Protestos em massa após o golpe de Mianmar serão decisivos

O apoio à “Campanha de Desobediência Civil”, lançada inicialmente por trabalhadores da saúde de mais de 80 hospitais de Mianmar, está crescendo. A eles se juntaram funcionários públicos do Ministério da Energia e membros da força policial que estão se unindo à luta contra o golpe, demonstrando abertamente a saudação de três dedos – símbolo do protesto.

O povo de Mianmar está tomando as ruas em protestos maciços contra o golpe militar no país. Apesar da Covid-19 e da repressão das autoridades, este movimento está crescendo significativamente. Se os militares pensavam que iriam simplesmente se safar com seu golpe, estavam enganados. Os movimentos de protesto podem ser decisivos.

Os militares de Mianmar (os Tatmadaw) encenaram um golpe em 1º de fevereiro, um dia antes da posse do novo parlamento. Foi declarado estado de emergência, os resultados das eleições parlamentares de novembro de 2020 foram declarados inválidos e os líderes da Liga Nacional pela Democracia (NLD) de Aung San Suu Kyi foram presos.

Este golpe chega em um momento importante para o establishment de Mianmar. A direção militar foi forçada a permitir elementos de democratização nos últimos anos, em parte porque a mudança abriu muitas portas internacionalmente e em parte porque uma onda de protestos em 2007 ameaçou a estabilidade interna. Os líderes governamentais internacionais fizeram fila para visitar Aung San Suu Kyi após sua libertação em 2010. Poucos dias antes do golpe, o FMI deu ao país 350 milhões de dólares para combater a pandemia da Covid-19.

NLD trai as esperanças

Aqueles que participaram de protestos anteriores depositaram suas esperanças na mudança quando a NLD entrou no governo. No entanto, isto levou a uma desilusão crescente. Durante os anos anteriores, a NLD optou por uma colaboração leal com a direção do exército. A lealdade não era mútua: mesmo depois que Aung San Suu Kyi foi a Haia para defender a perseguição da minoria Rohingya, o comando do exército continuou desconfiado.

Não foi coincidência que o 1º de fevereiro tenha ocorrido pouco antes do início do novo parlamento. Em novembro de 2020, a NLD de Aung San Suu Kyi ganhou uma grande maioria de assentos, mesmo que o exército tenha automaticamente concedido a si mesmo um quarto dos assentos. Isto daria à NLD um maior controle sobre o poder. Além disso, a aposentadoria de Min Aung Hlaing, o principal homem forte na liderança do exército que faz 65 anos em julho, está iminente.

Talvez a liderança do exército pensasse que conseguiria se safar com o golpe, dada a crise de saúde no país e as crescentes tensões entre a China e os EUA. As reações muito cautelosas dos organismos internacionais mostraram que não se deve contar com a desaprovação internacional. Para o regime chinês, um golpe militar não é, naturalmente, um problema, desde que o regime permaneça estável. Os EUA e outras potências internacionais são cautelosos em sua reação ao golpe; eles não querem dar muito espaço ao regime chinês em um país com recursos naturais importantes. O Ministério das Relações Exteriores japonês até declarou abertamente que as comunicações deveriam ser mantidas com os militares por medo de que, caso contrário, a China fortaleceria sua posição.

Militares temem protestos

O maior problema para a direção militar e para as potências internacionais, especialmente a China, tem sido e continua a ser os protestos em massa. Isto foi levado em conta: os líderes dos protestos dos monges em 2007 e da revolta de 1988 foram imediatamente presos em 1º de fevereiro. Mas talvez o comando do exército pensasse que não chegaria a um movimento de massa. Que a crise sanitária não é um freio absoluto aos movimentos já foi demonstrado na vizinha Tailândia, entre outros países. Se os protestos continuarem a se desenvolver, o golpe pode ser o chicote da contrarrevolução que impulsiona a revolução para frente.

O cancelamento dos resultados das eleições de 1990, que a NLD ganhou, seguiu-se ao movimento de massas de 1988. Mas agora o movimento da direção do exército desencadeou uma nova onda de protestos. Isto prejudica a estratégia de Aung San Suu Kyi e a liderança da NLD. Nos últimos anos, eles seguiram uma estratégia de colaboração leal com o comando do Exército. Se o movimento de massa impedir a tomada do poder pelo exército, será difícil para Aung San Suu Kyi continuar esse curso.

Isso porque o golpe demonstra o fracasso dessa cooperação e, além disso, a luta de massas sempre tende a desenvolver mais exigências à medida que ele mesmo ganha em confiança. Será difícil deter este movimento de massa em desenvolvimento usando manobras por cima, mesmo que o movimento não seja muito organizado e apesar dos elementos indiscutivelmente contraditórios dentro dele.

