Quem pagará pela crise?

“Cara, eu ganho. Coroa, você perde.” Essa é a lógica do sistema capitalista. Já não basta as milhares de pessoa que morrem desnecessariamente pela pandemia, deixando pra trás uma enorme dor e sofrimento. O preço pela crise para quem vive do seu próprio trabalho já é altíssimo, e pode se tornar ainda mais alto nos próximos anos. Além de tentar colocar o maior peso da crise sobre nossos ombros, a crise será uma desculpa para uma “terapia de choque”, onde todos os nossos direitos serão atacados. Isso só poderá ser evitado com muita luta, junto com a construção de uma alternativa a esse sistema pobre.

Ao contrário da narrativa do governo, a economia já estava desacelerando novamente mesmo antes da pandemia atingir em cheio. Isso refletia uma desaceleração global, com uma nova crise mundial do capitalismo se aproximando. Mas com a explosão da pandemia da Covid-19, isso se acelerou e aprofundou rapidamente.

Uma pesquisa do Economist Intelligence Unit coloca o Brasil no primeiro lugar entre os países mais afetados pela crise. A expectativa de crescimento do PIB caiu 7,9% segundo a pesquisa, de +2,4% para -5,5%.

A expectativa do governo é de uma queda de 4,7% para o PIB esse ano. Se confirmada, será a maior queda anual da história, desde a primeira computação do PIB em 1901. 

Pior década da história

Com esse resultado, teremos a pior década da história. Um cálculo aponta para um crescimento acumulado para 2011-2020 de somente 1,9%. Isso seria um resultado ruim se fosse só de um ano! A “década perdida” de 1981-1990 teve um crescimento acumulado de 16,9%, com a hiperinflação e a crise da dívida.

Os dados de março são alarmantes, ainda mais levando em consideração que as medidas de isolamento começaram geralmente no meio do mês. Os serviços caíram 6,9% em março. As vendas de comércio 2,5%, a maior queda desde 2003. Isso apesar de aumento nas vendas dos supermercados, quando houve uma corrida para garantir os estoques pelas famílias. Se considerar o “varejo ampliado”, que inclui vendas de automóveis, a queda foi de 13,7%.

Indústria volta para o nível de 2003

A indústria sofreu um tombo de 9,1%. A indústria segue uma tendência de queda faz 9 anos, com o processo de desindustrialização que começou já nos governos do PT. De acordo com o IBGE, com a queda de março, a produção industrial está 24% abaixo do pico de maio de 2011 e atingiu o menor nível desde agosto de 2003.

A indústria automobilística foi a mais afetada. 64 das 65 fábricas suspenderam a produção. Isso levou a uma queda de 99% na produção em abril, atingindo o menor nível desde que a primeira fábrica começou a produzir automóveis no país em 1957! Isso afeta toda uma cadeia de fornecedores. A expectativa é que as siderúrgicas terão o menor volume de vendas em abril desde 1995.

Uma pesquisa da CNI aponta que ainda não houve muitas demissões ainda. Ao invés foram implementadas medidas como férias coletivas, mas essas tem prazo para terminar. Algumas indústrias estão retomando as atividades, mas em ritmo menor e com menos trabalhadores.

Desemprego em massa

Segundo IBGE, houve 1,2 milhões de pessoas a mais desempregadas no primeiro trimestre de 2020, levando o total de desempregados a 12,9 milhões, ou 12,2%. O Nordeste é a região mais atingida, com 15,6% e entre jovens (18-24 anos) o número chega a 27,1%.

Mas a situação é pior ainda, já que esses dados não levam em conta as 1,1 milhão de pessoas que “deixaram a força de trabalho”, por não ter procurado emprego no último mês ou não estavam disponíveis para trabalhar no momento do levantamento. 

Nos três primeiros meses do ano, 67,3 milhões de pessoas com 14 anos ou mais de idade estavam nessa condição, número recorde. Já a força de trabalho era composta por 105,1 milhões de pessoas.

Esse número deve aumentar ainda mais durante a pandemia, quando muitos não tem condição e desistem de procurar emprego, o que tornará a subnotificação do desemprego ainda maior.

