O que o Covid-19 na Itália tem a nos ensinar?

Os impactos que a pandemia causada pelo coronavírus emplacam à Itália dizem muito sobre como nós, no Brasil, seremos afetados. Desde quando os primeiros casos confirmados apareciam, oficialmente ou não, a ambição por parte de donos de empresas, comércio e indústrias, através de suas representações de classe, isto é, junto às organizações empresariais e aos seus representantes políticos, foi determinante para que não houvesse qualquer iniciativa governamental voltada para a promoção de isolamento. Fosse ele vertical, quando apenas um segmento da população fica restrito à circulação (como idosos e pessoas com comorbidades ligados ao trato respiratório, por exemplo), fosse o horizontal, voltado à toda população. Porém, o governo da Itália decidiu não parar.

Quando a quarentena nacional foi decretada, era tarde demais.

Centro financeiro da economia italiana, Milão fez uma campanha voltada ao público em geral, estimulando que nada, nem o medo, parariam a cidade. Figuras como o prefeito milanês, Giuseppe Sala, em diversos meios de comunicação externou os anseios da burguesia que conduz o processo de orquestração produtiva na maior cidade do norte da Itália. A publicidade não apenas incentivava a população milanesa não parar, como também indicava demais grandes centros urbanos italianos, cidades ao redor, bem como toda região da Lombardia a não parar. O coronavírus impiedosamente não respeitou idade, gênero, fronteiras, credos, espalhando-se de modo avassalador não apenas Milão, como Bergamo, cidades lombardas, bem como a Emilia-Romagna, o Vêneto e Piemonte e outros. O Covid-19 fez a Itália parar, mas com destaque estas 4 regiões que concentram mais de 70% dos casos de contaminados, do mesmo modo concentram 82% dos mortos.

Resistenze Internazionali (RI)

Um mês após a campanha “Milano Non Si Ferma”, Sala foi obrigado a reconhecer a morbidez de sua espúria escolha, posto que mais de 4 mil milaneses morreram pelo Covid-19 até o último dia 28 de março. Giuliano Brunetti, militante da Resistenze Internazionali, seção da Alternativa Socialista Internacional na Itália, revelou que nas últimas semanas, 9 em cada 10 pessoas na Lombardia morreram em casa, sem chegarem aos hospitais. Ainda segundo Brunetti, 15 médicos morreram e 2 enfermeiras se suicidaram. Na mídia brasileira, o caso de Daniela Trezzi, 34 anos, ganhou algum destaque, pois, após descobrir estar infectada pelo coronavírus, decidiu ela se suicidar como estratégia de poupar um dos leitos e não contaminar outra pessoa. De acordo com a Federação Nacional de Enfermagem, o quadro de Trezzi se soma a uma escalada de tensão que se iniciara com a pressão e tensão que as condições de trabalho se davam no Hospital San Gerardo, o qual tem sido diariamente buscado por pacientes já em estado avançado do Covid-19. Cabe dizer que se estima que quase 10% da força de trabalho da saúde que se desdobra bravamente para conter a pandemia esteja contaminada.

Profissionais da saúde, cada vez mais estressados e assoberbados com os mais variados casos de vida ou morte, também têm tido a tarefa mórbida de escolher quem terá acesso aos poucos ventiladores mecânicos que são parte crucial do tratamento de quem apresenta complicações pulmonares sérias. Ademais, os Ministérios da Proteção Civil e da Saúde, por intermédio da Chancelaria Italiana, além de recorrerem a médicos vindos da China, Rússia, Cuba e Alemanha, têm trasladado pacientes em estado gravíssimo para esta última vizinha da União Europeia.

Esta última semana, a Itália havia oficialmente passado a China tanto em número de casos confirmados por testes, como em número de mortes. O que chama atenção no caso italiano é o percentual de mortos que, para além de incidir junto à população idosa, tem feito vítimas cada vez mais jovens. Enquanto no mundo, dentre o quantitativo de casos confirmados, algo em torno a 2,5% vem a óbito. Na Itália este índice já ultrapassou os 10%. Nessa roleta russa de vidas perdidas, tanto o Estado italiano como o empresariado local e internacional têm culpa. Antes do mês de março acabar, a Itália possivelmente terá contabilizado oficialmente mais de 100 mil casos de infectados por Covid-19, bem como mais de 11 mil mortos e 13 mil curados, embora se saiba que tais números são muito maiores quando se rememora a subnotificação.

De acordo com nossa seção italiana, em meio ao caos, o isolamento horizontal imposto por Roma a toda Itália tem como pano de fundo a disputa da Confindustria, entidade similar à CNI brasileira, que queria manter as atividades industriais na região mais proeminente no setor secundário. A resposta de trabalhadores dos mais variados ramos da indústria, ainda antes deste imbróglio, foi de irromper inúmeras greves, exigindo a interrupção da produção em serviços não essenciais. A pressão forçou o governo do primeiro-ministro Giuseppe Conte a impor a suspensão da produção, mas com tantas exceções que 40% da produção é considerada “essencial” e com uma avalanche de pedidos dos patrões para conceder concessão para retomar a produção. Ao mesmo tempo o governo proibiu greves. Isso revela o papel covarde das lideranças das centrais sindicais, que não apoiaram as greves e fizeram um acordo recuado com os patrões.

No seio do movimento de trabalhadores italianos, surgem como propostas de enfrentamento à crise algumas medidas defendidas pela Resistenza Internacionali como o estabelecimento via estado italiano do controle dos hospitais e clínicas privados aos trabalhadores do setor da saúde. Há também o clamor pela nacionalização da indústria farmacêutica italiana sem qualquer remuneração aos acionistas, além da concessão de cidadania a todos trabalhadores que estão perdendo seus postos de trabalho. 

Aqui, fica a reflexão de como o processo de pressão de ricos do norte da Itália colocou o país sob os holofotes da mídia. Ao promover a continuidade do cotidiano, trabalhadoras e trabalhadores da Itália passaram a contrair e disseminar o Covid-19. Mesmo sendo um dos principais centros econômicos do mundo, anos de ausência de investimento na saúde pública italiana causaram a impossibilidade de o país lidar com a pandemia. O aumento vertiginoso de mortos tem causado também a superlotação de cemitérios, cujos ritos fúnebres são feitos sem a presença de qualquer pessoa, por medidas de precaução da quarentena, sendo os corpos dos falecidos pelas mãos de quem não optou quarentena sequer vestidos para entrarem nos caixões, os quais já começam a faltar na Lombardia. O debate hoje no Brasil explicitado pela campanha bolsonarista “O Brasil não pode parar” é que justamente, a mesma elite que clamou o “Milano Non Si Ferma” deseja que Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, voltem ao normal. Quantos mortos Bolsonaro, patrões e demais membros da burguesia que vão às ruas nas Carreatas da Morte, querem enterrar?

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