Brasil – Bolsonaro, pandemia, escândalos, desastre ambiental e resistência popular
Reproduzimos abaixo entrevista de André Ferrari, da direção da LSR e da ASI, para o jornal e portal Xekinima da seção grega da ASI. A entrevista foi feita por Natassa Argyraki no dia 25/05/20.
Quais são os processos atuais relacionados à pandemia no Brasil? O país parece estar no centro da crise na América Latina com o maior número de casos e mortes, mas ao mesmo tempo Bolsonaro aparece em público com seus apoiadores, minimizando o problema.
O Brasil está entrando no pior momento da crise sanitária e tende a ser o epicentro da pandemia no mundo e não apenas na América Latina, posição que já ocupa hoje. O Brasil é hoje o país que tem a expansão mais rápida da doença em todo o mundo. Apesar da enorme subnotificação e falta de testes massivos, o Brasil já é o segundo no mundo com mais casos confirmados, aproximando-se dos 400 mil. O número de mortes também é subestimado, mas já está hoje em quase 25 mil.
O Brasil sozinho representa metade do número de mortos por Covid-19 na América Latina e é visto como uma ameaça de expansão da doença na região. Recentemente, o governo de Trump, aliado de Bolsonaro, reconheceu a terrível situação do Brasil e proibiu o ingresso nos EUA de pessoas oriundas do país. Uma recente projeção feita nos EUA (IHME, Universidade de Washington) aponta que o Brasil deverá ter mais de 125 mil mortes por Covid-19 até agosto.
Esse cenário não era inevitável. Trata-se de uma tragédia produzida e agravada pelas políticas neoliberais dos últimos anos. Elas prejudicaram duramente o sistema público de saúde, agravaram a desigualdade social e pioraram muito as condições de vida. Mas, o papel específico de Bolsonaro nessa tragédia não pode ser considerado secundário, pelo contrário. Ele conscientemente adotou a posição de que as mortes dos mais vulneráveis será um processo inevitável e que se deve acelerar esse processo para que a economia volte a funcionar o mais rapidamente possível. Trata-se de uma postura genocida.
Bolsonaro adotou uma política enérgica contra as medidas de distanciamento social e quarentena adotadas inicialmente pelos governadores dos estados e prefeitos municipais. Isso fez a pandemia expandir-se mais rapidamente e ajudou a levar à superlotação dos hospitais públicos. Estamos vivendo hoje as graves consequências de medidas que não foram adotadas enquanto havia tempo e de uma política genocida de um presidente de extrema-direita.
Que medidas preventivas foram tomadas nesta emergência? Em que medida as pessoas podem segui-las?
Há hoje uma situação contraditória em que, depois de mais de dois meses de uma quarentena limitada e que não conseguiu conter plenamente a expansão da pandemia, há uma enorme pressão para que as atividades econômicas voltem a se abrir. Nesse contexto, alguns estados estão adotando o lockdown mais rígido e outros estão já abrindo a economia e flexibilizando a quarentena.
Há uma ausência total de planejamento centralizado no país sobre como enfrentar a pandemia. Bolsonaro já perdeu dois ministros da saúde desde o início da crise e hoje o enfrentamento da pandemia está nas mãos de um general do exército sem nenhum conhecimento específico da questão, mas fiel às loucuras de Bolsonaro.
Evidentemente, as medidas de distanciamento social e quarentena são de difícil aplicação em uma sociedade marcada pela desigualdade social e problemas estruturais de moradia, saneamento básico e enorme presença de doenças relacionadas à pobreza que agravam os efeitos da Covid-19.
Além disso, a paralisação das atividades econômicas atinge duramente os setores mais pobres. Quase metade dos trabalhadores brasileiros são informais ou autônomos e não tem como sobreviver nesse contexto. Isso os obriga a buscar algum trabalho e renda e correrem mais riscos.
Contra a vontade de Bolsonaro, o Congresso aprovou uma renda emergencial de 600 reais (cerca de 100 dólares) por três meses para os setores mais pobres da população. Mas, a aplicação dessa medida encontra todo tipo de barreiras burocráticas por parte do governo. As filas enormes da população pobre nas portas dos bancos são um espaço de disseminação da doença.
O novo coronavírus chegou ao Brasil trazido pelas famílias mais ricas, mas suas principais vítima fatais são os pobres. Em apenas um mês, os bairros mais pobres da cidade de São Paulo viram um crescimento de 228% das mortes por Covid-19, um número muito superior ao que acontece nos bairros ricos. Essa é a mesma realidade em outras regiões do país onde o cenário está ainda mais grave.
