotidianas.

Mesmo assim, 60% das cidades nos EUA (em regiões rurais o número vai para 80%) não possuem um único psiquiatra em exercício. Mesmo aonde existem cuidados de saúde mental, dezenas de milhões de pessoas não possuem planos de saúde e não podem pagar pelos custos. Atualmente, milhões de pessoas perderam convênios pagos por seus empregadores por causa das demissões na pandemia da COVID-19 e, assim, perderam acesso aos serviços de atenção à saúde.

Atenção à saúde mental no capitalismo

O acesso aos cuidados de saúde mental, para quem tem acesso, normalmente ocorre na forma de medicalização. Uma em cada 10 pessoas nos EUA toma antidepressivo. Porém, menos de um terço daqueles que tomam antidepressivos foram atendidos por um profissional de saúde mental em algum período do último ano.

Antidepressivos e outras medicações para a saúde mental podem salvar vidas e melhoram dramaticamente a qualidade de vida das pessoas. Mas são apenas uma parte da equação. Infelizmente, a influência da indústria farmacêutica resultou no fato de que a medicação é a primeira e, frequentemente, última resposta para o sofrimento mental, apesar de inúmeras pesquisas demonstrarem os resultados positivos de tratamentos alternativos.

Estudos sobre tratamentos de saúde mental que não são baseados em drogas raramente recebem financiamento. A indústria farmacêutica financia pesadamente a Associação Psiquiátrica Americana (APA) e representantes da indústria ocuparam 69% do grupo de trabalho da APA que produziu a versão mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). O DSM-5 é a “bíblia” da psiquiatria e da psicologia; ele define a doença mental e sugere os tratamentos. Não é uma coincidência que o manual recomende amplamente tratamentos com medicação.

Com a busca por lucro na atenção à saúde, os interesses financeiros da indústria farmacêutica e dos convênios ou companhias de seguro sempre virão antes da busca por saúde do público em geral. O objetivo deles é maximizar lucros e reduzir custos.

O outro desdobramento da atenção à saúde mental no capitalismo dos EUA é o encarceramento. A Aliança Nacional sobre Doença Mental estima que por volta de 40% dos adultos encarcerados em prisões federais e estaduais receberam o diagnóstico de alguma doença mental. A penitenciária de Cook em Chicago pode, por causa da quantidade de pessoas com doença mental que estão lá, ser considerada a maior instituição de saúde mental nos EUA.

Durante uma crise de saúde mental, as pessoas estão mais propensas a enfrentar a intervenção policial do que receber tratamento médico. Isto foi dolorosamente demonstrado quando a polícia da Philadelphia atirou e assassinou Walter Wallace Jr., após a família deste recorrer ao 911[1]para pedir por assistência em uma crise de saúde mental. O Departamento de Polícia da Philadelphia não possui qualquer unidade que lide com saúde mental (apenas alguns departamentos possuem) e, por isso, o resultado é a morte ou o encarceramento desproporcional de pessoas negras que apenas precisam de tratamentos de saúde. 

Um ponto de partida para resolver a epidemia de doenças mentais nos EUA seria o estabelecimento do “Medicare[2]para todos” oferecendo um sistema de saúde de qualidade, gratuito e com serviços de saúde mental. Ao invés de despejar bilhões recolhidos por impostos nos bolsos de companhias privadas de seguro ou penitenciárias privatizadas, imagine se os recursos poderiam ser dirigidos para pesquisas úteis e o desenvolvimento de novas alternativas de tratamento para doenças físicas e mentais. Poderíamos dar saltos na busca por controlar a aguda crise de saúde mental que existe hoje.

É importante destacar que somente esta ação não seria o suficiente. O tratamento de doenças mentais deve ser visto em uma perspectiva de totalidade. Além de aliviar algumas das manifestações mais graves de sofrimento mental, podemos, de fato, superar doenças mentais amplamente disseminadas sem mudar as condições que as criaram? Por exemplo, pobreza, habitação, fome, desemprego ou insegurança no trabalho, inexistência de creches, racismo, sexismo e violência.