Uma vez que as massas estão em movimento, a discussão dos direitos democráticos logo gera também demandas sociais. Ambos, é claro, vão juntos. Os marxistas não deixam a discussão sobre democracia para as alas “liberais” da classe dominante, mas participam da luta como os democratas mais consistentes, ligando as demandas democráticas com a necessidade de uma luta revolucionária pela mudança socialista.

Não é isso que a NLD representa, e é por isso que tem crescido o descontentamento com as políticas e a direção da NLD nos últimos anos. Se a NLD ganhou as eleições de novembro de 2020, foi principalmente por antipatia para com os militares. A NLD não oferece nada aos vários grupos étnicos de Mianmar em áreas como os estados Shan ou Kachin. No estado de Rakhine, por exemplo, o Partido Nacional Arakan de etnia local ganhou mais votos do que a NLD, mesmo com a participação dos eleitores restrita a apenas 25%.

A classe trabalhadora mostrando o caminho

O golpe e o início dos protestos em massa mudaram a situação. É lógico que muitos manifestantes, antes de tudo, exigem a libertação de Aung San Suu Kyi e dos líderes da NLD. Veem Eles veem neles um instrumento contra o exército. Ao mesmo tempo, porém, a discussão deve se concentrar em como realmente impedir a direção do exército: os métodos de Aung San Suu Kyi evidentemente não funcionaram. Sua política de colaboração foi vista como um sinal de fraqueza pela liderança do exército. Como sabemos, a fraqueza convida à agressão.

Para ter sucesso, o movimento deve desenvolver seus próprios instrumentos tanto para se fortalecer quanto para formular e defender as demandas políticas e sociais decorrentes dele com o maior envolvimento possível. Já milhares de trabalhadores da saúde e médicos se organizaram em “desobediência civil” sob a forma de greves, com mineiros de cobre e até mesmo funcionários públicos entrando em greve. Para demonstrar sua raiva, os médicos da emergência do Hospital Yangoon continuarão a prestar atendimento de emergência, mas não tratarão de, em nenhuma hipótese, pessoas que tenham participado de alguma forma em ações pró-militares.

A convocação de uma greve geral após os protestos de médicos, professores e outros oferece oportunidades para reforçar significativamente o movimento, especialmente se forem criados comitês de greve em todos os locais de trabalho e bairros, com uma coordenação desses comitês que pode formar a base para uma assembleia constituinte. Isto é urgentemente necessário, mesmo que seja apenas para proteger o protesto da repressão e da violência por parte das autoridades.

O apoio à direção do exército é extremamente limitado, como já era evidente nas eleições de novembro de 2020, e não vai melhorar com este golpe. Um regime que está encurralado pode dar estranhos saltos, algo que é particularmente verdadeiro de um regime que já o fez antes. Isto pode levar a um forte aumento da violência e da repressão para estancar o protesto com sangue. O regime já atacou os manifestantes com gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha, e agora leis marciais está sendo usadas para fechar comunicações pela internet e nas mídias sociais.

Lições históricas

As massas de Mianmar mostraram, no passado. que as derrotas sangrentas podem ser seguidas de novos movimentos: as experiências de 1988 ainda não foram esquecidas. Ao mesmo tempo, lições políticas devem ser aprendidas: não se consegue mudanças governando com os militares ou aceitando suas condições. As reformas democráticas também são insuficientes para melhorar o nível de vida da maioria da população. Há necessidade de um programa de transformações sociais socialistas e da construção de uma organização revolucionária que popularize esta necessidade em comitês de greve organizados e coordenados.

Não pode haver confiança nas instituições do capitalismo global para desempenhar um papel verdadeiramente “progressista”; a hipocrisia dos países desenvolvidos, assim como de blocos como a ASEAN ( Associação das Nacões do Sudeste Asiático), sobre os direitos humanos já é evidente. Há também a questão dos interesses comerciais que servirão como sua principal motivação. Foi somente na esteira do golpe em si e da instabilidade que isso trará à grande empresa japonesa Kirin e ao empresário de Singapura Lim Kaling que esses cortaram publicamente seus laços financeiros com a joint venture liderada pelas forças armadas de Mianmar.

O movimento de massa contra o regime na vizinha Tailândia, inspirado em Hong Kong e envolvendo um grande número de jovens, também teve um efeito sobre a consciência do povo de Mianmar.Uma análise recente do movimento na Tailândia por membros da ASI exige a construção de “um novo partido de esquerda baseado na luta para mudar a sociedade”, desafiando os militares e as grandes empresas (assim como a família real tailandesa). O movimento em Mianmar precisa atrair trabalhadores, inclusive aqueles explorados por empresas de joint venture em zonas econômicas especiais, e construir uma base sólida para luta conjunta com as massas oprimidas em todo o continente asiático.