8 em cada 10 podem perder renda ou emprego

Segundo uma pesquisa da USP, 8 em cada 10 brasileiros correm o risco de perder o emprego ou parte da renda por causa da pandemia. Já começamos a ver esse impacto. 

Segundo dados do Ministério da Economia no dia 12 de maio, já foram 7,2 milhões de pessoas com empregos formais que tiveram o contrato suspenso por até dois meses ou salários cortados por até três meses. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 33,1 milhões de trabalhadores com carteira assinada no setor privado no trimestre encerrado em março.

Na medida que medidas temporárias se esgotam, como férias coletivas, as demissões devem crescer ainda mais. O total de pessoas demitidas e consideradas aptas a receber o seguro-desemprego foi de 1,5 milhão em março e abril, um salto de 31% em relação ao período equivalente de 2019.

Mas são os informais que estão em uma situação mais precária, com dezenas de milhões perdendo toda ou parte de sua renda. 

Enquanto as medidas do poder público dão algum alívio, com auxílio emergencial para os informais e uma compensação parcial para quem tem contrato suspenso ou salário reduzido, são dezenas de milhões que terão uma forte redução da renda.

Mas isso não atinge os mais ricos ou aqueles com as maiores rendas. Como denunciou o sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos, enquanto a Embraer reduziu os salários dos trabalhadores em até 36,4% em abril, a alta cúpula da empresa ganhou um aumento de 17%! Esses privilegiados são 29 membros do Conselho de Administração, Conselho Fiscal e Diretoria, que dividirão um total de R$ 69 milhões.

Dá com uma mão e enfia a faca com a outra

Os governos foram forçados a implementar programas que em algum grau garantem uma parte da renda da população, como condição para evitar um colapso econômico social e dar sustento ao consumo. Sem isso, as empresas também seriam afetadas. Porém, ao mesmo tempo lançam novos ataques para retirar direitos da classe trabalhadora. É a “terapia de choque”, utilizando o momento em que os (as) trabalhadores (as) estão lutando para sobreviver e sem condições de grandes manifestações para atacar.

Além das mudanças já implementas nos direitos trabalhistas, há uma série de outros ataques iminentes. 

Por exemplo, a MP 927 prevê uma série de alterações na CLT, que flexibilizam a concessão e o pagamento das férias, amplia o banco de horas, estabelece o home office, permite redução de salários, suspende exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, afasta o sindicato das negociações sobre os termos do acordo individual, adia o pagamento do FGTS pelas empresas por três meses, entre outras. 

O relator da MP na Câmara, o deputado Celso Maldaner (MDB-SC), não está satisfeito e anunciou que irá incorporar também pontos da extinta MP 905 (Carteira Verde e Amarela). Isso inclui o fim da regra que atualmente prevê que acidentes de trajeto (entre a residência do trabalhador e a empresa) sejam considerados como acidentes de trabalho; a alteração do índice de correção das dívidas trabalhistas, para reduzir o passivo das empresas; o fim da exigência de convenção coletiva para liberar o trabalho aos domingos e feriados e alterar o enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional.

Há uma pressão dos patrões também para que as medidas da MP 936, que possibilitou a suspensão de contratos e redução de salários se tornam permanentes, escandalosamente com apoio da direção da Força Sindical e da UGT. Todos os exemplos nacionais e internacionais mostram que a retirada de direitos trabalhistas não servem para salvar empregos, e sim para reduzir salários e direitos, além de enfraquecer a capacidade dos (as) trabalhadores (as) de se defender.

Quem paga o déficit

Do mesmo modo que o desemprego é usado como justificativa para retirar direitos trabalhistas, o déficit público é usado para cortar serviços públicos como educação e saúde, além de ataques aos servidores públicos.

Já vimos esse filme antes. Na crise de 2007-2009, os governos gastaram trilhões de dólares para salvar os bancos e o sistema financeiro. Isso foi seguido por uma década de ataque aos direitos da classe trabalhadora e cortes profundos nos gastos públicos. Isso incluiu gastos na saúde, o que deixou o mundo menos preparado para a pandemia atual. 

