Os impasses para enfrentar uma pandemia em uma sociedade doente

Entrevistamos trabalhadoras da saúde que estão na ponta do SUS e do SUAS para falar como está a situação no dia-a-dia do trabalho.

A morosidade para responder a uma doença com rápida disseminação é gravíssima, sobretudo em um país como o Brasil. Seja pela condição precária de moradia, que empurram várias pessoas a viverem aglomeradas diante da pobreza e da especulação imobiliária; seja pela condição de trabalho precária, que impede de assegurar que as pessoas possam de fato fazer quarentena ou atuarem seguros com os equipamentos devidos, tais como álcool gel, máscaras e luvas, no caso dos trabalhadores de serviços essenciais. Esses elementos agravam o potencial de disseminação da pandemia pelo território nacional.

O Brasil dos engravatados que fazem pronunciamentos diários pela televisão não corresponde ao Brasil real, de milhares de trabalhadoras e trabalhadores nos serviços essenciais buscando fazer a sua parte em um cenário de anos e anos de sucateamento desses serviços e precarização de seus trabalhos. Quando estes são mencionados ou entrevistados, na maioria das vezes romantizam seu trabalho, tratando-os como heróis e heroínas aplaudidas nas janelas pela população. Porém, mais do que aplausos, essas categorias precisam de condições para preservar sua própria saúde enquanto trabalham, bem como condições para fazerem o próprio trabalho. E isso é obrigação do Estado garantir!

As pessoas valem mais: nossas vidas importam!

Segundo Raíssa*, trabalhadora de uma Unidade Básica de Saúde na região sul de São Paulo, as condições de trabalho, que já eram precárias, se agravaram com a pandemia: “Dentre as limitações, temos a questão dos espaços para atendimentos. Tem aumentado o quadro de funcionário, tornando-se as equipes cada vez mais multidisciplinares, mas não tem espaço para todos. Os banheiros para os funcionários são em pouca quantidade, com pouca privacidade e sempre quebrando descarga, apesar de contarem com a reposição de material e a limpeza constantes por meio dos funcionários terceirizados. Em relação à pandemia, passou a ser obrigatório o uso de máscara por todos os funcionários da UBS, mas não tem esse material disponível para todos, sendo necessário usarmos durante as nove, 10 e até 12 horas de trabalho sem trocar, quando o recomendado é trocá-la a cada 2h. Aliás, essas cargas horárias extensas fazem parte de um acordo direto com a gerência para pagarmos dias de folga concedidos em datas comemorativas, como o Natal, Ano Novo e o Carnaval. Cada um paga quanto pode e como pode, mas tem prazo até o fim do mês para cumprir”. 

Situação semelhante ocorre com Márcia*, trabalhadora de um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) localizado na região litorânea de São Paulo. Márcia trabalha sem nenhuma EPI. O máximo que conseguiu foi álcool em gel. Observa da mesma forma, dificuldades que já tinha se tornando mais complexas. “A estrutura onde trabalha não é adequada. São salas pequenas, pouco arejadas, abafadas, poucas janelas, que propicia maior contágio pelo COVID-19, que impossibilita um distanciamento de um a dois metros, como é exigido. Ainda que façamos a higiene nos materiais que compartilhamos, como telefones, mesas e cadeiras, só o fato de ficar sentado no mesmo local já é se colocar em risco. Para isso, estão planejando revezamento para trabalhar em casa, mas o fato de não ter um telefone móvel do serviço prejudica”, detalha Márcia.  

É importante observar que a assistência social, que é financiada como uma política residual, agora nesse momento de crise, foi declarada serviço essencial e, portanto, não pode parar. No entanto, isso não significou mais investimento, sequer garantia de equipamento para proteção contra o coronavírus. 

Estava ruim, vai ficar pior

O relato das trabalhadoras do SUS e do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) mostra o coronavírus não como um deflagrador, mas sim gatilho para algo que já estava propício a acontecer diante de um cenário crítico. Márcia, mencionada acima, resume: “quando a gente fala de condições de trabalho e demandas, a gente já tinha um problema crônico de trabalho e agora a coisa explode. Então moradia, transporte, emprego, que já eram demandas anteriores, e a própria questão da creche, são coisas que vão se complicando nesse período que estamos vivendo agora”. 

Márcia identifica uma queda brusca na demanda de busca pelo serviço do CREAS, muito causado pelo medo de sair de casa, ao mesmo tempo em que houve novos casos chegando. Principalmente, violência contra as mulheres. 

