Governo Bolsonaro – a crise como método

A vitória eleitoral de Bolsonaro foi a expressão de uma crise generalizada do sistema político no Brasil, que não é capaz de resolver suas crises econômicas, sociais e ambientais. Expressa a crise do projeto de conciliação de classes do PT, que culminou com o golpe contra Dilma, mas também uma crise na direita tradicional.

Bolsonaro não era o plano A da elite. Lembram do Alckmin? Ele não teve nem 5% no primeiro turno. Diante da crescente polarização social, uma parte da classe dominante apostou em uma alternativa extrema para implementar um pacote de profundos ataques neoliberais, para retirar direitos históricos que a classe trabalhadora conquistou durante décadas e tentando superar os limites do sistema político atual fisiológico e corrupto.

Conflitos permanentes

Bolsonaro não tem base no congresso para impor toda sua política, por isso governa em conflito com a direita tradicional e as instituições, expressando uma divisão dentro da classe dominante. Sua base e sua força vem da mobilização de um setor da sociedade raivosamente antipetista em torno de um programa reacionário e autoritário, mas também com uma aliança com os militares e figuras como Sérgio Moro e Paulo Guedes. 

Há uma constante medição de forças e conflitos entre o governo e o congresso, o STF e a mídia. Estes últimos tentam conter os excessos do governo quando Bolsonaro e seus representantes extrapolam os limites da atual institucionalidade. A estratégia é manter um mínimo de estabilidade para deixar que o congresso, onde o “Centrão”, sob comando de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, tenha uma grande maioria para poder implementar as medidas neoliberais onde há consenso.

As constantes crises são parte de uma estratégia. Elas servem para desviar a atenção de sua própria incompetência e das constantes revelações sobre relações com milícias e os casos de corrupção que envolvem sua família. As falas sobre re-edição do AI-5, fechamento do STF, apoio e convocação para o ato dia 15 de março, etc., são lançadas e, depois que geram uma reação negativa, recua-se. 

Além de tentar tornar normal e comum um discurso mais autoritário, servem para preparar o terreno para o próximo grande teste: as eleições de 2022. Como em quase tudo o que Bolsonaro faz, a inspiração vem de Trump. Nas eleições 2016, Trump preparava um discurso em que se ele perdesse, seria por fraude. Isso incluia alegações fantasiosas até no dia de votação como, por exemplo, que milhões de imigrantes ilegais estariam votando na Califórnia.

Antecipando a crise institucional

Bolsonaro já vem construindo há algum tempo a narrativa de que o “congresso corrupto está me impedindo de governar”. Ele já mencionou algumas vezes no ano passado que corria o risco de impeachment, por isso tinha que recuar de algumas coisas, já antecipando uma crise política institucional. 

A intenção é de conseguir construir uma base mais sólida e disposta à luta na extrema direita, mesmo se for às custas de alguns aliados que foram perdidos pelo caminho. Foi para isso que serviram as mobilizações no dia 26 de maio do ano passado, apesar de terem sido menores do que as mobilizações da direita nos anos anteriores, não contando mais com alguns grupos como MBL ou figuras como Frota. Os atos convocados para o dia 15 de março desse ano servem à mesma estratégia.

Preparar o caminho para 2022

Não há correlação de forças para uma aventura autoritária no curto prazo, sob a forma de um autogolpe, fechamento do congresso ou STF ou algo do gênero. O objetivo é principalmente criar o clima para que em 2022  uma derrota não seja aceitável. Em cima disso poderia tentar construir um projeto de mais longo prazo de aumento de poder próprio, seguindo os exemplos de Putin na Rússia ou Erdogan na Turquia.

Bolsonaro está ciente que a correlação de forças não é favorável para esse projeto, mesmo se a queda de popularidade tenha se estabilizado. Há um constante desgaste. Sérgio Moro teve que enfrentar as denúncias do Vaza Jato. As gafes de Paulo Guedes, chamando servidores de “parasitas” e acusando domésticas de fazerem farra na Disneylândia, atrapalhou as negociações dos próximos pacotes no congresso.

Bolsonaro não vai conseguir legalizar seu partido para as eleições desse ano. Os petroleiros conseguiram fazer uma greve histórica e sair com uma vitória parcial. Houve novas revelações sobre as ligações do clã Bolsonaro com milicianos, algo que se agravou com a morte de Adriano da Nóbrega.