Como é o tratamento para uma mulher em uma relação abusiva que não pode sair dela porque não consegue cobrir despesas com moradia? O que dizer para quem trabalha em um restaurante de fast-food que enfrenta assédio sexual e um emprego extenuante e degradante e não pode pedir demissão porque precisa do dinheiro para sustentar sua família? Como curar a ansiedade de um homem negro que se pergunta se ele pode ser o próximo a ser morto por um policial em seu carro, sua casa ou comunidade? Como enfrentar o suicídio de uma geração que enfrenta conflitos existenciais frente às crises econômicas e ambientais?

As raízes capitalistas da crise de saúde mental

Desde que o capitalismo existe, a classe trabalhadora e sindicatos lutam para proteger sua saúde das condições criadas por uma sociedade que busca cegamente o lucro. Nos locais de trabalho, isto significou conquistar vitórias como a jornada de trabalho de 8 horas no início do século XX ou lutar por uma reabertura segura das escolas durante a pandemia de COVID-19 em 2020. As lutas continuam até hoje, pois precisamos permanentemente lutar contra as condições exploradoras que nos fazem adoecer fisicamente e mentalmente. Lutar contra chefes abusivos, ambientes de trabalho tóxicos, longas jornadas de trabalho, ausência de benefícios ou salários rebaixados é parte da luta por nossa própria saúde mental. 

A busca incessante por lucro no sistema capitalista faz com que a maioria das pessoas tenham que trabalhar para sobreviver, pois não temos acesso garantido a alimentos, água, habitação ou serviços de saúde. Apenas uma minoria é proprietária de fábricas e empresas em que a maioria trabalha. Tal como os marxistas destacam, os capitalistas não precisam trabalhar para sobreviver, pois exploram trabalhadores e os recursos naturais de nosso planeta para produzirem enormes somas de dinheiro. Capitalistas, constantemente, tentam reduzir salários, cortar benefícios e eliminar medidas de segurança para acelerar a produtividade e utilizar materiais mais baratos que destroem o meio ambiente para enriquecer.

Trabalhadores e jovens não se apropriam dos produtos de seu trabalho: os capitalistas nos dizem o que produzir, como produzir e para quem produzir. Para a maior parte das pessoas, o trabalho é algo que precisamos engolir porque é necessário pagar as contas. Karl Marx usou o termo “alienação” para descrever a realidade criada pelo capitalismo em que aqueles que precisam trabalhar para sobreviver são alijados daquilo que produzem ou do processo de produção. Esta ausência de controle e capacidade de conduzir produz sofrimento: esperamos as ordens de alguém que toma decisões a partir da busca por lucro e não das necessidades dos trabalhadores e que, definitivamente, não consideram nossa saúde.

Então, lutar por mudanças no local de trabalho ou por reformas como o “Medicare para todos” – elementos que teriam um efeito muito positivo sobre nossa saúde mental coletiva – sem considerar o sistema capitalista como um todo torna impossível imaginar um mundo livre de doenças mentais endêmicas. A desigualdade social é produzida pelo sistema capitalista e é determinante na crise de saúde mental. Os autores do livro O nível: Por que uma sociedade igualitária é melhor para todos”[3]demonstram que as desigualdades de riqueza e renda são os principais determinantes do bem-estar social e da qualidade de vida. Isto não ocorre apenas porque a população pobre diminui a média do bem-estar, pois mesmo as pessoas ricas vivem pior em sociedades mais desiguais.

A desigualdade cria insegurança: quando você não possui uma rede de proteção e quando você percebe que o fundo do poço é profundo, aparece o medo de desabar. A insegurança produz estresse constante e este provoca diversas doenças mentais e físicas. Pesquisas da Revista de Ciência biossocial (Journal of Biosocial Science), demonstram que em sociedades menos desiguais, as pessoas com predisposições genéticas para doenças mentais e físicas estão menos propensas a adoecer do que aquelas que vivem em sociedades mais desiguais e que provocam níveis mais elevados de estresse.