Ela diz: “Na verdade, dos casos que chegaram essa semana, são todos casos de violência contra a mulher, o que diz um pouco também da dificuldade desse momento. Essas mulheres, na minha cidade não têm um programa de habitação, por uma questão de renda. O que tem é de proteção ao meio ambiente. Assim, ao mesmo tempo, essas mulheres que não têm onde morar, não tem moradia, não tem emprego, tem muitas dificuldades quando decidem por se separar com relação ao que fazer. Nesse contexto, pensar em ficar em casa é justamente uma pressão maior para essas mulheres é que elas saiam, pois é muito difícil ficar nas casas com os companheiros”. Márcia relata também que, por causa da pandemia, encaminhamentos que antes eram possíveis tornam-se dificílimos ou impossíveis agora, considerando fechamento da OAB e do Fórum que prestavam atendimento jurídico gratuito. 

Bruna*, trabalhadora de um Núcleo de Assistência à Saúde da Família de um município localizado no interior de São Paulo, relata esse mesmo cenário de um equipamento precário que sobrevive pelo esforço das pessoas que trabalham no local. No município, houve um caso suspeito apenas até agora, que só foi relatado pela prefeitura depois do alarde via mídia alternativa. Não se sabe como está ocorrendo as notificações, porque não estão sendo informadas. Hoje, a orientação é para que, se chegar um caso suspeito, a pessoa deve ficar em casa monitorando por conta própria até, eventualmente, aparecer febre e falta de ar. Isso vai tornar muito difícil os casos aparecerem nas Unidades Básicas de Saúde. Foi uma estratégia pensada justamente porque o equipamento não tem condição de lidar com a situação. Isso só vai mudar quando chegarem os três médicos cubanos que são previstos a chegar. Com relação aos profissionais, quando apresentam gripe muito forte, não precisa ter falta de ar, já existe orientação para ficar uma semana em casa, ver se aparece sintomas do coronavírus. Essas situações não estão sendo acompanhadas, não há testagem. 

Quanto aos insumos, Bruna explica: “dois meses em que no fornecimento de gazes e outros materiais para trocas de curativos, a demanda era X (vamos supor 200 gazes) e vinha dez gazes. Foram dois meses em que simplesmente não veio material. Desde então, vem, mas em quantidade reduzida. Eram 200, vem 150. O mesmo com materiais de higiene. O que vem é suficiente para uma semana, então os postinhos ficam sem sabonete, sem água sanitária. Aí a enfermeira compra ou é feita uma vaquinha. Isso antes. Com o coronavírus, tem uma demanda pelo álcool, pelo sabonete e pelas máscaras. Em números exatos o que foi fornecido é 5 litros de detergente, para 6 unidades, para um mês. De máscara, teve unidade que recebeu 50 máscaras para durar 5 dias, sendo que são mais de dez pessoas na equipe toda, incluindo pessoal da limpeza”. 

Nesses casos, especialmente no relatado por Bruna, que predomina é o fazer por conta própria, cada um trazer um álcool em gel, as pessoas fazerem suas próprias máscaras. Não há uma expectativa de cobrar do poder público. É preciso urgente melhorar as condições de trabalho. 

Para enfrentar a pandemia é preciso colocar o capitalismo em quarentena

Recentemente, o dono do Madero disse estar mais preocupado com potencial prejuízo econômico do que com “5 ou 7 mil mortos”. Mandetta, Ministro da Saúde, afirma que o que é certo é que quando chegar a 50% de contaminados pelo vírus, a velocidade de transmissão cai – o que dá a entender que ele se conforma com a possibilidade disso acontecer, mesmo que isso signifique pessoas mortas e um colapso do sistema de saúde no caminho.

Qualquer solução eficaz para enfrentar essa pandemia que não passe por declarações genocidas como as mencionadas exige colocar o capitalismo em quarentena. É necessário dar um giro de 180° nas políticas adotadas até então, que tendem a salvar os bancos e grandes empresários e deixar a população sequer com acesso a UTI, que estará em pouco tempo mais sobrecarregada que o que já costuma ser.

Um enorme contingente de trabalhadoras e trabalhadores estão sendo exemplares, dedicando-se a cumprir o papel social que exercem com responsabilidade sanitária e social que muitos políticos não têm. Seja no dia-a-dia dos serviços públicos acolhendo milhares de pessoas em sofrimento; seja na rotina dos laboratórios desenvolvendo pesquisas para enfrentar o coronavírus; ou mesmo no setor de transporte reivindicando um plano para evitar que metrôs e ônibus sejam vetores para a pandemia. Estão nessa empreitada também caminhoneiros responsáveis pelo abastecimento de alimento nas cidades, garis, trabalhadores rurais e da indústria alimentícia, nos supermercados e restaurantes, entregadores e motoristas de aplicativo, em meio a muitos outros. 

Qualquer resposta que enfrente essa pandemia, bem como as profundas desigualdades e injustiças da nossa sociedade, passa pela organização do conjunto da classe trabalhadora explorada e oprimida assumindo os rumos da história. Diferentemente da classe dominante, que é integrada por verdadeiros parasitas do sistema, se nós, classe trabalhadora, pararmos, a economia e a sociedade param. 

* Os nomes das entrevistadas foram alterados. 

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