George Orwell e a revolução espanhola

Livro Lutando na Espanha de Orwell traz escritos inéditos sobre a experiência na revolução espanhola

Quando Orwell pôs os pés na Espanha, logo lhe avisaram: é melhor mudar de roupa, pois pode ser que pensam se tratar de um burguês e vão lhe botar para fora. Orwell percebeu certo exagero no conselho mas entendeu qual era a situação quando entrou em Barcelona.

Os garçons não mais tratavam os clientes por senhor; nas barbearias havia cartazes dizendo que não se aceitava gorjetas; as vitrines das lojas de roupas não expunham as finas vestimentas, mas sim roupas ligadas às necessidades da guerra; era impossível encontrar alguém ostentando riqueza.

Foi esse cenário que o jornalista e escritor inglês se deparou no final de 1936, período que fora considerado o auge da revolução. Depois de um grande ascenso do movimento operário em 1934, um governo de Frente Popular foi eleito na Espanha em 1936, com uma oposição golpista dos fascistas. Contra a reação fascista, Orwell e sua esposa se sentiram convocados para lutar. Por ter contatos com membros do Partido Trabalhista Independente na Inglaterra, ele conseguiu ir à Espanha e se juntar à milícia do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), que mantinha relações de solidariedade com o PTI.

Naquele momento uma delicada soma de forças tomava a esquerda. Até então os grupos anarquistas eram os mais expressivos, o POUM tinha uma força razoável e o Partido Comunista deixou seu tamanho insignificante para ser um forte vetor na direção do movimento, com apoio da URSS.

Eram essas as principais forças contra as milícias fascistas ligadas a Franco. Num primeiro momento elas foram enfrentadas unitariamente pela esquerda. As milícias anarquistas, do POUM e dos comunistas se organizavam e dividiam tarefas para combater o avanço fascista. Foi esse o momento político em que chegou Orwell.

Ele chegou a Barcelona, um forte reduto da revolução, onde, como o próprio autor diz, viu pela primeira vez a classe trabalhadora no poder. O relato de seu espanto é umas das preciosidades do seu livro. O leitor poderá se familiarizar com essa situação ímpar da qual a história poucas vezes foi testemunha, mas que é inesquecível para qualquer um que a tenha vivido.

Desse ponto, o livro, assim como a revolução, vai se tornando mais angustiante. Orwell vai percebendo problemas, desvios no processo revolucionário. Logo percebe que a burguesia não estava ausente, mas sim à espreita. Também percebe que na direção do movimento havia diferenças sérias. Os comunistas já com uma força proeminente tornaram-se um freio para os avanços dos trabalhadores. Ao invés de garantir a unidade das milícias contra Franco e de avançar na revolução, os comunistas seguiram as ordens de Moscou que não desejavam uma revolução socialista, mas uma democracia burguesa.

Essa política foi nefasta não só para a luta socialista, como também para o combate ao fascismo. As milícias que não estavam ligadas ao exército popular, dirigido pelos comunistas, passaram a ser integradas nas estruturas dele. Orwell mostra como isso mudou a forma de combate das milícias do POUM. O clima de camaradagem entre os milicianos, mesmo de postos hierárquicos diferentes, foi deixando de existir, e voltou-se a uma estrutura mais rígida, alienante. Há aí uma clara relação entre o recuo da direção na revolução com o sufocamento e repressão dos trabalhadores.

Orwell, ferido por um tiro depois de passar três meses na frente de batalha, volta à Barcelona e nos dá um testemunho triste dos retrocessos que viu. A burguesia voltou a se mostrar, restaurantes chiques voltaram a funcionar, servindo à burguesia pratos caríssimos enquanto havia racionamento de comida para o resto da população; os pronomes de tratamento voltaram a ser usados. Isso foi a expressão do sufocamento revolucionário, que em relação às forças políticas culminou na declaração do governo caracterizando o POUM como um grupo ilegal, tendo seus membros presos e alguns líderes mortos, sob a acusação de serem “trotskistas” e espiões dos fascistas. Orwell e sua esposa por sorte conseguiram fugir para a França.

Orwell normalmente é classificado como um feroz crítico do comunismo, pelo seu caráter totalitário. Suas críticas são usadas para fortalecer um ideal de que é a democracia burguesa o único caminho possível, pois qualquer outra redundará no totalitarismo. Tão comum quanto esse resumo da posição de Orwell é a ausência de referências à sua experiência na Espanha. O que a leitura do livro Lutando na Espanha nos possibilita é ver um Orwell extremamente engajado e sóbrio. Sem nenhum romantismo, Orwell compreende as tarefas revolucionárias. E, apesar de não ser um estudioso do marxismo, sua posição durante a guerra civil, ao lado do POUM, o permitiu perceber o papel nefasto do stalinismo ao trair a classe trabalhadora.

Àqueles burgueses que querem simplesmente emitir suas opiniões com as palavras de Orwell, podemos pedir para interpretarem por que em seu livro Orwell critica o stalinismo menos por seu totalitarismo, mas fundamentalmente por ter se curvado aos burgueses, por não ter levado a cabo o fim da sociedade de classes?

Para ele estava clara a necessidade do avanço da revolução, e em seu livro ele se esforça para desmentir todas as calúnias da imprensa nos países vizinhos que apresentavam a luta antifascista como uma luta simplesmente democrática “O ódio que a república espanhola despertava em milionários, duques, cardeais, playboys, coronéis Blimp e por aí vai, seria suficiente para nos mostrar como se dividia o terreno. Em sua essência, era uma luta de classes. Se tivesse sido ganha, a causa das pessoas comuns em todos os lugares sairia fortalecida. Mas não foi, e os coletores de dividendos em todo o mundo esfregavam as mãos. Esta era a verdadeira questão; todo o resto era espuma na superfície”.