Manifestações populares derrubam governo ilegítimo de Merino no Peru
O governo interino de Manuel Merino, congressista que liderou a derrubada do presidente Martín Vízcarra, foi confrontado, em várias regiões do país. Milhares de peruanos, seja em Lima, Arequipa, Trujillo, Ayacucho, Cusco, Chimbote, Abancay, Tacna, Huancayo, Tumbes e em outras cidades, repudiaram o golpe efetuado pelo Congresso e levantaram palavras de ordem do tipo “Não é por Vizcarra, é por nós”. Há total descontentamento com a caótica situação política do país, imerso na lama da corrupção e que não dá resposta aos problemas estruturais do país.
As manifestações lograram a renúncia do golpista Merino. A luta do povo peruano, mesmo sofrendo repressão intensa que levou dois manifestantes à morte, conseguiu abortar o golpe, o que significa uma importante vitória para a mobilização popular. Mas isso não é suficiente! É fundamental a continuação das mobilizações, em torno de bandeiras que elevem o patamar das reivindicações a ponto de confrontar a estrutura de poder vigente.
Os dois jovens mortos por armas de fogo foram Inti Sotelo, de 24 anos, e Jack Pintado, de 22 anos. Além deles, 94 cidadãos sofreram ferimentos e há dezenas de desaparecidos nas ruas de Lima, segundo denúncias de grupos de direitos humanos. Uma repressão intolerável de um governo ilegítimo, punindo duplamente a população peruana!
A crise política no Peru é intensa, caótica e de longa duração. Todos os presidentes eleitos nesse século estão presos ou em investigação. Alejandro Toledo (presidente de 2001 a 2006) foi preso nos Estados Unidos, por receber propinas das empreiteiras brasileiras Odebrecht e Camargo Correa; Alan Garcia (presidente de 2006 a 2011) suicidou-se após ser condenado por recebimento de propinas da Odebrecht; Ollanta Humala (presidente de 2011 a 2016) está preso por receber propinas da Odebrecht; Pedro Paulo Kuczynski, o “PPK” (eleito em 2016 e que renunciou em 2018, sob desconfiança do Congresso) está em prisão domiciliar por ter recebido da Odebrecht em troca de supostas consultorias realizadas para essa empresa. Além deles, Alberto Fujimori está preso e sua filha Keiko Fujimori (candidata a presidência em 2011 e 2016) também sofre pendências jurídicas.
Mas a crise se acentuou profundamente nessas últimas semanas. Logo após ter aberto e rejeitado um processo de impeachment contra o presidente Martín Vízcarra, o Congresso aprovou um outro pedido de impeachment, desta vez em resposta à utilização por Vízcarra de um dispositivo constitucional de fechar o Congresso. A alegação do Congresso era de envolvimento do presidente em corrupção, em uma investigação antiga. Porém, esse impeachment saiu de parlamentares que também estão envolvidos em corrupção, tentando usar o golpe para desacreditar o discurso anti-corrupção, muito usado por Vízcarra. Essa é uma briga entre diferentes alas da direita, igualmente corruptas, ambas sem legitimidade.
As relações institucionais entre os três poderes estão muito desgastadas e o poder central é tão instável que o país teve três presidentes diferentes em um curto período de uma semana. A grande verdade, entretanto, é que a real solução para o povo peruano não passa por discursos vazios de presidente e muito menos por golpes elitistas. A real solução passa, a curto prazo, por eleições diretas gerais já, por causa do vazio de poder no executivo e falta de credibilidade do legislativo; isso acrescido de uma Assembleia Constituinte, livre e soberana, para livrar o país da Constituição do período de Alberto Fujimori no poder. Porém, destacamos que esse é apenas o “meio” para as mudanças mais profundas na estrutura do país, mudanças essas que rompam com os cruéis legados do colonialismo, das ditaduras militares e do fujimorismo.
O Peru necessita, urgentemente, de profundas reformas políticas que impeçam o acesso de políticos envolvidos com grandes corporações a funções públicas. O envolvimento de muitos políticos peruanos com as grandes empreiteiras do Brasil (como Odebrecht e Camargo Correa) aponta a necessidade de ruptura com esse mecanismo e também, o quão maléfico foi a “integração latino-americana” no “período bolivariano” desenvolvida pelos governos petistas no Brasil, sob a lógica capitalista e com empresas privadas corruptas.
