O preço do arroz não é um fato isolado, mas mais um sintoma do capitalismo decrépito
A alta do preço dos alimentos, especialmente do arroz, item essencial na mesa da classe trabalhadora e da cesta básica, assustou quem foi aos supermercados na última semana. No meio da pandemia, enquanto os governos flexibilizam as restrições na circulação e aglomerações, o desemprego cresce, a economia retrai e o auxílio emergencial é reduzido à metade do valor, tal novidade cai como uma bomba no colo da família brasileira.
No caso do arroz, alçado a ícone pop nos memes e discussões na internet, o preço do produtor simplesmente dobrou em seis meses! No primeiro trimestre, a saca de 50 kg vendida pelos produtores estava em cerca de 50 reais, chegando agora em setembro a 100 reais (Cepea, ESALQ, USP). Outros produtos básicos também tiveram alta de preços, como o óleo de soja e a farinha de trigo, tendo o preço da cesta básica aumentado 20% no acumulado de 12 meses no país, de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados.
A grande mídia corre em dar explicações simplificadas para os fatores que causam este aumento. O fator mais divulgado tem relação com o valor do dólar, que equivale a mais de 5,3 reais desde o início de 2020. Isso aqueceu as exportações brasileiras, os produtores conseguiram preços bons no mercado externo e reduziu a quantidade do produto, agora mais caro, para o mercado interno.
A tal da lei da oferta e da procura é muito enfatizada também – menor quantidade de arroz no Brasil e crescimento da procura pelas famílias brasileiras fariam os preços subirem. Sobre isso, veio a explicação infame do vice-presidente general da reserva Mourão que, com ar de otimismo com o futuro, lacrou: “É a questão da lei de oferta e procura. Uma porção de gente comprando porque o dinheiro que o governo injetou na economia foi muito acima daquilo que as pessoas estavam acostumadas. (…) Então, as pessoas estão se alimentando melhor e estão melhorando as suas casas”. Ele se refere ao auxílio emergencial de 600 reais que, de fato, levou o brasileiro às compras. Entretanto, isso não é motivo de otimismo, muito pelo contrário, só mostra o quão grave é o nível de pobreza da população, que não se alimenta direito sem o auxílio. Vale lembrar que o governo era contrário aos 600 reais e foi vencido pelo congresso, dirigido pela oposição de esquerda nesse assunto, principalmente o PSOL. Agora, com a redução para 300 reais no auxílio, o governo também fica otimista, pois, segundo eles, vai garantir que a inflação fique controlada, já que o povo vai poder comprar menos comida…
Ideário liberal de Guedes versus populismo
A saída do governo para o problema foi direta. Bolsonaro inicialmente apelou para o “patriotismo” dos donos de supermercados. A genialidade do presidente percebeu rapidamente que isso não era suficiente e resolveu pedir satisfações aos produtores e, finalmente, o governo tomou uma medida, tirar a alíquota de importação do arroz para que as reservas do produto do Brasil possam crescer e, assim, aumentar a oferta e reduzir os preços.
Este episódio traz novamente à tona a disputa que se dá por dentro do governo entre o liberalismo extremo defendido pelo Paulo “Posto Ipiranga” Guedes e intervenções estatais que vem se tornando necessárias na gestão da crise. No caso do arroz, fosse por Guedes, deixaria que a mão invisível do mercado regulasse suavemente os preços, uma crença mítica dos liberais extremistas, como ele, que só se explica por um coração e uma alma cheios de milhões de dólares em lucros futuros no cassino da especulação financista. Na verdade, uma política estatal mínima seria controlar os estoques de arroz para conseguir controlar os preços. Entretanto, como vimos nas últimas décadas de receituário neoliberal, o Estado só se manteve intervindo no que interessava a eles, aumento das margens de lucro dos bilionários, salvando bancos e manejando o cassino financeiro por um lado, e reduzindo a intervenção em políticas públicas, na garantia dos direitos da classe trabalhadora e na manutenção do patrimônio público.
A briga entre esses dois lados do governo muitas vezes apareceu publicamente, por exemplo, nas tratativas entre o governo e o Congresso para o projeto de Reforma Administrativa – no caso, Rodrigo Maia, o presidente da Câmara, e Paulo Guedes trocaram até xingamentos dignos de briga de recreio de escola –, nos planos de “retomada do crescimento” liderados pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, ou nos telefonemas de Bolsonaro à Petrobras pedindo o controle do preço do diesel em 2019. Outro episódio ilustrativo, foi a avaliação pouco amistosa de Paulo Guedes ao programa Pró-Brasil, criado pela ala militar e apresentado pelo ministro-general da Casa Civil Braga Netto, visivelmente constrangido, durante a famosa reunião ministerial de 22 de abril.