O capitalismo também é um terreno fértil para o racismo, sexismo, homofobia e transfobia. Tudo isso e outras formas de opressão nem sempre fez parte da história da humanidade. São processos que existem de forma particular no sistema capitalista e funcionam para alimentar a hiperexploração de grupos oprimidos e para dividir a classe trabalhadora e a juventude. As formas capitalistas de opressão fazem com que negras e negros, mulheres, pessoas LGBTQ+, com deficiência e outros grupos oprimidos sejam mais pobres e mais propensos ao desemprego, o despejo, privados de habitação, jornadas de trabalho mais longas e, sim, sofrer com doenças mentais.

Apesar de existirem fatores genéticos e biológicos, a existência de exploração, alienação, desigualdade, estresse, violência e os traumas do capitalismo está na raiz da crise de saúde mental atual. A pandemia de COVID-19 apenas catalisou processos de nossa sociedade: dezenas de milhões enfrentam o desemprego, o despejo e a fome. Trata-se de condições sociais que produzem estresse, trauma, negligência, abuso, dependência de drogas e colapso mental. 

Não precisa ser assim

Os seres humanos são criaturas sociais – a chave para a sobrevivência e a evolução de nossa espécie foram os laços sociais e o desenvolvimento da linguagem para a comunicação. Porém, desde a Revolução Industrial e a migração massiva do campo para a cidade, fomos, cada vez mais, fragmentados e atomizados. Os atributos do capitalismo descritos anteriormente intensificam tal processo. Inúmeras pesquisas demonstram que a existência de uma boa rede de apoio é a proteção mais efetiva para evitar consequências graves criadas por eventos traumáticos.

É óbvio que os capitalistas sabem disso e que a existência de laços sociais cria ameaças ao sistema deles. Patrões odeiam sindicatos, pois estes agrupam trabalhadores para lutar coletivamente por condições de trabalho melhores e mais seguras, além de questões políticas mais amplas. Políticos que atuam em favor dos patrões dizimando financiamento para centros de assistência social e escolas públicas. Historicamente, sempre foram os movimentos de massas da classe da trabalhadora, da juventude e dos grupos oprimidos que derrubaram tiranos e mudaram a organização da sociedade.

No socialismo não existe necessidade de desemprego e dos efeitos destrutivos que ele produz no capitalismo: podemos reduzir a jornada de trabalho sem perdas salariais, ampliando o tempo que as pessoas têm para dedicar aos seus amigos e famílias, exercícios físicos, atividades de lazer, cozinhar refeições saudáveis – tudo isso é crucial para o bem-estar mental. Nós poderíamos devolver o emprego para milhões de pessoas e construir uma sociedade e um setor energético ambientalmente sustentáveis, assim como reflorestar o planeta, formar trabalhadores do campo da saúde mental, educadores e muito mais.

A atenção à saúde, alimentos e habitação estariam garantidos. Os trabalhadores poderiam tomar decisões em seus locais de trabalho: trabalhadores da construção civil deixariam de construir apartamentos luxuosos que não poderiam comprar e trabalhadores da saúde não teriam que ficar preenchendo uma papelada interminável ao invés de dedicar seu tempo para seus pacientes.

A experiência generalizada e profunda de sofrimento mental não é uma condição eterna da sociedade humana e no socialismo ela seria reduzida significativamente. A crise de saúde mental é um sintoma de um sistema capitalista profundamente enfermo que só piora. É urgente lutar por uma expansão massiva de serviços de saúde mental acessíveis e gratuitos para todos. Isto inclui a medicação daqueles que precisam deles, mas também significa fundamentalmente oferecer serviços terapêuticos para grupos e indivíduos.