Bolsonaro parece ter perdido popularidade. Com sua posição sobre a pandemia e vários escândalos, como a última gravação vazada em linguagem vulgar, na qual ele diz que é seu privilégio mudar os responsáveis pela segurança ou mesmo de ministro para salvar sua família, qual é exatamente a situação?
Estamos em meio a uma crise política profunda no Brasil. Com a conjunção de uma gravíssima crise sanitária com as crises econômica, social e política, houve uma divisão na classe dominante e na própria direita política.
Bolsonaro sabe que os efeitos da crise sobre seu apoio popular só tende a piorar sua situação e fez uma aposta de alto risco, uma aposta no caos que talvez possa abrir caminho para uma saída autoritária, de tipo bonapartista, amparado por um setor das Forças Armadas e uma base social minoritária mas agressiva.
A direita tradicional no país, por sua vez, pretende recuperar o terreno que perdeu com a ascensão da extrema-direita bolsonarista. Assumem um discurso “democrático”, em defesa das instituições e de um mínimo de racionalidade no combate à pandemia. São cínicos, mas fazem um cálculo político e estão recuperando certo apoio perdido.
Bolsonaro está contra a parede nesse momento. A saída do ministro da Justiça, Sergio Moro, representou uma dura perda para ele. Moro era mais popular que Bolsonaro e, como o juiz que condenou Lula e encabeçou a Operação Lava Jato (supostamente contra a corrupção nos governos do PT, mas na verdade uma operação política a serviço da direita), foi fundamental na ascensão de Bolsonaro e um potencial competidor seu nas eleições de 2022.
Moro deixou o governo fazendo acusações sérias contra Bolsonaro. Disse que o presidente estava intervindo na Polícia Federal para defender a si e a seus filhos de investigações em curso, entre elas o próprio assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco por forças paramilitares do Rio de Janeiro, as chamadas “milícias”.
Além dessa investigação, que utilizou a filmagem de uma reunião ministerial que desnuda a essência reacionária, autoritária, racista e criminosa desse governo, há várias outas em curso. Existem investigações sobre crimes eleitorais cometidos pela candidatura de Bolsonaro e seu vice Hamilton Mourão nas eleições de 2018.
Bolsonaro está perdendo apoio popular. Hoje cerca de metade da população rejeita abertamente o governo e cerca de um quarto tem uma avaliação mais positiva do que negativa. Dentro desse um quarto que apoiam o governo, existe ainda uma camada de cerca de 15% de bolsonaristas convictos e ativos que poderiam ser uma base social para um movimento mais radical de extrema direita de tipo protofascista. Bolsonaro tem amplo apoio na base das polícias militares nos estados, na base das forças armadas, nos serviços privados de segurança e entre os grupos paramilitares ilegais existentes no Rio de Janeiro e em outros estados. Bolsonaro também tem o apoio de vários dirigentes neopentecostais evangélicos de ultradireita e que tem importante influência em certos setores populares.
Nesse momento, a retórica agressiva do governo é o que prevalece. Um general Ministro do Gabinete de Segurança Institucional, chegou a divulgar declaração oficial dizendo que a atitude da Suprema Corte de solicitar formalmente o telefone celular de Bolsonaro para as investigações teria consequências imprevisíveis, numa ameaça indireta de ruptura institucional.
Mas, essa agressividade esconde uma postura defensiva. Bolsonaro pretende convencer a grande burguesia que qualquer iniciativa de impeachment ou destituição de seu governo em função de seus crimes levaria a uma reação por parte da base bolsonarista e a crise seria pior.
Não se pode descartar que Bolsonaro promova uma aventura de tipo golpista como reação desesperada diante da crise de seu governo. Mas o risco dessa aventura seria altíssimo e o tiro pode acabar saindo pela culatra, provocando uma resposta forte dos movimentos sociais no país.
E a legislação ambiental? A pandemia é usada como pretexto para uma maior degradação da Amazônia e da vida dos povos indígenas?
Esse foi argumento explicitamente usado pelo ministro do meio ambiente, Ricardo Salles (um ultradireitista que responde na justiça por crimes ambientais), na reunião ministerial cujas filmagens foram divulgadas recentemente.
Ele disse com todas as letras que o governo deveria aproveitar que as atenções do país estavam voltadas para a questão da pandemia para promover mudanças na legislação no sentido de liberar as terras sob proteção ambiental e das comunidades indígenas para os grileiros, madeireiras, mineração, criação de gado etc. O governo ainda tentou aprovar no Congresso Nacional uma Medida Provisória (equivalente a um decreto que deve ser votado no parlamento depois de um período de aplicação) que legalizava a invasão criminosa de terras na região amazônica e no cerrado brasileiros e que estavam sob proteção ambiental. A Medida Provisória não foi aprovada, por fim. Mas as ameaças e ataques ao meio ambiente continuam gravíssimos no país.
