Daniel Blake, um homem de 2017

O filme de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake” é uma obra marcante não por ser uma história excepcional de um único personagem, mas justamente por conseguir retratar, de forma extremamente sensível, algo tão genérico e cotidiano como a realidade dos trabalhadores. O filme se passa na Inglaterra, mas muitos elementos refletem a situação da classe trabalhadora em outros países da Europa, e mesmo no Brasil.

Daniel Blake é um sujeito simples, que trabalhou a vida toda com carpintaria. Viúvo, enfrenta uma verdadeira saga para acessar o “benefício” da previdência social, após receber orientações médicas para se afastar do trabalho depois de sofrer um ataque cardíaco. Outros personagens são a jovem Katie, mãe sozinha com dois filhos e desempregada, cujo benefício também lhe é negado por um problema burocrático; e China, vizinho de Daniel, negro, trabalhador de um depósito e que vê a possibilidade de melhorar de vida através do trabalho informal, vendendo tênis produzidos na Ásia e extraviados na fábrica.

A partir do sofrimento de cada personagem diante de um Estado que vira as costas para suas misérias, o filme desperta no espectador identificação e empatia – sobretudo neste atual momento de perda de direitos e imensos cortes de verbas em serviços públicos. Isso adquire ainda mais intensidade em um país como a Grã-Bretanha, que historicamente se destacou na construção do Estado de Bem Estar Social e, hoje, enfrenta uma crise brutal, que se reflete em uma evidente piora na vida das pessoas. A falta de oportunidade para a juventude, em especial das mulheres, se encontra na figura de Katie, cuja perspectiva de estudo e trabalho é derrocada pelas condições objetivas, que a empurram para uma angustiante situação de fome e de prostituição.

Apesar do filme ter logo no título a primeira pessoa do singular e um nome próprio, a presença dessas três personagens e a forma como suas individualidades, seus anseios, suas indignações são retratadas dão ao filme um caráter de classe. Isso em um contexto em que, diante da complexidade do mundo do trabalho, por vezes nos passam despercebido as nossas semelhanças.

Se hoje esse caráter de classe não se manifesta de forma tão forte pelo modo de trabalho comum (rotina, uniforme, jornada de trabalho), como foi nas grandes fábricas inglesas da Revolução Industrial, por certo as dificuldades de sobrevivência permitem nos enxergarmos enquanto pertencentes ao mesmo grupo. Não podemos ignorar o dado apresentado pela Oxfam, no início desse ano, em que consta que 1% da população mais rica detém a mesma riqueza que os 99% das pessoas.

E então é preciso trazer a reflexão sobre o papel do Estado diante desse cenário. A burocracia, elemento forte do filme, aparece como um obstáculo para a garantia de acessos aos direitos sociais. A lógica de funcionamento parte da compreensão de que o trabalhador mente, é desonesto e quer se aproveitar do dinheiro público e, portanto, o Estado deve exigir uma série de documentos e aplicar procedimentos para checar se esse trabalhador realmente precisa e tem direito aos “benefícios”. Um cenário que não é diferente do que os trabalhadores enfrentam nas filas do INSS diariamente aqui no Brasil.

A transferência da responsabilidade para empresas privadas, mediante terceirização dos serviços públicos, é retratada de forma bastante ilustrativa quando o serviço que atesta se Daniel Blake é digno ou não de benefício é feito via telefone, através de um questionário genérico aplicado por uma pessoa que se apresenta como “profissional da área da saúde”, sem especificar formação, de uma empresa dos Estados Unidos. Por isso, é preciso ir além e entender que tal burocracia não se trata de um mau gerenciamento do Estado, mas sim um modo de operação justamente para não funcionar – e estar o mais ausente possível na forma de direitos – para os 99%. A perversidade de um Estado que privilegia e protege os ricos, o 1%, e desampara e nega direitos a uma maioria, se escondendo através da terceirização e de uma burocracia lenta, morosa e burra.

“Eu, Daniel Blake” é lançado em uma conjuntura de inúmeros ataques que fazem pesar sob nossos ombros a sensação de estarmos sendo derrotados. Mas há uma tensão presente no filme que não pode ser ignorada, que se relaciona com a consciência nos países da Europa Ocidental, Estados Unidos e América Latina: uma distopia cotidiana com potenciais pequenos e grandes rompantes. Por um lado, certa anestesia diante de tanto sofrimento, mas por outro uma indignação que nos inquieta, ainda que de forma sutil, solitária e silenciosa.

A potência da classe trabalhadora no filme se manifesta através dos laços de solidariedade, sobretudo entre Daniel e Katie. A força em construir relações humanas em tempos de profundo embrutecimento, e tais relações construídas como forma de resistir e enfrentar a violência cotidiana do Estado.

No final do filme, quando Daniel Blake escreve no muro, ainda que seja um gesto tão sutil, pequeno e insignificante diante do gigante capitalista, demonstra ali o vulcão adormecido que é a força da classe trabalhadora. Ainda que de forma incipiente, mostra que não estamos prontos para nos render. E mesmo na condição de indivíduos mortais, em que temos nossas vidas interrompidas por vezes cedo demais e de forma injusta, enquanto classe a resistência permanecerá viva, ativa e pulsante.