Mesmo que todas as pessoas que sofrem com doença mental tenham acesso a serviços de saúde mental, isto ainda não supera a necessidade de mudar as condições materiais vividas pela maioria das pessoas. A luta por serviços de saúde mental pujantes precisa estar ligada com a luta por “Medicare para todos”, moradia acessível, empregos gerados por um Novo Pacto Ambiental (Green New Deal) e financiamento integral de escolas e centros comunitários. 

Enquanto a alienação e o isolamento criados pelo capitalismo nos adoecem, a luta por uma sociedade mais saudável exige massiva participação, cooperação e vinculação da classe trabalhadora e da juventude. Uma das experiências mais gratificantes para os seres humanos é a luta coletiva por um mundo melhor, em que podemos unificar raça, gênero, sexualidade e a capacidade de lutar pelo que é certo. Desde 2018, há uma onda de greves e lutas que vão desde a greve de educadores até protestos em defesa do meio ambiente, passando pela rebelião do Vidas Negras Importam. Aqueles que participaram nessas ações ou viram esses movimentos sabem que a solidariedade e a unidade inquebrantveis que são forjadas na luta podem superar a alienação e a miséria capitalistas. 

Um movimento de massas será necessário para superar este sistema explorador e para construir uma sociedade socialista e sustentável que é democraticamente dirigida pela classe trabalhadora e a juventude para satisfazer as necessidades de todos, colocando a saúde física e mental como prioridade central do processo de organização da sociedade.

Nós lutamos por:

  • Medicare (saúde pública) para todos nos EUA, incluindo cobertura total para serviços de saúde mental de qualidade.
  • Taxação das grandes fortunas e corporações para massivamente financiar a atenção à saúde mental, o que inclui organizações comunitária voltadas para a saúde mental e criação de serviços terapêuticos em todas as escolas. O dinheiro também será usado para financiar escolas, centros comunitários e atividades ou projetos culturais e artísticos.
  • Investir massivamente em moradia acessível e lutar pela regulação universal dos valores de aluguel. Suspensão do pagamento de aluguéis e empréstimos durante a pandemia de COVID-19 e ampliar a moratória federal e local de pessoas ameaçadas com despejo.
  • Um Novo Pacto Verde já! Devolver o emprego para milhões de trabalhadores e construir um setor energético renovável assim como uma infraestrutura sustentável com a climatização de residências e expansão massiva do transporte público. Reduzir a emissão de carbono dos EUA a 0 o mais rápido possível.
  • Estatizar a indústria farmacêutica sob gestão democrática para iniciar investimentos em pesquisas por tratamentos alternativos e holísticos às doenças mentais. Sob a direção democrática e com a estatização, a indústria farmacêutica deverá priorizar o rápido desenvolvimento e a distribuição de vacinas para a COVID-19.
  • Lutar por uma sociedade socialista que garanta habitação, atenção à saúde, alimentação e abrigo para todos e criar, assim, as bases para superar, de uma vez por todas, o racismo, sexismo, homofobia, transfobia e todas as formas de opressão.
  • O capitalismo é uma ameaça a nossa saúde: precisamos lutar por uma sociedade socialista em que a classe trabalhadora e a juventude dirijam e planifiquem a economia a partir das necessidades sociais e em que o trabalho é compartilhado para eliminar o desemprego e reduzir a jornada de trabalho com a finalidade de ampliar o tempo para suas famílias e atividades de lazer. Nesta sociedade a saúde física e mental é prioridade central da organização da sociedade.

[1]O 911 é o número de emergência unificado dos EUA que serve para demandar serviços que, no Brasil, podem ser atendidos pelo 190, 192 e 193 (polícia, bombeiros e SAMU)

[2]Medicare é o conjunto de serviços de saúde que são financiados pelo governo dos EUA. O Medicare é destinado apenas para pessoas com idade igual ou maior que 65 anos e, mesmo após a ampliação do Medicare aprovada durante o governo de Obama, aquele exclui tratamentos de longa duração, ações preventivas, tratamentos contra o câncer etc.

[3]Publicado no Brasil pela Editora Civilização Brasileira.

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