Ensino Público em meio a pandemia: uma relação humana com distanciamento humano?
O isolamento social acarretado pela pandemia do Coronavírus vem nos trazer várias lições nos mais diversos aspectos do que podemos apreender de nossa experiência do que é a vida neste planeta. E dentro destes aprendizados temos que indagar a fatal e determinante questão do que é “Ser Humano”!? E parte da resposta possível para tal e determinante questão, passa pelo debate fundamental do papel do ensino público nas sociedades em geral, e na brasileira em particular devido sua condição subdesenvolvida nos marcos do sistema capitalista.
A condição de confinamento a que o COVID-19 nos impôs, fez com que milhões de estudantes em todo o país estejam sem aulas pelas medidas sanitárias necessárias ao seu combate. Porém, logo se fez presente as apreensões a respeito de como ficará o ano letivo, quais a soluções cabíveis para que não se interrompa o aprendizado, etc. Todas são preocupações legítimas, entretanto vale a pena frisar o que é urgente neste momento e que deve estar em primeiro lugar como preocupação social de todos: a garantia de sobrevivência, a garantia da vida.
Dito isto, a solução encontrada para o ensino por governantes “desinformados” das condições sociais de seu país, é a imposição de que professores tenham que dar suas aulas por meios on-line, comumente chamada de EaD (ensino a distância). E muitos dirão “é o único jeito”, “não há o que fazer”, e assim vai. Pois bem, temos que problematizar esta questão tanto no âmbito pedagógico, quanto a respeito da implementação prática desta medida (incluindo aí as subjetividades psicológicas e materiais de professores, estudantes, familiares e comunidade escolar como um todo).
Não nos robotizemos em meio a uma situação sensível
Segundo um consenso das teorias pedagógicas (as sérias, não o obscurantismo reacionário hora em voga pelo catastrófico “desgoverno” federal de Bolsonaro, representado pela patética figura do “anti-ministro da educação” Abrahan Weintraub, “discípulo” do astrólogo e autonomeado filósofo Olavo de Carvalho, o ensino público tem como dever o desenvolvimento humano em sociedade a partir dos focos a serem estimulados nos estudantes, a saber, as capacidades cognitivas e socioemocionais de cada um, ou seja, aprender a aprender, a conhecer, a fazer, a conviver, a ser, etc. Reflitamos, portanto o papel que uma medida improvisada e mequetrefe de suprir estas necessidades em meio a uma pandemia pode vir a surtir efeito, tendo em conta as medidas que não foram tomadas.
Primeiro, os governantes em nenhum momento ouviram as representações docentes organizadas, sindicatos e associações da comunidade escolar para um plano para este cenário, fazendo uma imposição autoritária de como será feito.
Segundo, a garantia alimentar não é tomada como prioritária, a qual estudantes têm direito e muitos tem extrema necessidade por ser a merenda escolar sua principal alimentação diária, neste sentindo o governo Dória de São Paulo pelo contrário cassou uma liminar judicial que garantia o pagamento de um auxílio a todos os estudantes do Estado, que já é pouco de R$55, limitando a quantidade de beneficiados.
Terceiro, a praticidade da implementação desta EaD, como já foi amplamente divulgado e alardeado por pesquisas, nem todos estudantes terão possibilidade de acompanhar estas “aulas” devido a falta de acesso domiciliar aos meios como celulares, computadores e internet sobretudo. Sem se importar com o desnível social que causará, a posição oficial das secretarias de educação é de que estes estudantes podem ser “recuperados” depois.
Quarto, as estruturas psicológicas, emocionais e materiais de familiares para orientarem seus filhos, já que a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), prevê que a eventualidade de EaD está condicionada a esta orientação, e é fácil compreender que estes familiares estão passando suas próprias angústias e labores em seu isolamento social, com tarefas domésticas, incertezas materiais e de trabalho, e por falta de preparo mesmo, não terão como auxiliar seus filhos.