Porém, se enganam aqueles que acreditam em uma fração desenvolvimentista dentro do governo. Apesar da retórica dos militares e das ações de Rogério Marinho, a quem Bolsonaro tem demonstrado maior simpatia, todos estão juntos em um projeto neoliberal de ataques aos direitos, entrega do patrimônio público e maiores lucros aos super-ricos. A disputa na verdade se dá entre aqueles que querem acelerar e aprofundar mais as reformas liberais e a visão pragmática de Bolsonaro que está de olho na sua popularidade, pois já está em campanha para a sua reeleição em 2022. Esta campanha antecipada quer se garantir com medidas populares, como o Renda Brasil e obras de infraestrutura, porém se bate com o maior empecilho, a Emenda Constitucional do teto dos gastos, defendida por absolutamente todos os setores da burguesia. Além disso, a sanha fisiológica da grande burguesia por mais lucros, em um contexto de crise econômica profunda e longa, necessita das reformas liberais para que os recursos públicos sejam destinados a seus bolsos, projeto defendido também por toda a burguesia, inclusive a dita oposição “progressista e democrática”.
Fatores isolados ou crise do sistema?
Os economistas liberais historicamente apelaram para fatores isolados para justificar as crises ou a alta de preços, como no caso dos alimentos agora. Além dos fatores já citados, como as exportações e o aumento da procura, eles têm explicado a alta do preço do arroz por conta da redução da produção no período anterior. O problema é que todas essas causas são tratadas como se fossem questões isoladas e aleatórias, como fenômenos naturais com pouca capacidade de previsão. Da mesma forma, culpam um vírus e a pandemia pela crise econômica profunda em que estamos, escondendo o fato que na virada do ano a economia já vinha em decadência e as previsões já eram de recessão em 2020. Com um pouco de esforço e menos sentimento de ganância, é fácil relacionar todos esses fatores à atual crise estrutural que o sistema vive.
A soja, a carne, o algodão, a cana-de-açúcar, o trigo e o arroz, por exemplo, são commodities para exportação e, por isso, produtos utilizados pelo grande latifúndio e a grande indústria de alimentos para a maximização dos seus lucros. Mais de 60% do arroz brasileiro é produzido no Rio Grande do Sul, com uma média de 117 hectares de terras que tiveram arroz colhido por estabelecimento rural (Censo Agro 2017, IBGE). A soja o algodão também são plantados em monocultura de latifúndios, com uma média de 130 e 238 ha colhidos por unidade, enquanto a banana é produzida com 1,6 ha e o feijão é produzido com 1 ha por unidade, em média. A concentração de terras continua enorme: 1% das propriedades possuem 47% das terras de lavouras e pastos no Brasil! Na outra ponta, os produtores que tem menos de 10 ha, que são metade de todos os estabelecimentos rurais do país, possuem pouco mais de 2% das terras. É a agricultura familiar, a desses pequenos estabelecimentos, que produz a grande quantidade e diversidade de alimentos da mesa dos brasileiros, enquanto o grande latifúndio produz poucas commodities para exportação.
Média de área (em hectares) de alguns produtos agrícolas no Brasil (Censo Agropecuário IBGE, 2017). As commodities são produzidas por latifúndios, enquanto outros alimentos comuns, por pequenas propriedades.
Produto | área colhida | no de estabelecimentos | área média por estabelecimento |
algodão | 912.563 | 3.224 | 283,1 |
soja | 30.722.657 | 236.245 | 130,0 |
arroz (Rio Grande do Sul) | 1.088.096 | 9.271 | 117,4 |
cana-de-açúcar | 9.127.645 | 171.348 | 53,3 |
trigo | 1.788.027 | 35.268 | 50,7 |
arroz (Brasil) | 1.716.600 | 179.881 | 9,5 |
batata-inglesa | 85.093 | 35.172 | 2,4 |
banana | 319.150 | 202.513 | 1,6 |
feijão | 2.113.124 | 1.688.171 | 1,3 |
mandioca | 740.611 | 974.211 | 0,8 |
Em período de grave crise econômica e recessão, os grandes aproveitam para recuperar as margens de lucro e, dependendo do setor, lucrar muito mais (os bilionários estão tendo recordes de lucros e patrimônio durante a pandemia). Para isso, lançam mão de uma das suas melhores armas, a especulação, ou seja, seguram os produtos e os bens para conseguir maiores lucros em momentos posteriores. Jogam com a população que precisa destes bens, manipulam mercados, capitalizam em cima das bolsas e de títulos das dívidas públicas, enquanto as necessidades da sociedade ficam em segundo plano. No caso dos alimentos, quanto mais um produto é commodity no mercado internacional, produzido por grandes latifúndios em monoculturas e negociado em dólares, mais ficamos dependentes dos “humores” e jogos especulativos dos super-ricos. O Brasil, como país neocolonial, é o capacho no qual os capitalistas limpam os seus sapatos para continuarem a lucrar bilhões em cima da crise generalizada. Agora, o povo pobre brasileiro paga caro no arroz, produto de primeira necessidade, para satisfazer os lucros bilionários do mercado capitalista globalizado.