O Peru necessita, também, a nacionalização de suas riquezas, pois é inaceitável o avanço das empresas farmacêuticas internacionais sobre a Amazônia peruana, enquanto as condições de saúde do povo peruano são lastimáveis. A falta de recursos para a saúde deixou o Peru extremamente vulnerável diante da pandemia do coronavírus e não é por acaso que o país foi detentor dos piores índices de mortalidade no mundo (comparando número de mortos e a população do país). Outra necessidade é de uma legislação trabalhista que assegure direitos aos trabalhadores, condições de trabalho dignas e restauração das liberdades sindicais, e não a precarização do emprego, tão utilizado por Fujimori, PPK, Vízcarra e outros governos. Precisa, também, de um regime democrático, com ampla liberdade de expressão, e que a polícia não seja usada para reprimir manifestações, como ocorreu recentemente com a morte de dois jovens e também, durante a ditadura do moribundo Fujimori.
A mobilização popular, que abortou o projeto golpista de Merino, é o caminho inicial. Ela faz parte das grandes mobilizações populares na América Latina contra a direita e o projeto neoliberal. Soma-se às movimentações na Colômbia (contra o neoliberalismo e a violência policial), na Bolívia (na luta pela garantia das eleições presidenciais e de seu resultado), no Chile (na luta pela revogação do legado da constituição ditatorial de Pinochet), na Guatemala (contra a corrupção e os cortes no orçamento para as áreas sociais) e em outros países. A América Latina explode em manifestações, muitas vezes espontâneas, por sofrer, de forma impactante, as ações nefastas do neoliberalismo, após tantos séculos de dominação colonialista.
E tudo isso ocorre em uma situação de pandemia mundial e que mesmo com todos os perigos de contágio pela proximidade física entre os manifestantes, a crueldade do quadro social impõe a necessidade da luta. No caso do Peru, nem mesmo os números relativos extremamente altos impuseram medo à população revoltada com a situação política e econômica do país! Isso mostra a disposição das massas para a luta consequente e não apenas para o legalismo ou a restauração de um governo tecnocrata e conciliador como o de Vízcarra. As forças de esquerda no Peru precisam se rearticular para intervir com peso nessa movimentação em torno de um programa anticapitalista, que dê direção consequente a essas lutas.
As características do modelo econômico implementado nos países latino-americanos, especialmente a partir do pós-guerra, têm produzido efeitos nefastos nos países dito subdesenvolvidos. As determinações do FMI e do Banco Mundial, instituições pilares do sistema capitalista, só aumentam a concentração de riquezas para um setor e de outro, a pobreza da grande maioria. Essas determinações intensificam as privatizações de setores estratégicos, tornando-se um negócio altamente lucrativo para as empresas estrangeiras em setores fundamentais para a soberania nacional.
No Peru, essa situação intensificou-se sobremodo no período de Alberto Fujimori no poder (1990-2000). Foi uma ditadura sanguinária, mesmo tendo sido eleito por via direta. Combinou uma política repressiva contra oposicionistas com liberalização total da economia, com relaxamento de regras para o setor privado e total controle dos gastos sociais e subsídios. A justificativa é o crescimento econômico e a criação de empregos; porém, implementando tecnologias avançadas e frouxidão nas relações de trabalho, o resultado é o desemprego e o subemprego, com salários rebaixados, super-exploração da mão-de-obra dos trabalhadores, maior concentração de renda e aumento da miséria.
Se não rompermos com esse modelo, típico da atual era do capitalismo, vamos permanecer com os mesmos problemas. Independentemente de quem esteja ocupando o governo (podendo ser um Fujimori, de direita descarada, racista e liberal extremado, ou um Ollanta Humalla, de uma “esquerda nacionalista” acomodada), dentro do sistema imperante capitalista, a riqueza permanecerá concentrada nas mãos de poucos, enquanto a classe trabalhadora e campesina sofrerá com a super-exploração. É preciso romper com esse sistema!
Esse modelo se mostrou fracassado na América Latina. Foi vendido, no final do século XX, como um modelo que traria riquezas para a economia e vantagens para os empresários e trabalhadores. No entanto, a realidade da América Latina é de intensificação da miséria, com deterioração acelerada das condições de vida do povo, acentuada destruição dos povos tradicionais e do meio ambiente e abertura no caos político para “soluções” que só acentuam as contradições, como Dória e Bolsonaro no Brasil, Maurício Macri na Argentina e Pedro Pablo Kuczynski no Peru.Contra esse regime, a população peruana se revolta, assim como em toda a América Latina. É tarefa dos revolucionários ativar o internacionalismo proletário, articulando movimentos que integrem as manifestações contra o neoliberalismo em todo o continente. Chegamos ao momento de dizer não a esse sistema que nos desumaniza e devasta tudo que possa ser passível de lucro. É tão necessário quanto urgente um processo revolucionário, conduzido não por governos e sim por trabalhadores, indígenas e camponeses, com um programa socialista para o Peru e para nossa Pátria Grande.