Para as populações indígenas, além das ameaças e ataques cotidianos por parte dos grandes interesses econômicos sobre suas terras, a pandemia do novo coronavírus também representa uma ameaça dramática.
Essas comunidades estão totalmente vulneráveis diante da pandemia e não recebem nenhuma atenção especial por parte dos governos. As grandes capitais de estados e grandes cidades da região amazônica, como Manaus e Belém, estão entre as cidades com maior incidência da Covid-19. Manaus já vive um colapso absoluto em seu sistema de saúde e muitas pessoas morrem antes de ter qualquer acesso a um hospital. Nem mesmo o serviço funerário consegue dar conta da demanda de sepultamentos.
Quando a pandemia se expandir para o interior dessas regiões, e isso é uma questão de tempo, a situação será ainda mais catastrófica. As comunidades indígenas estão entre as mais vulneráveis e juntando-se fatores como a pandemia, as queimadas e os ataques por parte de fazendeiros poderemos ter uma situação de verdadeiro etnocídio em muitas regiões.
Como o movimento no Brasil organiza sua luta e resistência? Quais são os próximos passos?
Os movimentos sociais planejavam realizar uma grande jornada de lutas a partir do mês de março no Brasil contra o governo Bolsonaro, mas isso foi interrompido pela pandemia. Desde o início da quarentena, protestos são feitos das varandas e janelas em muitas regiões do país. Sempre houve muito cuidado em fazer ações de rua uma vez que é a esquerda e os movimentos sociais que defendem medidas efetivas de distanciamento social enquanto a direita despreza essas medidas.
Mais recentemente começaram a aumentar as ações de mobilização nas ruas, tomando-se os necessários cuidados. Por exemplo, há pouco dias houve uma importante passeata dos moradores da favela de Paraisópolis em São Paulo (uma das maiores da América Latina) em direção à sede do governo estadual exigindo acesso a alimentos e recursos para garantir a prevenção e assistência diante da pandemia no interior da favela. Os moradores organizaram comitês populares contra a pandemia e tem agido onde o Estado está ausente, incluindo a arregimentação de médicos, distribuição de equipamentos de proteção, conscientização dos moradores etc. Além disso, estão promovendo a pressão sobre o governo por suas demandas.
Também existe a luta dos trabalhadores dos setores essenciais, em particular os trabalhadores da saúde. Houve protestos em várias regiões do país contra as péssimas condições de trabalho. O Brasil é o país com mais mortos por Covid-19 entre os trabalhadores da saúde em todo o mundo. Nesse momento, estamos envolvidos em uma greve dos profissionais de saúde residentes que estão sem receber salários! É isso mesmo, temos médicos e profissionais da saúde sem receber salário no meio de uma pandemia, enquanto isso o governo repassa recursos para grandes empresários e bancos!
Há planos de mobilizações virtuais e presenciais no início de junho na luta pelo “Fora Bolsonaro!”, mas as centrais sindicais e a esquerda ainda estão lentas e confusas nas respostas aos ataques do governo. O pedido formal de impeachment de Bolsonaro apresentado no Congresso Nacional pelo PSOL e outros partidos de esquerda e 400 movimentos sociais é um passo importante, mas só terá efeito real se houver mobilização e pressão popular. É possível e necessário preparar isso para o próximo período.
A gravidade da situação no país pode levar a uma explosão social cedo ou tarde. A grande questão para a esquerda e os movimentos organizados da classe trabalhadora e do povo é preparar-se para essa situação oferecendo uma estratégia, um programa e organização para que essa explosão de raiva possa ter consequências efetivas com uma transformação radical no país.
Diante de Bolsonaro é preciso unidade de ação contra a escalada autoritária e os ataques contra o povo. Mas, nesse processo é fundamental que exista uma alternativa de esquerda socialista organizada capaz de enfrentar Bolsonaro até as últimas consequências, mas também o sistema que ele representa.
É isso que estamos tentando construir nesse momento. Nós estamos dizendo que não queremos morrer de fome ou de vírus. Queremos que os super-ricos paguem pela crise. Queremos derrubar Bolsonaro, seu vice general Mourão e toda a agenda neoliberal. Queremos construir uma alternativa dos trabalhadores e do povo que seja anticapitalista e socialista.