Esse é o caldo de crise econômica produzida e aproveitada pelos capitalistas, crise política que criou Bolsonaro e que mantêm as disputas internas no governo e na burguesia, crise alimentar que acaba com a produção diversificada de alimentos e encarece o prato de comida da trabalhadora e do trabalhador brasileiros e a crise sanitária e ambiental que criou uma pandemia já prevista pela ciência, baseada na degradação de habitats naturais e grandes e caóticas concentrações populacionais. O sistema está inteiro em crise e a saída só pode surgir da classe trabalhadora e do povo explorado.
Reforma Agrária e Soberania Alimentar
A alta do preço dos alimentos tem chamado a atenção para os temas da Reforma Agrária e Soberania Alimentar. Dados da FAO indicam que 43 milhões de pessoas no Brasil vivem sob insegurança alimentar, um aumento de 10% nos últimos 3 anos. Fica evidente que é necessária a distribuição de terra dos grandes latifúndios para as trabalhadoras e os trabalhadores da agricultura para que haja alimento barato, diversificado e saudável na mesa do povo. O MST, por exemplo, tem mostrado, com a sua campanha de solidariedade, que já doou mais de 3,4 mil toneladas de alimentos para comunidades pobres, como é possível produzir e vender barato alimentos em grandes quantidades e sem a influência nefasta do mercado internacional globalizado.
O latifúndio avança com as suas monoculturas para exportação, com o uso de agrotóxicos e transgênicos, cada vez menos proibidos, mesmo os muito perigosos, expulsando e assassinando pequenos agricultores, povos indígenas e comunidades das florestas e derrubando áreas de vegetação nativa, que são locais de grande biodiversidade. Tudo isso para o seu lucro que não é revertido de nenhuma forma para a sociedade, nem em impostos, nem em empregos. As grandes queimadas, cada vez mais comuns na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, são perpetradas pelos latifundiários, atrás de mais áreas para as monoculturas e pecuária, e apoiadas por Bolsonaro, contribuindo de forma descarada para o aquecimento global. O programa federal de Reforma Agrária está totalmente negligenciado – ainda no governo Dilma ele foi colocado dentro de um caixão e Temer e agora Bolsonaro terminaram de enterrar.
Não resta outra alternativa para a classe trabalhadora a luta de resistência. Os movimentos do campo, como o MST, o MAB, o FNL, o Terra Livre e tantas outras bandeiras espalhadas pelo país, grandes e pequenas, o movimento indígena e os sindicatos rurais devem estar unidos a toda a classe trabalhadora da cidade para reivindicar a distribuição das terras para plantar alimentos e outros produtos de forma ecológica, em harmonia com a biodiversidade e a diversidade cultural dos povos. Apenas com Reforma Agrária, teremos Soberania Alimentar, ou seja, o povo ter acesso a alimentos baratos, diversificados e saudáveis, sem estar reféns do mercado. A luta da classe trabalhadora pode construir uma sociedade socialista, em que todas e todos têm direito ao trabalho e à alimentação digna, com um meio ambiente preservado e saudável, em que possamos planejar democraticamente o que e quanto produzir e circular e livre das crises causadas pelo capital, para que se desenvolvam todas as capacidades humanas!
- Controle dos preços dos alimentos!
- Controle dos mercados de exportação, primeiro a necessidade do povo!
- Planejamento na produção e estocamento dos produtos alimentares, para que não fiquem à mercê dos mercados!
- Reforma agrária radical sob controle dos trabalhadores! Expropriação do latifúndio e do agronegócio!
- Por um mundo sem cercas e com acesso soberano à alimentação, à terra e aos bens comuns!