Repactuação com os militares

Por isso foi importante para Bolsonaro conseguir repactuar com a cúpula militar, onde a ala olavista do governo teve que ceder poder. Mas mesmo dentro da ala militar há tensões. Se de um lado foi a fala sobre “chantagem do congresso” e “foda-se” do general Augusto Heleno (do Gabinete de Segurança Institucional) que serviu de inspiração para os atos, de outro lado, o ex-ministro de Bolsonaro, general Santos Cruz, saiu à público com fortes críticas. A cúpula militar não teria interesse em uma aventura golpista nesse momento. 

A questão é se esse jogo se sustenta até 2022, diante da situação extremamente instável. É um jogo muito arriscado, já que em algum momento uma crise pode sair do controle e um confronto mais decisivo se torne inevitável.

Um fator que poderia gerar certa estabilidade seria uma retomada do crescimento. Uma retomada frágil já parecia incerta, mas com a crise gerada pelo coronavírus está cada vez mais distante. Se a crise se aprofundar novamente com um novo aumento do desemprego, isso minará o apoio ao governo. As crises constantes, com as dezenas de mortes por causa das chuvas, a ameaça de uma epidemia pelo novo coronavírus, as filas de milhões de pessoas no INSS e no Bolsa Família, também contribuem para aumentar o mal estar na população.

Política de chantagem

Isso pode gerar uma situação onde Bolsonaro pode aumentar a aposta, especialmente se há uma ameaça mais direta a ele e seus filhos. Além de mobilização na rua, não estaria descartado Bolsonaro fazer como Bukele em El Salvador, onde soldados ocuparam o congresso para pressionar a votação de um pacote anticrime. 

A atuação do governo diante do motim dos PMs do Ceará é mais um exemplo do tipo de chantagem que o governo ensaia. Bolsonaro tentou usar a crise com dezenas de mortes por dia, para colocar o tema do “excludente de ilicitude” para soldados. Ele também ameaçou não prolongar o envio de tropas na operação de  GLO (Garantia da Lei e da Ordem). 

A ideia do impeachment de Bolsonaro tem crescido após a divulgação do vídeo convocando o 15 de março. Mesmo se surgir uma correlação de forças no Congresso que permita um impeachment, isso estaria longe de ser uma solução. Tirar Bolsonaro para colocar Mourão, com mais condições para implementar os ataques, não seria o caminho. Em qualquer situação em que esteja colocada a queda de Bolsonaro, devemos defender a queda da chapa inteira e novas eleições. O exemplo dos EUA também mostra que um processo formal tem seus limites. A acusação contra Trump foi limitada a uma ligação telefônica para o presidente da Ucrânia, por isso não mobilizou apoio. Queremos derrotar Bolsonaro pelo conjunto da obra, que inclui os ataques neoliberais. 

Não há retorno à “normalidade”

Também não devemos assumir a defesa das instituições que estão atacando os direitos dos trabalhadores. Foi esse Congresso corrupto que votou a reforma da previdência e o pacote “anticrime” de Moro. Podemos ter momentos em que fazemos frente com forças liberais diante de ataques aos direitos democráticos, mas não para voltar à uma “normalidade” onde o Centrão possa continuar a implementar ataques.

Também se engana quem acha que podemos voltar a uma “normalidade” após as eleições 2022. A polarização atual não é um acidente, ela expressa uma profunda crise do sistema político e não há perspectiva de estabilização no curto prazo. Apostar todas as fichas na volta de Lula em 2022 com a mesma estratégia de conciliação de classes, como o PT faz, é preparar novas derrotas. Também não há base para uma estabilização ao redor de alguma nova figura da direita, como Huck, ou seminova, como Maia.

Derrotar Bolsonaro e a agenda neoliberal

A classe capitalista brasileira segue sem projeto, além de manter seus lucros. O processo de desindustrialização continua e só deve se acelerar com a política de Paulo Guedes, com privatizações, rebaixamento de tarifas e abertura para o capital estrangeiro. A elite não vai além de manter um papel de subserviência aos EUA e fazendo negócios com a China, como um produtor de matérias primas.

A nossa aposta tem que ser na construção das lutas de resistência para derrotar os ataques de Bolsonaro, mas também toda a agenda neoliberal. Mas essa luta só vai conseguir avançar se assumir a tarefa de acumular forças para uma ruptura com esse sistema capitalista apodrecido, por uma alternativa socialista de sociedade, livre de opressões e exploração.