As empresas voltaram a lucrar rapidamente e a desigualdade cresceu rapidamente, com um surto de bilionários. Os 1% mais ricos nos EUA ficaram com 95% do aumento da renda durante a “recuperação”, enquanto a maioria da população não tiveram nenhuma melhora.

Mas essa política gerou também uma crescente oposição às desigualdades e injustiças sociais, com cada vez mais pessoas tirando conclusões antissistêmicas. Explosões como junho de 2013 no Brasil e a polarização social que seguiu, são sintomas disso.

Então não será tranquilo para a classe dominante tentar repetir a dose. Mas vão tentar, e temos que nos preparar para o que será um dos períodos mais convulsivos da história. 

Esse sistema só tem mais miséria para oferecer para a maioria da população e mais desmonte dos serviços públicos. A EC95 estabeleceu um teto de gastos para o setor público por 20 anos e nos últimos anos temos visto como os cortes se tornaram cada vez mais frequentes.

Agora a previsão do governo é de um déficit primário de R$ 600 bilhões e que a dívida pública chega a 90% do PIB. Se a crise se estender, o que parece mais provável, esses números serão ajustados para cima. Isso significa que a lógica será a de “austeridade permanente”. 

Os marajás de chinelo

O pacote de ajuda aos estados e municípios é mais um exemplo de como Paulo Guedes quer pagar pela crise. O governo fez uma proposta de em pacote insuficiente de R$ 77,4 bilhões, com uma liberação imediata de R$ 40 bilhões. No congresso o total foi ajustado para R$ 125 bilhões, com R$ 60 bilhões para ser liberado imediatamente. 

Mas quem pagaria? Na proposta do governo, seria os servidores públicos, com um congelamento dos salários por 18 meses, o que tiraria R$ 130 bilhões dos servidores. Porém, com todas as categorias que foram excluídas no congresso (saúde, educação, assistência social, segurança, etc.), essa quantia caiu para R$ 43 bilhões.

Ainda está em aberto o que será vetado por Bolsonaro, e quais vetos podem ser derrubados. Paulo Guedes quer vetar todas as exceções e fez uma fala emocionada dizendo para os políticos e servidores “por favor, não assaltem o Brasil” ou “fazem palanque em cima de cadáveres”. Mas o discurso de que todos dos servidores são “marajás” privilegiados é falsa, além de muito cínica vindo de um multimilionário.

Existe sim aqueles servidores que têm salário altíssimo, recheado de privilégios, ganhando perto ou até acima do teto de R$ 39 mil por mês. Esses estão entre os 1% com salários mais altos do país e merecem, sim, ter seus privilégios cortados. Mas essa não é a realidade da grande maioria dos mais de 11 milhões de servidores públicos no país.

Segundo o Atlas do Estado Brasileiro 2019, do Ipea (com dados de 2017), 57% dos servidores públicos trabalham nos municípios. Em 2017, o salário médio dos funcionários públicos de municípios foi R$ 2,8 mil, comparado com a média salarial dos trabalhadores da iniciativa privada de R$ 2,4 mil. No setor público como um todo a média salarial era 4,2 mil. 

O salário mediano de quem trabalha para executivo nos três níveis – municipal, estadual e federal (que são quase 94% do total e inclui quem trabalha na educação, saúde e assistência) – era somente de R$ 2,6 mil. O salário mediano, que mede o salário de quem está no “meio” (que está entre os 50% que ganha mais e 50% que ganha menos) dá uma visão mais correta, já que tem uma pequena camada com salários muito altos que puxa a média para cima.

Nada do andar de cima

Podemos ver que mesmo depois de dezenas de propostas de como tirar mais sangue de pedra de trabalhadores, e em uma situação de crise profunda, não vimos nenhuma, zero, nada de propostas que atingem os ricos, bancos e grandes empresas. 

Esse últimos 10 anos de menor crescimento da história, foram ao mesmo tempo uma década em que as isenções fiscais para empresas somaram 2 trilhões de reais (o dobro do que se espera poupar com a reforma da previdência), foi uma década de lucros recorde dos bancos (os 4 maiores bancos lucraram 456 bilhões nos últimos 8 anos) e uma década em que o sistema da dívida pública transferiu centenas de bilhões anualmente para os bancos e mais ricos.

