Preparar a luta e levantar um programa da classe trabalhadora

Para barrar a extrema direita é necessário superar os limites do Lulismo construindo uma alternativa de esquerda e socialista
A denúncia formal da Procuradoria Geral da República (PGR) contra Bolsonaro e mais 34 pessoas envolvidas na preparação de um golpe de Estado representou um significativo revés para a extrema direita, incluindo seu projeto eleitoral para 2026. Se já era considerado inelegível por decisão do TSE em 2023, agora Jair e seus cúmplices podem ter o mesmo destino do general Braga Netto e acabar atrás das grades.
A extrema direita, no entanto, está longe de ter sido definitivamente nocauteada. Não se pode subestimar os riscos que vêm do Congresso Nacional no sentido de fazer prevalecer a impunidade.
Além do projeto já em tramitação para modificar a Lei da Ficha Limpa, beneficiando Bolsonaro, a extrema direita ainda não desistiu da provação de algum tipo de anistia para o ex-capitão e seus cúmplices. Mesmo não sendo provável a anistia, não se deve baixar a guarda.
No início de maio, a Câmara dos Deputados aprovou um pedido de suspensão da ação penal contra Alexandre Ramagem, o atual deputado federal que foi diretor da Abin no governo Bolsonaro, promoveu milhares de grampos ilegais e foi integrante do núcleo duro da conspiração golpista encabeçada por Bolsonaro.
Ao tentar suspender a ação penal do STF contra Ramagem, a extrema direita espera poder encontrar brechas para livrar também os demais acusados de promover a tentativa de golpe, incluindo o próprio Jair Bolsonaro. Mesmo tendo sido recusada parcialmente pelo STF (Ramagem livrou-se de duas das cinco acusações), a medida é parte de uma grande manobra que conta com o protagonismo do presidente da Câmara, Hugo Motta.
O governo Lula confia nos acordos feitos com os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado que assumiram o posto esse ano. Ambos são políticos direitistas que foram eleitos com o apoio de Lula, mas também da oposição bolsonarista! Hugo Motta chegou a declarar, por exemplo, que o ‘8 de janeiro’ sequer pode ser considerado uma ação golpista.
Ao promover ativamente a votação da suspensão do processo contra Ramagem, Motta tenta explicitamente estreitar relações com a bancada bolsonarista e deve ser visto como um inimigo e nunca como um aliado.
Nenhuma confiança no judiciário
O mesmo vale para o poder judiciário, que já deu mostras no passado de sua conivência com o golpismo. Foi assim no caso do golpe institucional que derrubou Dilma Rousseff em 2016 e da prisão de Lula em 2018 no âmbito da Operação Lava Jato. Se hoje o STF (Supremo Tribunal Federal) parece ter uma posição diferente, que garantia existe de que continuará assim?
O protagonismo atual do STF na tentativa de conter o golpismo que nasce das hordas bolsonaristas reflete antes de tudo seu próprio temor como instituição ameaçada por essa extrema direita, mas também a posição conjuntural de um setor da classe dominante brasileira que hoje (até quando?) está mais refratária a aventuras golpistas.
Esse protagonismo de Alexandre de Moraes e do STF também é diretamente proporcional à moderação (ou covardia) do governo em assumir esse papel. Basta lembrar que José Múcio, que não se cansa de passar pano para militares golpistas, continua como ministro da defesa e boneco de ventríloquo dos militares dentro do governo.
A extrema direita brasileira também tenta se aproveitar do novo cenário internacional, impactado e tumultuado pela posse de Trump nos EUA, apesar de todas as contradições e volatilidade desse processo. Só podemos esperar interferências, conflitos e ataques vindos do norte. A canalha bolsonarista não perderá nenhuma oportunidade de usar isso em seu favor. Qualquer ilusão em saídas pragmáticas e conciliatórias levará a mais derrotas.
Além disso, a denúncia da PGR e mesmo a prisão de Bolsonaro não bastariam para neutralizar a extrema direita. O bolsonarismo conseguiu construir raízes relativamente profundas em amplos setores da população. Mesmo na hipótese de que Bolsonaro de fato não possa candidatar-se em 2026, a extrema direita tem possibilidades de se recompor em torno de outros nomes tão ou mais nefastos quanto o ex-capitão.