Quinto, as próprias estruturas psicológicas, emocionais e materiais daqueles que ensinam, pois os professores também estão apreensivos quanto a tudo o que está ocorrendo. Pois além de se preocupar com os rumos de sua profissão neste momento, também possuem filhos que devem orientar, e não só isso, as professoras que são a esmagadora maioria no Ensino Básico, muitas das vezes devido a sociedade machista que ainda vivemos, terão que lidar com cuidados dos filhos, os trabalhos domésticos, e a tal EaD que nos é imposta em meio a uma situação em que todos tendem a se fragilizar. As autoridades querem demonstrar que enxergam estes problemas em seus documentos e declarações, porém não se vê uma única medida para superá-los, evidenciando seu descaso com parcela significativa da população.
Colocadas estas reflexões, é notório que existe um impasse difícil de ser resolvido e passível das mais diversas polêmicas, algumas rasas e outras prementes, e como devemos nos portar e conduzir em meio a este turbilhão de incertezas e a entender a lógica por trás das medidas governamentais, é parte indelével da superação desta crise e também se faz necessário que exijamos um modelo de Ensino Público que precisamos a partir de nossa realidade.
Pois para além da situação em que vivemos, e com uma rápida olhada pelo histórico do ensino no Brasil, compreende-se que esta matéria sempre foi relegada e escanteada da posição que deveria ter, e que a bem da verdade, o fato é que a elite econômica e, portanto, elite política neste país sempre tiveram o fracasso do ensino público como projeto, e não a toa demonizam a figura de Paulo Freire com sua pedagogia libertária e que uma vez disse “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.
Para o Estado você é um número e mais nada
Será que estes governantes em exercício realmente se preocupam com ensino público? As evidências demonstram que não. Os governantes de caserna apenas querem índices um pouco mais favoráveis no IDEB como trunfo para as próximas eleições, exigindo números favoráveis sem ter como contraponto mais investimentos, e pelo contrário nos últimos tempos há cortes por todos os lados. Vimos nos últimos anos que houve uma medida draconiana com o orçamento público destinado a educação, saúde e outros setores que passou a vigorar em 2017 através da corretamente chamada “PEC da morte” (PEC 241/55), e eufemicamente denominada como contenção do teto de gastos (sim, para eles setores como educação e saúde são gastos a serem contidos e não investimentos sociais), inaugurando deste modo um congelamento orçamentário da União por 20 anos!
Esta perspectiva econômica esta no bojo de uma visão de austeridade neoliberal na seara da crise sistêmica por que passa o capitalismo, sendo esta crise provocada pelos desmandos inconsequentes, ganância patológica e indiferença sociopata da própria lógica econômica neoliberal vigente, e que se provou ineficaz em todos os países em que foi implementada mundo afora (o caso da irrecuperável Grécia é o exemplo mais contumaz), e o que está por trás destas ações é a garantia de que o Estado continue pagando os juros da dívida pública apropriados em sua maior parte por bancos nacionais e internacionais, sendo estes juros gerados por um endividamento intencional em uma relação escusa entre dirigentes políticos na economia e a banca financeira, fazendo uma maledicente transferência de recursos públicos para mão privadas. O endividamento público no país já abarca cerca de 75% do PIB, restando apenas 25% para todo o resto!
Em continuidade desta lógica criminosa vimos que no Brasil outras destas medidas foram propagandeadas como benéficas para retomar o crescimento econômico, captação de investimentos, criação de empregos, e modernização da legislação vigente, e assim foram aprovadas as tais reformas (que em vez de reformas podemos chamar de desmonte destes direitos adquiridos) insistentemente pintadas como a salvação do país: a Trabalhista em 2017 e da Previdência em 2019. E onde estão os resultados, o que ocorreu? Um retumbante fracasso perceptível a quem tem olhos para ver e ouvidos para escutar, se ainda não se contaminou com o fanatismo atrofiado de racionalidade que tomou conta de parcela da população.