O resultado de tudo disso? Os cinco mais ricos com uma riqueza que equivale à metade da população e quando chega uma pandemia, não há nem máscaras e outros equipamentos de proteção básicos para quem trabalha na saúde. 

Na lógica desse sistema, não é gasto disponibilizar 1,2 trilhões em uma canetada para o sistema financeiro, como fez o Banco Central no início dessa crise, mas é gasto salvar vidas. Bolsonaro diz que se combater o coronavírus demais, isso vai gerar muito mais mortes por fome. Essa é a lógica de um sistema perverso, não só de um presidente perverso. Enquanto houver comida para toda a população, alguém morrer de fome é escolha daqueles do andar de cima.

Não há saída dentro do sistema

Estamos diante de uma crise mundial profunda, só comparável com a depressão dos anos 30. É resultado de um sistema falho e para sair desse círculo vicioso, será necessário uma mudança de sistema. Todos os trilhões que foram gastos depois da crise de 2007-2009 não resolveram os problemas subjacente do sistema, só preparou o caminho para uma nova crise. 

Saídas dentro do sistema, mesmo com conteúdo mais progressista, serão insuficientes. O tão alardeado “New Deal” dos EUA dos anos 30, que só foi possível pela riqueza acumulada e fora do alcance do Brasil de hoje, não resolveu o problema. Já em 1937-1938 os EUA se encontrava em uma nova crise, e isso só foi “resolvido” pela Segunda Guerra Mundial, com a mortes de dezenas de milhões de pessoas e destruição de grande parte das indústrias do planeta, que gerou as condições para um período de crescimento sobre o controle estadunidense. Mas a partir dos anos 70, as crises generalizadas voltaram e a saída adotada pelas elites foi reeditar o liberalismo, aumentando a exploração ao redor do mundo e preparando o caminho para as crises atuais.

Uma tentativa de saída “keynesiana”, com grandes déficits públicos e aumento da dívida pública, para bancar obras públicas e distribuição de renda em larga escala, não seria perdoado pelo mercado financeiro internacional. Por um tempo limitado, as maiores economias do mundo podem seguir esse caminho. Mas como vimos no caso do Japão, mesmo com a maior dívida pública do planeta o país não consegue romper uma estagnação que dura três décadas.

Apesar de ser um país e economia relativamente grande, o Brasil não tem esse poder de fogo contra o mercado financeiro internacional, se seguir dentro dos marcos do sistema. Pelo contrário, vemos como a fuga de capital, que já acontecia antes, cresceu rapidamente esse ano. Até o início de maio, os investidores estrangeiros tiraram US$ 33,3 bilhões de dólares do país (R$ 193 bilhões) e a alta do dólar chegou a 47%, o que faz do real a moeda que mais se desvalorizou esse ano. 

Por tudo isso, ao mesmo tempo que apoiamos qualquer medida que melhore a situação do povo trabalhador, temos que lutar e acumular forças para uma ruptura com esse sistema. Mas, também enxergar a nossa luta como parte de uma luta internacional, contra um sistema global.

Só conseguiremos começar a mudar essa situação tirando o poder da economia da elite capitalista. Isso significa estatizar as grandes empresas, os bancos e sistema financeiro que controla a grande maioria da economia, e colocá-las sobre controle e gestão do povo trabalhador.

Assim será possível escapar a lógica perversa do mercado, onde riqueza e pobreza andam de mãos dadas, e reverter a produção para satisfazer as necessidades de toda a população, sem agredir o meio ambiente e respeitando os direitos de todos aqueles que hoje são explorados e oprimidos. 

Ninguém precisa ser deixado para trás. Todos tem direito a saúde, moradia, educação, segurança, transporte, lazer e cultura. Ninguém precisa ficar sem emprego, podemos dividir as tarefas reduzindo a jornada de trabalho para todos.

Mas, para isso, precisamos tirar o controle da economia das mãos dessa pequena elite, e usarmos esses recursos que foram criados a partir do trabalho coletivo de quem trabalha e colocar a serviço da sociedade como um todo, através de um planejamento democrático da economia. Essa é a alternativa socialista.

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