Tarcísio de Freitas, um dos principais potenciais substitutos de Bolsonaro em 2026 é o mesmo que, como governador de São Paulo, no fim de fevereiro, dividiu o palco com Lula na inauguração de obras na cidade de Santos (SP). Na ocasião, Tarcísio foi vaiado pelos presentes, que também gritavam “sem anistia!”. Foi Lula quem pediu moderação e paciência ao público.
Foi nessa mesma região (Baixada Santista) que o governador Tarcísio de Freitas promoveu uma verdadeira operação de guerra interna contra a população negra e pobre sob o pretexto de combate ao crime organizado. Somente entre julho de 2023 e abril de 2024, a chamada “Operação Escudo”, além da “Operação Verão”, resultou em mais de cem mortos por parte das forças de segurança de São Paulo sob o comando de Tarcísio e seu secretário de segurança Guilherme Derrite.
A polícia militar de Tarcísio é a mesma que hoje está promovendo o terror e a repressão com bombas e balas de borracha, até mesmo contra crianças, para garantir a expulsão de famílias inteiras na Favela do Moinho, atendendo aos interesses da especulação imobiliária no centro de São Paulo.
O terreno da Favela do Moinho havia sido cedido pelo governo federal ao governo de São Paulo, que promoveu esse ataque. Diante da repercussão da resistência de moradores contra a coação para saírem, a demolição arbitrária de casas e a brutal repressão, o governo federal recuou e suspendeu a cessão do terreno. Apesar da postura (tardia) do governo, a repressão e coação sobre as famílias continuou.
O perigo representado por Tarcísio é real. Ele representa uma ala da extrema direita tão nefasta quanto a original bolsonarista, mas que tenta se tornar, na aparência pelo menos, mais palatável ao gosto das frações da classe dominante que ainda preferem evitar o risco das aventuras extremistas de Bolsonaro.
Mesmo no caso de fricções e divisões internas no campo da extrema direita em meio à disputa para assumir o lugar de Jair Bolsonaro, repetindo o que aconteceu na eleição para a prefeitura de São Paulo no ano passado, por exemplo, a extrema direita continuará sendo um perigo real hoje e em 2026.
A luta independente é a única garantia
Para enfrentar a extrema direita, é preciso aprender com os erros cometidos até agora. Delegar ao poder judiciário ou ao Congresso a tarefa de barrá-la ou esperar uma atitude firme do governo Lula é uma ilusão perigosa e uma estratégia fadada ao fracasso.
A única garantia que temos é nossa capacidade de lutar de forma independente. Ao contrário de confiar cega e passivamente no STF ou rezar para que o governo Lula mude de atitude (o tão falado “giro à esquerda” que nunca vem), é tarefa do conjunto do movimento dos trabalhadores e da esquerda ocupar as ruas e construir a luta organizada contra a impunidade dos golpistas e seu projeto autoritário e antipopular.
Só conseguiremos construir essa luta contra a impunidade e a extrema direita se levantarmos ao mesmo tempo nosso projeto alternativo, um projeto que atenda às necessidades da classe trabalhadora e os setores oprimidos da sociedade, mesmo que esse projeto se choque com a política do governo Lula.
Lula – austeridade, conciliação e freio às lutas
A grande vantagem que a direita bolsonarista tem neste momento reside principalmente nos limites, contradições e incapacidade do governo Lula em oferecer uma alternativa efetiva e apontar um caminho que atenda às necessidades da maioria do povo brasileiro.
Assim como vemos em muitos países (Argentina, Alemanha, EUA, etc.) são os limites, erros e traições de forças consideradas progressistas e a falência das alternativas burguesas ditas “democráticas” ou de “centro” (de quem não se podia esperar muito de qualquer forma) que abrem o caminho para a ascensão da extrema direita.
No caso de Lula, o que vemos é uma recusa intransigente a tomar qualquer iniciativa de mobilização popular. Nada parecido nem sequer às iniciativas, ainda que limitadas, tomadas por governos como o de Gustavo Petro (Colômbia) ou Claudia Sheinbaum (México).
A aposta fundamental de Lula para a sustentação do governo é a conciliação com o “Centrão” (a ala de políticos conservadores no Congresso que negocia seu voto com o governo em troca de privilégios, cargos e ganhos corruptos) e a tentativa desesperada de manter o apoio da parcela da burguesia que o apoiou em 2022. A essência de suas políticas é voltada para isso.