Estas medidas tão ansiadas, tiveram início com o Golpe de 2016 (e querer implementá-las é a principal motivação do golpe) sendo iniciadas com o empossado Temer, e continuadas por Bolsonaro, que apesar de sua execrável figura só pode se eleger, tornando-se palatável aos olhos da burguesia sedenta, que pela falta de uma alternativa à direita que pudesse vencer e dar continuidade aos planos neoliberais, tergiversou até o anúncio da parceria com o banqueiro neoliberal Paulo Guedes, que já disse para que veio quando falou que venderia até o Palácio do Planalto, o que torna óbvio que como Ministro da Economia ele é “apenas” um agente em nome dos interesses dos seus parceiros da banca financeira.
Todas estas medidas foram apoiadas pelos comparsas do golpe de 2016 e aliados de Bolsonaro, sendo muitos governadores e prefeitos atuais (Dória, Witzel e Cia) entre eles, e q eu, agora, querem se descolar da imagem do genocida presidencial vendo seu barco naufragar no isolamento da baixeza, e oportunisticamente parecerem mais “limpinhos” e sensatos que o seu abandonado ex-aliado.
A oportunidade apareceu com a pandemia, e o que fazer com os milhões de estudantes sem aula pode ser uma das cartas na manga para a demonstração destes pretensos gestores públicos como alternativas políticas nacionais. A EaD tem que ser encarada como ela é para além do quadro pandêmico em que estamos, como uma estratégia de inserção de tutela do privado sob o público, e muitas empresas educacionais que encaram o ensino público de forma mercantil já estão se coçando com a oportunidade oferecida, e afiam suas garras libidinosas pelo horizonte de lucros fáceis.
O Ensino Público não é mercadoria
Sim, estamos em um impasse e sabemos que a inserção das novas tecnologias é fundamental e passaremos por isso. Mas isto tem que ser feito a partir dos investimentos públicos necessários, e dentro de um debate amplo e democrático com a sociedade civil em um prisma do lugar que o Ensino público deve ter em uma sociedade que pretende desenvolver-se.
Para a sociedade brasileira o ensino tem que ser altamente valorizado, pois é uma das únicas maneiras de ascensão social para as camadas mais pobres, e nosso histórico é perverso, pois só na Constituição de 1988 pós-ditadura civil-militar nos foi garantido o ensino básico como um direito de todos e um dever do Estado, e não de forma consentida, e sim por mobilização e luta com muito suor, sangue e lágrimas em todos os rincões deste país, como todos os mutirões populares por exigências de condições mínimas de existência testemunham.
Verificamos que há pouco tempo atrás a maioria da população era analfabeta. Nós conseguimos universalizar o ensino, apesar dos pesares e dos desníveis nacionais, no entanto, não foi garantido os meios de investimento para a garantia de uma continuada e ascendente qualidade de excelência.Se a pandemia faz os mercadores da educação se mobilizarem em sua sanha lucrativa, nós temos que honrar a memória daqueles que lutaram para estarmos aqui. Nós professores não nos negamos a fazer aquilo que escolhemos fazer, não é este o tema em relação a Ead, porém nos é negado reiteradamente ser participantes das escolhas de mudanças que comumente nos são impostas sem diálogo.
Como muitos estão dizendo depois que esta pandemia passar: “nada será como antes” e devemos agir para que assim seja também na educação, já que nesses tempos de confinamento todos estão refletindo a importância da escola, estudantes, familiares e professores devem iniciar uma campanha de mobilização nacional para revogação da “PEC da morte”, por uma auditoria que investigue as sacanagens oriundas da dívida pública para que haja mais verbas para educação, e acima de tudo estar diuturnamente em defesa de um ENSINO PÚBLICO, GRATUITO, DEMOCRÁTICO E DE QUALIDADE SOCIALMENTE REFERENCIADA.