O resultado é um governo que não reverteu nenhuma das contrarreformas implementadas pelos governos anteriores de Michel Temer e Bolsonaro e que aplica políticas de austeridade que resultam em perdas e sacrifícios para o povo e ganhos financeiros para os mega detentores de títulos da dívida pública e especuladores em geral.
Não se trata de que os ataques estejam sendo promovidos por representantes da direita dentro do governo, como alegam alguns. Os cortes e a política austeridade, que são parte fundamental do chamado “novo arcabouço fiscal”, são obra de Fernando Haddad e Lula, inquestionáveis representantes do próprio PT. O Banco Central que mantém os juros na estratosfera não é mais dirigido por um agente do bolsonarismo, como foi Roberto Campos Neto. Gabriel Galípolo, indicado por Lula, pouco se diferencia de Campos Neto na diretoria do BC e hoje, como presidente, mantém uma política criminosa de juros altíssimos.
A economia “vai bem” mas o povo vai mal!
O tão falado crescimento surpreendente do PIB nos últimos dois anos (3,2% em 2023 e 3,4% em 2024) não se repetirá esse ano como resultado da política monetária e de investimentos do governo, atendendo ao mercado, além das complicações do cenário externo. Da mesma forma, os baixos índices de desemprego anunciados escondem as péssimas condições de trabalho, altas jornadas, precarização extrema, adoecimento sistemático e baixíssimos salários.
Os índices econômicos razoáveis apresentados não servem para conter a insatisfação popular. Por mais que a inflação oficial não esteja tão alta quanto pretendem os capitalistas que defendem o ajuste fiscal e os juros altos, o aumento nos preços dos alimentos, em particular, é um fator determinante da insatisfação, principalmente entre os mais pobres. A economia “vai bem” mas o povo vai mal!
A queda dramática de 35% para 24% na aprovação do governo Lula entre dezembro e fevereiro, segundo o DataFolha, refletiu isso. Foi o pior resultado para Lula em todos os seus três mandatos presidenciais até agora. A queda foi maior entre os mais pobres, mulheres e no Nordeste do país. Entre os que têm renda inferior a dois salários-mínimos, a aprovação caiu 15 pontos percentuais no mesmo período. Entre os que votaram em Lula no segundo turno, a queda foi de 20 pontos percentuais. Na pesquisa da Quaest, a rejeição a Lula ultrapassou os 60% nos três maiores estados brasileiros (SP, RJ, MG), chegando a 69% em São Paulo.
Mesmo que outras pesquisas tenham indicado uma queda menor da aprovação do governo e as pesquisas mais recentes não indiquem um aprofundamento dessa queda, um sinal de alerta foi dado.
Não se sabe ainda a dimensão do impacto na opinião pública das graves denúncias de corrupção no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) que levaram à queda do presidente dessa instituição e do ministro da Previdência social, Carlos Lupi. O roubo do dinheiro de pensionistas começou no governo de Bolsonaro, mas não foi devidamente enfrentado até agora no governo de Lula e isso vai ser usado pela extrema direita.
A resposta do governo diante desse cenário desfavorável não mudou em quase nada, continua na mesma direção. As mudanças ministeriais, em particular na área de comunicação e relações institucionais, não são uma solução. O problema está nos rumos e na essência da política do governo, nos seus compromissos com setores da burguesia e dos políticos do “Centrão” e na sua estratégia política global.
A política do governo Lula, na prática, é de disputar com a extrema direita fazendo concessões a ela. Isso se dá na política econômica, mas também em temas delicados como a segurança pública. No mesmo encontro com Tarcísio de Freitas em Santos, Lula assumiu o figurino típico da direita e defendeu uma “revolução” na segurança pública. Disse que “é importante colocar os bandidos na cadeia” e não disse uma palavra sobre cidadãos assassinados a sangue frio pela PM, o clima de terror criado e sobre a postura racista e assassina das polícias em todo o país (inclusive estados governados pelo PT).
As expectativas de que o governo Lula estaria dando um giro à esquerda mostram-se ilusórias. No dia 1º de maio, pela primeira vez, Lula fez uma fala favorável a um debate, “ouvindo todos os setores da sociedade”, sobre a redução da jornada de trabalho e fim da escala 6X1 (seis dias trabalhados para um de folga). Nada além disso, um debate.
A conquista do fim da escala 6X1 somente será obtida com lutas, greves e mobilizações de massas. Esperar alguma concessão ou iniciativa do governo só leva à passividade e derrota.
O projeto de isenção de imposto de renda para quem ganhe até 5 mil reais apresentado pelo governo é progressivo. Mas, existe o risco de que o governo compense essa perda na arrecadação com mais cortes em outras áreas, ao invés de impor taxas maiores sobre os grandes ricaços, um setor contra quem o governo não pretende se colocar.
Alternativa de esquerda
O ano de 2025 e 2026 serão decisivos para a construção de uma relação de forças sociais e políticas que desfavoreça a direita e abra caminho para uma alternativa da classe trabalhadora. Há lutas da classe trabalhadora sendo preparadas e deflagradas desde já, como no setor de educação, no funcionalismo em geral, em outras categorias e entre a juventude.
Muitas dessas lutas se dão contra as políticas de cortes, privatizações e retirada de direitos adotadas pelos governos municipais, estaduais, mas também do governo federal. São lutas justas e necessárias e devem ser cobertas de apoio por parte da esquerda e do movimento sindical, popular e da juventude.
O mesmo vale para as demandas de luta do movimento feminista a partir das ações realizadas no dia 8 de março, incluindo temas como a conquista do amplo direito ao aborto e contra os ataques ao direito legal ao aborto já existente. São temas que foram completamente negligenciados pelo governo federal e são cotidianamente atacado pelos governos de direita nos estados e municípios.
Além disso, a luta contra a escala de trabalho 6X1 tornou-se enormemente popular e ganhou a simpatia da imensa maioria da população. Essa é a típica demanda justa que penetra até mesmo naquelas camadas da classe trabalhadora que foram levadas à confusão pela ofensiva ideológica bolsonarista. Ela ajuda a arrancar a máscara dos políticos de extrema direita, colocando-os explicitamente ao lado dos patrões e contra os trabalhadores em um tema sensível a todos e todas, o direito à vida além do trabalho.
O grande desafio é construir pela base um grande movimento de massas pela redução da jornada de trabalho sem redução de salários e direitos e o fim da escala 6X1. As iniciativas de luta até agora são muito importantes apesar do boicote por parte das direções sindicais majoritárias e da esquerda governista.
O plebiscito popular lançado pelas Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular em torno do fim da escala 6X1 e pela taxação dos super ricos pode desempenhar um papel importante se não for encarado como um fim em si mesmo. O plebiscito deve ser mais uma ação visando conscientizar e mobilizar a classe trabalhadora para um movimento real nos marcos de um plano de lutas que inclua ações de massas, greves e paralisações em defesa dessas reivindicações.
A bandeira da luta contra a escala 6X1 não pode ser vista apenas como um elemento da disputa ideológica, da “guerra cultural” com a extrema direita, como entendem alguns. Ela deve ser uma demanda concreta que visa ser alcançada efetivamente e, nesse processo, questione a própria lógica de superexploração do capitalismo brasileiro e prepare o caminho para lutas ainda mais profundas e que vão à raiz dos problemas.
- Defender direitos! Derrotar a direita, a extrema direita e os ataques do governo Lula/Alckmin com um plano de lutas unificado da classe trabalhadora, da juventude e dos movimentos sociais!
- Não ao arcabouço fiscal, às privatizações, à militarização de escolas, às contrarreformas trabalhista, administrativa e previdenciária! Pelo fim da escala 6X1 – por uma jornada de 30 horas sem redução de salários! Aborto gratuito, seguro e legal! Não aos projetos de lei e emendas que promovam retrocessos no direito ao aborto e outros ataques! Fim da violência policial! Demarcação já e defesa dos direitos dos povos indígenas!
- Sem anistia! Prisão para os militares, políticos e empresários golpistas! Comissão independente de inquérito com representantes dos movimentos sociais.
- Desmontar o sistema da dívida pública à serviço dos super ricos – auditoria e suspensão do pagamento aos grandes especuladores. Reestatização das empresas privatizadas e estatização do setor financeiro e setores chave da economia sob controle e gestão democrática dos trabalhadores.
- Construir uma alternativa de esquerda independente do governo que levante um programa socialista, nas lutas e nas eleições!